A ação espetacular tirou de cena o comandante da Força Quds, a unidade de elite da Guarda Revolucionária do Irã focada em operações no exterior. Suleimani era popular, ascendeu com o regime dos aiatolás e foi o arquiteto de quase todas as principais operações militares e de inteligência do Irã nas duas últimas décadas, incluindo a promoção de atentados terroristas, o fortalecimento do Hezbollah no Líbano, a aproximação com o ditador sírio Bashar al-Assad e o patrocínio de grupos insurgentes no Iêmen e Iraque. Vários ataques contra tropas americanas e britânicas são atribuídos ao militar. Isso, aos olhos dos EUA, justificava o ataque, ainda que Barack Obama e George W. Bush tenham evitado tomar uma medida tão extrema em suas gestões. Na versão oficial do Pentágono, Suleimani “estava desenvolvendo planos para atacar diplomatas e americanos em serviço no Iraque e em toda a região”. Além dele, o sub-comandante Abu Mahdi al-Muhandis, da Força de Mobilização Popular (FMP), um movimento iraquiano pró-Irã, também morreu.
A notícia foi recebida com comoção no Irã, que registrou as maiores demonstrações populares desde o retorno do exílio do aiatolá Khomeini, o pai da Revolução Islâmica, em 1979. Multidões se formaram para recepcionar o corpo de Suleimani — em sua cidade natal, mais de 50 pessoas morreram em um tumulto. O aitalolá Ali Khamenei, líder espiritual e maior autoridade do país, chorou ao lado do caixão e prometeu uma “vingança implacável”. A escalada do conflito não tardou. Na terça-feira 7, Teerã lançou ao menos 22 mísseis balísticos contra as bases de Ayn al Asad, no oeste do Iraque, e de Erbil, na região autônoma curda, utilizadas pelos americanos. Foi o maior ataque direto do Irã contra os EUA desde 1979. O país ainda advertiu que se houvesse resposta dos EUA uma nova onda de ataques seria “em território americano”. Trazendo ainda mais dúvida e instabilidade, na mesma noite de terça-feira um avião da companhia UIA (Ukraine International Airlines), que havia acabado de decolar do aeroporto de Teerã, caiu com a morte das 176 pessoas. O Irã declarou num primeiro momento que a suspeita era de falha mecânica e não havia relação com os ataques, mas reteve as caixas-pretas da aeronave. A Ucrânia investiga as hipóteses de ataque de míssil ou terrorismo, e cresce nos EUA a suspeita de que um artefato iraniano tenha causado a tragédia por engano. O episódio permanece nebuloso. Empresas aéreas como Air France, Lufthansa e KLM cancelaram por tempo indeterminado seus voos para o Irã e o Iraque. Com o aumento da tensão, o valor do barril do petróleo avançou mais de 4%.
Conflito reafirma o poderio dos EUA e consagra o uso de drones, que foram criados inicialmente para reconhecimento
“O Ano Novo começou com o mundo em crise. Vivemos tempos perigosos. As tensões geopolíticas estão no ponto mais alto deste século e essa crise está escalando”, declarou o secretário -geral da ONU, António Guterres. A chanceler alemã, Angela Merkel, o presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, apelaram à contenção no Golfo. O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, condenou o ataque do Irã às duas bases militares dos EUA. “A Otan pede ao Irã que se abstenha de mais violência. Os aliados continuam comprometidos com nossa missão de treinamento [das forças iraquianas] no Iraque”, disse. Os EUA colocaram suas forças no Oriente Médio em alerta máximo. Preparando-se para a escalada, Trump anunciou o envio de 4,5 mil soldados para o Oriente Médio. O contingente inclui 600 paraquedistas da 82ª Divisão de Infantaria Aerotransportada do Exército, que deixaram a Carolina do Norte com destino ao Kuwait. O objetivo é reforçar o contingente de 50 mil militares que já estão na região. O Pentágono também passou a reforçar postos avançados, bases e aeródromos no Oriente Médio. Na quarta-feira 8, a atenção mundial se voltou para Washington. Trump havia ameaçado com uma “reação desproporcional” caso o Irã revidasse o assassinato de Suleimani. Por isso, havia expectativa generalizada com o pronunciamento que ele faria nesse dia. Cercado por militares, o americano apareceu visivelmente tenso e declarou que o Irã parecia “estar recuando” em suas ameaças. Disse que nenhum americano foi atingido pelos ataques às duas bases, sugerindo um relaxamento das tensões. Ao mesmo tempo, anunciou novas sanções econômicas. A primeira ofensiva iraniana foi interpretada por muitos como uma saída conveniente para os dois lados. O Irã teria mostrado reação, enquanto os EUA não foram seriamente atingidos. Fontes de inteligência chegaram a dizer que o Irã tinha deliberadamente evitado atingir soldados americanos. Mas especialistas acreditam que a verdadeira resposta iraniana não será imediata. Para comprovar essa tese, na noite da quarta-feira 8, dois foguetes Katyusha caíram a 100 metros da Embaixada americana na Zona Verde de Bagdá, uma região fortemente vigiada. “A retaliação do Irã não vai se dar na forma de uma guerra convencional”, diz Mauricio Santoro, professor de Relações Internacionais da UERJ. “O mais provável é que seja por meio de ações irregulares: ações de milícias e grupos terroristas, ataques cibernéticos e com drones. Não deve haver embate direto entre os dois exércitos. O general Suleimani era um especialista nessa forma de guerra não convencional.”
Para Joseph Humire, diretor executivo do Center For a Secure Society, um think tank independente sobre segurança mundial sediado em Washington, o Irã já mostrou o que fará. “Suas ações militares em geral, e o ataque às bases no Iraque, são uma forma de influenciar a opinião pública local e se destinam também aos membros linha dura do regime, alimentando uma narrativa específica.” Uma prova é que logo após o disparo dos mísseis balísticos a TV iraniana anunciou a morte de americanos — o que não ocorreu. Para o especialista, o Irã tem entre as opções militares viáveis de retaliação regiões como a Síria, o Afeganistão e o estreito de Ormuz, passagem importante para o transporte de um quinto do petróleo que abastece o mundo.
Irã ganha tempo
“O país mostrou em 2019 que tem a capacidade de atingir petroleiros ou atacar com bombas nessas áreas. Mas acho que ainda estão tentando ganhar tempo. Saberemos que estão prontos quando começarem a usar terceiros em outros países, em uma ação mais direta contra os interesses americanos. Especialmente ataques do Hebzollah contra os aliados americanos.” Humire também considera que a reação iraniana será por meio de ataques não convencionais e conflitos assimétricos. Isso pode afetar inclusive a América Latina. “A Venezuela vai reagir se o Irã solicitar. O país mostrou solidariedade e apoio após a morte de Suleimani. Fez uma homenagem com nomes importantes do regime, como Diosdado Cabello e Pedro Carreño, ex-ministro da Justiça. Este declarou que a morte de Suleimani seria vingada. Isso criaria mais instabilidade para os EUA e obviamente para a região.”
Do ponto de vista geopolítico, a morte teve um peso maior do que a eliminação de Osaba bin Laden, em 2011, e de Abu Bakr al-Baghdadi, o mentor do Estado Islâmico, em outubro passado. Nesses dois casos, tratava-se de líderes de grupos terroristas largamente condenados na comunidade internacional. Suleimani, por outro lado, era um oficial de alta patente e o segundo nome mais importante do Irã, um Estado soberano que exerce um importante poder regional. Por isso, China e Rússia, potências que são aliadas estratégicas do Irã, condenaram a nova escalada iniciada por Trump. As duas realizaram exercícios navais inéditos com os iranianos no Golfo de Omã em dezembro passado, em resposta ao avanço da tensão na região.
Papel das potências
Os dois países, assim como a Europa, determinarão a dimensão da reação global. No xadrez da política internacional, o mundo pode assistir ao nascimento de um novo equilíbrio de forças a partir da recente ação americana. Os europeus haviam criticado Trump há quase dois anos por ter abandonado o acordo nuclear firmado pelos EUA com o Irã em 2015. O americano sempre criticou esse pacto histórico celebrado por Barack Obama com a intenção de conter a expansão nuclear persa. Para ele, Obama cedeu muito. Alemanha, França e Reino Unido ainda insistiam no plano. Tudo agora mudou. Na esteira do novo conflito, o Irã já denunciou o acordo e divulgou que voltará a enriquecer urânio ilimitadamente — é o caminho para o desenvolvimento de uma bomba atômica. Nas eleições legislativas iranianas marcadas para fevereiro, o conflito reforça o regime dos aiatolás e sua ala mais conservadora, que vinha enfrentando crescente pressão interna por causa da crise econômica do país.
Nos EUA, o gesto de Trump foi recebido com surpresa e interpretado como uma tentativa de desviar a atenção para o processo de impeachment que enfrenta. Os democratas criticaram o fato de o Congresso não ter sido avisado previamente e repudiaram ameaça de Trump de atingir patrimônios culturais iranianos — o que caracterizaria um crime de guerra pelas leis internacionais. A iniciativa também foi vista como intempestiva e errática, já que o presidente até o momento vinha respeitando a doutrina isolacionista que marcou historicamente os republicanos. Como argumento a seu favor, os EUA foram alvo de várias provocações iranianas recentes, incluindo a queda de um drone em junho passado, abatido no estreito de Ormuz por forças do Irã. Nesse caso, os EUA chegaram a planejar um ataque em retaliação, mas Trump teria abortado a ação a poucos minutos da execução sob o argumento de poupar vidas humanas.
Críticas nos eua
Na época, sua inação foi interpretada como fraqueza ou estratégia para não afetar sua campanha à reeleição, que se beneficia de ótimos dados na economia. Nas últimas semanas, no entanto, a tensão cresceu, incluindo a morte de um empreiteiro americano no Iraque, bombardeios dos EUA contra a milícia xiita iraquiana Kataib Hezbollah (KH), e a invasão da embaixada americana em Bagdá, em dezembro — que teria contado com o apoio da Força Quds. Para fontes próximas a Trump, essa foi a gota d’água.
Historicamente, o conflito é mais um capítulo na crise entre EUA e Irã, que remonta a meados do século XX, quando o chefe de governo iraniano Mohammed Mossadegh foi derrubado com a colaboração dos serviços secretos dos EUA e do Reino Unido, para evitar a estatização das jazidas de petróleo do país. A Revolução Islâmica de 1970 derrubou um aliado dos EUA, o xá Reza Pahlevi, e implantou uma ditadura teocrática francamente hostil aos americanos. Até hoje a invasão da embaixada e a captura de 52 diplomatas americanos é uma nódoa na memória política americana. Em julho de 1988, em meio à guerra com o Iraque, um navio de guerra americano abateu um avião de passageiros iraniano, matando 290 pessoas. Washington alegou que a aeronave foi confundida com um avião militar. Mais recentemente, o debate sobre a ação no Irã mostrou-se semelhante ao problema estratégico que os EUA enfrentam na Coreia do Norte. O país asiático se armou e desenvolveu a bomba atômica enquanto os americanos viveram o dilema de impedir o desenvolvimento nuclear com ações militares ou tentar conter a expansão militar com negociação. A ditadura comunista nunca cedeu em suas pretensões e se beneficiou disso para desenvolver a bomba. Trump agora alega que vai evitar que Teerã construa seu próprio artefato.
Em termos militares, o assassinato de Suleimani foi uma operação cirúrgica que reafirmou o poderio tecnológico dos EUA. O drone militar MQ-9 Reaper é o mais poderoso e letal veículo aéreo não tripulado da Força Aérea dos EUA. Tem 20 metros de envergadura e 11 de comprimento e pesa mais de 2 toneladas. Muito silencioso, praticamente não deu nenhuma chance de Suleimani perceber sua presença. Foi guiado a partir de uma base militar no próprio território americano. A ação comprova a capacidade dos EUA agirem em qualquer lugar do mundo, numa guerra assimétrica em que nenhum soldado americano fica sob risco. Criados originalmente como veículos de reconhecimento e espionagem, os drones vêm sendo utilizados desde os anos 2000 como resposta ao terrorismo. Passaram a ser empregados como armas de ataque, inicialmente no Afeganistão. Exigem o uso de um aparato sofisticado que compreende equipamentos de precisão, apoio de outros aviões e monitoramente por uma rede de satélites — o que só os EUA possuem. São operados remotamente por apenas duas pessoas. O uso da arma reafirma a nova dinâmica bélica na região. Em setembro passado, 18 drones e 7 mísseis atingiram refinarias vitais na Arábia Saudita, paralisando metade da produção do país e 6% do abastecimento mundial, causando o temor de uma nova crise mundial do petróleo. Na época, autoridades sauditas culparam o Irã, que negou participação.
Iraque condena ações
Depois que o Oriente Médio esteve perto de um conflito real, em 2019, a região volta a ser o cenário de acontecimentos que mexerão com a estabilidade global. Com a ação que matou Sulaimani, o parlamento do Iraque pediu a saída das tropas americanas de seu território, o que foi rechaçado pelos EUA. Também repudiou o ataque do Irã com mísseis no país. O governo local — que é pró-Irã, apesar da população ser de maioria sunita —busca estabilidade após a expulsão do Estado Islâmico, que ocorreu com a ajuda dos iranianos. Mas estes não querem deixar o país e querem reforçar sua presença com a ajuda de milícias xiitas, tendo como objetivo a expulsão dos americanos. Essa era uma das funções de Suleimani. Agora, o mundo se prepara para a próxima resposta iraniana — com preocupação.