O lado negro do Brasil
A grandeza de Lula e de Dilma reside precisamente na sua profunda fidelidade aos valores democráticos. Talvez estejam por isso mesmo condenados a perder a batalha em curso.
Crescemos a ouvir Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso e tantas outras vozes indispensáveis da música popular brasileira. Passámos por Vinícius de Moraes, esse a quem se dedicavam curiosos versos num célebre clube carioca: "se tem muitos, muitos vícios – então é Vinícius; se são muito, muito imorais – então é Vinícius de Moraes". Um dia tropeçámos em Nélson Rodrigues, génio e canalha, desconstrutor da moral instalada e servidor sem princípios da ditadura militar. Lemos, na devida altura, O Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, mestre inigualável na arte da ironia. Adolescentes, extasiámo-nos com o talento de Sócrates e companhia no injusto mundial de Espanha, no ano de 1982. Emocionámo-nos com as grandes manifestações do movimento “Directas já!”, que invadiram as ruas e as praças brasileiras em 1984, e, um ano volvido, angustiámo-nos com a agonia trágica de Tancredo Neves num hospital de S. Paulo. Depois seguimos provavelmente diversos caminhos. Alguns, como foi o meu caso, conseguiram aliar a adesão racional a Fernando Henrique Cardoso e a identificação emocional com um Presidente operário metalúrgico, Lula da Silva. Um era um intelectual brilhante, o sociólogo mundialmente reconhecido que, sofridas as agruras do exílio em Santiago do Chile, procurava inventar uma via social-democrata brasileira; o outro representava o sucesso da democracia, o paupérrimo filho de nordestinos elevado pelo voto popular à condição de chefe de Estado. As circunstâncias internacionais ajudavam à consolidação da utopia. O Brasil passava a ter o direito de acreditar no futuro.
Fomos decerto muitos a acompanhar o aviltante espectáculo político e mediático de domingo passado. O lado negro de um país brilhante manifestou-se aí no seu máximo esplendor. Raras vezes a imundice e a bestialidade se corporizaram de modo tão perfeito como no momento em que um ex-militar de extrema-direita foi chamado a pronunciar o seu voto. Bolsonaro ? é esse o nome civil da besta ? não se limitou a exprimir o seu legítimo ponto de vista; para atacar Dilma invocou um torcionário e conspurcou assim indelevelmente toda aquela sessão parlamentar. Pelo meio assistimos a cenas que, entre o patético e o inverosímil, concorreram fortemente para a degradação da imagem externa do Brasil. No meio da confusão, destacou-se pela positiva um jovem deputado que tive oportunidade de conhecer em Bruxelas, Jean Wyllys, que, num gesto de admirável coragem, ousou cuspir na cara de tal canalha. Merece o meu aplauso e a minha solidariedade. Há instantes em que o meio-termo é apenas uma manifestação de cobardia. Na realidade, mau grado os erros cometidos, Dilma Rousseff saiu agigantada depois do espectáculo tão fruste quanto deplorável proporcionado pelos seus adversários políticos. Dilma é uma mulher séria, com um passado político notável, e não merece o tratamento indecoroso a que está a ser sujeita. Ninguém em consciência a acusa de práticas corruptas ou de comportamentos moralmente reprováveis.
Apesar disso, também não assiste inteira razão a quantos falam do cometimento de um golpe de Estado antidemocrático. O que é verdadeiramente estarrecedor neste caso é a circunstância de estarmos confrontados com uma democracia em plena actividade. A lei do impeachment é uma velha lei que remonta a 1950 e que enuncia, com um grau de pormenorização quase incompreensível, os motivos susceptíveis de imputar ao Presidente da República a acusação da prática de um crime de extrema gravidade. Entre esses motivos sobressaem aqueles que se referem a irregularidades cometidas nos âmbitos orçamental e fiscal. É por isso provável que, em rigor absoluto, possa assistir alguma ténue razão aos presentes acusadores da Presidente brasileira. O carácter jurídico-político do processo do impeachment acaba por conceder a devida fundamentação à querela em curso. Assim sendo, dificilmente se poderá sustentar a tese do golpe de Estado. Mais de dois terços dos deputados democraticamente eleitos da câmara brasileira ? e, previsivelmente, uma ampla maioria dos senadores em funções ? não hesitam em optar por uma condenação baseada numa interpretação assaz leviana da conduta presidencial, imbuídos da vontade de afastar o PT do poder. A forma como o fizeram e se dispõem a continuar a fazê-lo abre, contudo, uma imensa ferida moral na sociedade brasileira. Ferida essa que provavelmente só poderá ser devidamente tratada e curada pelo recurso à realização de um novo acto eleitoral. Qualquer outra solução enfermará de uma suspeita de ilegitimidade incompatível com as exigências actuais das sociedades democráticas.
(FRANCISCO ASSIS - professor e político e deputado do PS)
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