Hemodiálise e Problemas Cardiovasculares
Introdução
A Hemodiálise é um tratamento relativamente novo tendo surgido há pouco mais de 20 anos e que consistem em fazer com que o sangue do paciente com Insuficiência Renal Aguda ou Crônica passe por dentro de um filtro especial – o dialisador – durante uma sessão de circulação extracorpórea. A idéia seria que o filtro artificial, não podendo substituir todas, pelo menos substituísse algumas das funções do rim normal, tentando com isso manter a vida dos pacientes cujo rim temporária ou permanentemente parou de funcionar. O paciente com insuficiência renal grave em geral tem baixa diurese, retém excesso de líquido (sal e água) e ao não excretar as várias toxinas – chamadas de urêmicas – que acumulam no sangue, colocam em risco a vida destes pacientes.
O filtro (dialisador) é um aparelho cilíndrico de 30 a 40 cm de tamanho, com milhares de tubinhos ocos, tipo fios de cabelos, por dentro de onde circula o sangue heparinizado dos pacientes "renais". O material com que são feitos os tubinhos funciona como uma membrana semipermeável, que deixa passar as moléculas pequenas; mas impede que as maiores atravessem. O filtro tem também uma entrada e uma saída para a solução de diálise, cuja fórmula iônica pré-estabelecida circula por entre os tubinhos permitindo assim que retiremos ou não certos elementos, ao mesmo tempo que permite certas substâncias, como bicarbonato, atravessarem em sentido contrário, da solução para o sangue acidótico do paciente. Por exemplo, a solução de diálise não tem uréia, creatinina, fósforo, ácido úrico, magnésio e quase sempre potássio, que são substâncias encontradas em elevada concentração no urêmico, e que queremos que, por mecanismo de gradiente, difusão e ultrafiltração tenham seus níveis abaixados do sangue. O excesso destas substâncias passa para a solução de diálise e depois são drenadas para fora do rim artificial. Estas trocas ajudam a controlar a pressão arterial, e assim tenta-se manter o equilíbrio hidro-eletrolítico e restabelecer a homeostase sangüínea. Para que isso aconteça, os pacientes são conectados a uma "Máquina de Diálise", em média de quatro horas, três vezes por semana. É hoje em dia um tratamento complexo onde ocorre uma enorme variedade de problemas clínicos e outros decorrentes do uso repetido das máquinas e equipamentos. Por isto, é alvo de constante aprimoramento científico e tecnológico e apesar dos problemas a qualidade de vida dos pacientes com nefropatia terminal seja ela aguda ou crônica tende a melhorar. Em primeiro lugar, o paciente deve preencher alguns requisitos clínicos e laboratoriais para ter indicação de iniciar o tratamento pela hemodiálise crônica: são pacientes pálidos, meio amarelados, com hálito urêmico, com perda e atrofia muscular e emagrecimento visível. Via de regra, estão com hipertensão arterial e sinais de hipertrofia ventricular esquerda, possuem os rins diminuídos de tamanho, comprovado pela ultrassonografia e além disso, é requisito importante terem o clearance de creatinina < 10 ml/min. ou, no caso dos diabéticos com nefropatia terminal, < 15 ml/min. Outros parâmetros laboratoriais acompanham o quadro de uremia terminal, entre os quais se inclui uma importante anemia normocrômica e normocítica, usualmente com hematócrito por volta de 25%, hiperkalemia, hipocalcemia, hiperfosfatemia, hiperuricemia, hipermagnesemia e uma acidose metabólica importante, completam o panorama laboratorial do "renal crônico" como costumamos chamar.
Podemos dividir os problemas mais comuns em hemodiálise crônica em três tipos:
- aqueles inerentes aos problemas com o equipamento propriamente dito: são as complicações técnicas da máquina de diálise (ruptura do dialisador, quebra de bombas de circulação, falta de energia elétrica etc…), e os problemas decorrentes do tratamento d’água (intoxicação por alumínio e reações – pirogênicas ou tóxicas – pela contaminação da água);
- os problemas clínicos que surgem durante a sessão de 4 (quatro) horas da realização da filtração extracorpórea, que não são poucos, e que chamaremos de fase intradialítica;
- aqueles sintomas derivados dos sintomas da uremia propriamente dita e que ocorrem na fase interdialítica, isto é, as crises hipertensivas, as complicações cardiovasculares de urgência (arritmias, insuficiência cardíaca, edemas pulmonares e outros), os sintomas derivados de anemia (dispnéia, fadiga, cansaço fácil), as ocorrências de infecções devido à baixa imunidade (gripes, pneumonias, abscessos, infecções de fístulas) e, finalmente, as complicações sistêmicas, de uma maneira geral oriundas da enfermidade original, tais como diabetes mellitus, hipertensão arterial essencial, lupus eritematoso, glomerulonefrites imunológicas, pielonefrites, e até AIDS.
As máquinas de diálise estão cada vez mais modernas e computadorizadas. Os dialisadores estão cada vez maiores e mais eficientes, porém o detalhamento destes tópicos foge ao espírito desta atualização.
É obrigatório, no entanto, que todo Centro de Diálise possua um equipamento complexo para o tratamento da água que vai estar diretamente em contato com o sangue do paciente durante as 4 (quatro) horas de sessão/dia. Este equipamento essencial tem por função remover as substâncias orgânicas e inorgânicas e qualquer tipo de contaminantes bacterianos da água que chega ao Centro de Diálise. Para a hemodiálise, são imperiosas estas precauções adicionais pois o sistema visa a "purificar" a água, retendo os metais pesados (alumínio, cobre, zinco magnésio, chumbo etc…), retirando o excesso de eletrólitos (cálcio, flúor, sulfatos, cloro etc…) e "filtrando" os pirógenos e bactérias que porventura se encontrem nas águas. Utilizam-se para isso de colunas de resinas de trocas iônicas e de carvão ativado, que têm a propriedade de fazerem a "deionização" da água e, com filtros biológicos, tentamos impedir a passagem de microorganismos para as máquinas de diálise.
Se, em alguma destas etapas do tratamento da água acontecer algo de anormal, de diferente, pode acarretar conseqüências sérias para os pacientes. Recentemente no Nordeste a água fornecida pelos caminhões pipa de um açude em Pernambuco estava supercontaminada por uma substância hepatotóxica (a microcistina-LR), derivada de uma alga (cianobactéria). Verificou-se então que o tratamento da água e os filtros existentes não conseguiram eliminar totalmente esta toxina anômala que, chegando às máquinas de diálise, ao sangue dos pacientes ao fígado, provocou lesões agudas gravíssimas, acarretando um quadro de com hepático irreversível.
Portanto, o tratamento da água é uma das mais importantes preocupações de todo Centro de Diálise e a manutenção periódica, com a regeneração e lavagem química do equipamento deve ser feita rotineiramente, sempre supervisionado por técnicos capacitados e especialistas no assunto.
Para se extrair o sangue do paciente para uma circulação extracorpórea. numa média de três vezes por semana durante quatro horas cada sessão, é necessária a colocação da chamada "Fístula Artério-Venosa". Usualmente, o cirurgião vascular constrói em ambiente estéril uma anastomose entre as artérias e as veias do ante braço; veias estas, que após uma média de 21 dias pós-anastomose, ficam dilatadas, com o hepitélio arterializado e prontas para, com agulhas de grosso calibre, serem punsionadas repetidas vezes, até por anos a fio. Para a diálise aguda já existem os catéteres de duplo-lúmem, cuja colocação na veia jugular direita ou subclávea permitem a hemodiálise imediata.
Obviamente que as fístulas permanecem punsionadas com as agulhas no seu interior durante 4 horas e é uma porta de entrada de bactérias. As complicações começam a aparecer com as punsões repetidas, tais como infecções, estenoses, tromboses, aneurismas e eventuais rupturas, podendo até ocasionalmente acarretar encocardite bacteriana direita. Várias medidas de profilaxia contra infecções em geral são tomadas em todos os Centros de Diálise na perene tentativa de evitar as infecções das fístulas. Apesar de todos estes cuidados, as fístulas continuam a ser uma importante causa de morbidade nestes pacientes, chegando até 30% segundo recente estatística. A condição sine qua non para se fazer hemodiálise crônica é que o paciente possua uma fístula artério-venosa funcionante! E isto, às vezes, não é simples.
Após a punção da fístula e para possibilitar a circulação extracorpórea do sangue do paciente, é imprescindível a anticoagulação do sistema. A heparina não fracionada é o medicamento mais utilizado e uma dose entre 100 e 200 U/kg do peso é dada no início da sessão. Entretanto, pacientes severamente hipertensos, com úlceras gastroduodenais, pericardite (com ou sem derrame), sangramentos ginecológicos ou de qualquer natureza, são tratados com doses bem menores e/ou outras técnicas alternativas, com o intuito de evitar agravamento destes quadros e hemorragias incontroláveis. Para a diálise do agudo já está disponível no mercado a heparina de baixo peso molecular, que é mais segura e não é necessário ficar freqüentemente monitorando os parâmetros de coagulação.
Problemas cardiovasculares
Existe uma interface entre o rim e os problemas cardiovasculares do paciente renal que é por meio da Hipertensão Arterial. À medida que a doença renal progride, a pressão arterial vai se elevando de tal maneira que, quando o paciente chega à insuficiência renal terminal, as estatísticas mostram que 80% (oitenta por cento) estarão hipertensos e com algum tipo de complicação cardiovascular.
Dentre os problemas cardiovasculares do paciente em hemodiálise crônica, o mais importante de todos é a hipertensão arterial crônica de moderada a grave. Com a diminuição gradativa da diurese, a conseqüente retenção crônica de líquido e com a ativação do sistema renina angiotensina pelo rim isquêmico, a hipertensão arterial tende a ser o flagelo da maioria dos pacientes com insuficiência renal crônica. O estado crônico de vasoconstrição arteriolar, a presença de uma anemia significativa acarretando um elevado grau de hipóxia tecidual e de arteriosclerose difusa sobrecarregam o coração e todo o sistema cardiocirculatório pode entrar em colapso.
A falta de controle adequado da hipertensão arterial provoca reflexos estruturais no sistema cardiovascular levando a uma cardiomegalia com hipertrofia concêntrica ventricular esquerda (HVE), aumento do índice da massa do Ventrículo Esquerdo e das cavidades cardíacas, acarretando importante aumento dos índices de morbidade e mortalidade nestes pacientes.
A etiologia da Hipertensão Arterial no renal crônico é multifatorial, mas 4 fatores de destacam como sendo os mais importantes:
- A retenção de sal e água pelo rim terminal, aumentando o volume sangüíneo circulante intravascular;
- A ativação do sistema renina-angiotensina pelo rim isquêmico, provocado pela vasoconstrição arteriolar e pelo baixo hematócrito encontrado nestes pacientes;
- A anemia acarretada pelos baixos níveis de produção de eritropoetina pelo rim terminal que provoca hipertensão sistólica, ou agrava uma hipertensão arterial pré-existente;
- A arteriosclerose está quase sempre presente nestes pacientes, muitos deles com idade avançada e portadores de dislipidemias.
A Hipertensão Arterial ocorre em mais de 80% dos pacientes em Hemodiálise e a maioria deles pertence à classe chamada de "volume-dependente", isto é, retirando-se o excesso de líquido pelo dialisador, a pressão arterial se normaliza. Os outros pacientes necessitam de algum tipo de medicamento anti-hipertensivo. Nestes casos, os mais usados são os IECA – pois possuem os chamados "efeitos renoprotetores"; os bloqueadores dos canais de cálcio (BCC) onde a nifedipina sublingual é a droga de escolha em crise hipertensiva; os beta-bloqueadores e a clonidina. Em geral os diouréticos não estão indicados nos pacientes em hemodiálise, pois o rim terminal não responde a sua ação.
Recentes pesquisas mostram que a mortalidade nos renais crônicos, devido às complicações cardiovasculares, é bem elevada, chegando a 50% (cinqüenta por cento) de todos os óbitos. E é neste contexto que é necessário enfatizar que o tratamento tão rigoroso quanto possível da hipertensão arterial, exatamente indicado e desejado. Alguns nefrologistas têm alertado que o ideal seria tentar abaixar a pressão arterial para níveis inferiores a 130 x 80 mmHg! Isto está sendo demonstrado cientificamente pela maior sobrevida dos pacientes com níveis baixos de pressão arterial – controlada farmacologicamente – e cuja hipertrofia do ventrículo esquerdo regrediu com o tempo, demonstrado que foi por estudos seqüenciais de ECO – Doppler do coração, e conseqüentemente conseguindo uma maior sobrevida, com menor morbidade.
O foco e o enfoque recente no tratamento da hipertensão arterial em hemodiálise crônica é que, diminuindo precocemente a pressão arterial do doente renal e, por conseguinte, diminuindo a pressão intraglomerular, retardaríamos a progressão da perda da função renal.
A doença cardíaca isquêmica do paciente em hemodiálise é geralmente desmascarada pelos baixos níveis de hemoglobina destes pacientes. De tal maneira que, antigamente, a angina pectoris era revertida facilmente com oxigenioterapia e transfusão de sangue (papa de hemácias). Aos idosos não era permitido deixar cair o hematócrito para menos de 28%. Hoje em dia, com o advento e a disponibilidade comercial da critropoetina sintética, se convenientemente prescrita com o objetivo de manter o hematócrito acima de 30%, tornou de certa forma os agentes antianginosos farmacológicos pouco necessários.
No entanto, se a enfermidade coronariana for sintomática, resistente aos nitratos e dependendo do estado físico do paciente, podemos indicar uma coronariografia, uma angioplastia ou até mesmo a colocação de um "stent" no caso de lesões segmentares. Nos casos de lesões mais avançadas, pode ainda estar indicado a cirurgia de "bypass" coronariano. Os casos de valvuloplastias ou troca de válvulas, principalmente aórtica, são realizados em pacientes em hemodiálise, embora não sejam comuns.
Os casos de Edema Agudo de Pulmão e de Insuficiência Cardíaca Congestiva são cada vez menos freqüentes nos dias de hoje. Quase sempre são derivados de crises hipertensivas, que surgem por: falta ao tratamento dialítico, por falta da ingestão dos medicamentos anti-hipertensivos ou por excesso de ingestão de líquidos. Porém, com o advento dos novos e potentes agentes farmacológicos, e aos primeiros sinais de insuficiência cardíaca aguda, a tentativa terapêutica inicial é feita com o uso de nifedipina sublingual e oxigenioterapia, associada à hospitalização. Depois, se o quadro persistir, usamos anti-hipertensivos venosos como a hidralazina, o diazóxido (droga de escolha) e até o nitroprussiato de sódio, associado ou não a digital endovenoso. Nos casos mais resitentes o paciente tem que ser hemodialisado (para ultrafiltração) de urgência em ambiente adequado e com precauções redobradas. Se, no entanto, estes quadros forem secundários a um Infarto Agudo do Miocárdio, a mortalidade é altíssima e a conduta terapêutica indicada é a realização de diálise peritoneal para evitar as oscilações pressóricas que costumam ocorrer na hemodiálise.
Quanto às arritmias cardíacas, as mais freqüentes são as extra-sístoles ventriculares por hipóxia, hipopotasemia ou por coronariopatia e raramente requer tratamento farmacológico; já a fibrilação atrial que é mais comum, denota que o paciente ou está hipotenso, com pericardite, ou é portador de arteriosclerose coronariana. Responde bem a quinidina oral com a retomada do ritmo normal. Porém a arritmia mais importante é a bradicardia sinusal. Às vezes é o único sinal de alerta para a hiperkalemia – o matador silencioso – que dá poucos sinais ou sintomas e provoca uma parada cardíaca, praticamente irreversível. Ë comum encontrar altos níveis de potássio em hemodiálise e acima de 7 mEq/L pode provocar a morte do paciente, se não for tratado em regime de urgência. Com o eletrocardiograma podemos diagnosticar outros tipos de bradicardia, tais como a intoxicação por propranolol, por verapamil, digitálica e por IAM.
As enfermidades do pericárdio, tal como pericardite – urêmica e derrames pericárdicos não são incomuns nos pacientes em hemodiálise. A pericardite urêmica está correlacionada com altos níveis séricos de uréia e creatinina e a presença de um atrito pericárdico em qualquer pacientes com estes sinais, a hemodiálise de urgência está indicada sem (ou com baixa dose de) heparina. Pode-se até recorrer a diálise peritoneal, onde não há necessidade de anticoagulação. Já os casos de pericardite urêmica nos pacientes que já se encontram em tratamento dialítico, está indicado intensificar as sessões de diálise e passar o paciente a dialisar mais horas ou diariamente até que o atrito desapareça. No caso dos derrames pericárdicos também intensifica-se a diálise ou se houver comprometimento hemodinâmico com instabilidade cardio-circulatória e risco de tamponamento, faz-se a drenagem asséptica do pericárdio por punção subifoidéia.
O rim doente deixa de produzir o hormônio eritrpoietina e assim a anemia, por vezes sintomática, é um dos sinais mais importantes da uremia. O "renal crônico" se acostuma a viver num quadro de hipóxia relativa, o que não o impede de realizar tarefas leves a moderadas no dia a dia. Alguns até trabalham normalmente sem grandes esforços físicos. Com o advento da eritropoetina injetável, fabricado por engenharia genética, a transfusão de sangue que era até pouco tempo uma rotina nos Centros de Diálise, passou a ser exceção e as enfermidades provocadas pela transmissão, via transfusão de sangue, dos vírus da AIDS e das Hepatites B e C, que desencadeavam verdadeiros pesadelos dos nefrologistas são difíceis de ocorrer hoje em dia. O sucesso do tratamento clínico e laboratorial da anemia com eritropoietina é tão significativa que já se advoga tratar alguns pacientes com insuficiência renal leve ou moderada, com uso da eritropoietina antes do paciente entrar no programa de hemodiálise crônica. É significativa a melhoria do bem estar e da qualidade de vida, com hematócritos mais elevados. O controle e supervisionamento rígido dos problemas técnicos relacionados ao tratamento propriamente dito da hemodiálise crônica (fístulas, máquinas, tratamento da água e heparinização), acrescidos dos modernos tratamentos clínicos e farmacológicos da anemia e da hipertensão arterial, e refletindo positivamente nas complicações cardiovasculares destes pacientes, trarão certamente uma melhoria da quantidade e qualidade de vida diminuindo em muito a morbidade e a mortalidade destes renais crônicos.
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