LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)* O discurso midiático é bastante pródigo em sugerir ou afirmar coisas disparatadas (com o escopo de alcançar “ibope”). Cachoeira não queria depor na CPI. Pediu dispensa, para exercer o seu direito ao silêncio (que é constitucional). Não lhe foi deferido o pedido. Foi à CPI e nada disse. Trata-se de um direito fundamental de todo acusado. Hoje, embora ainda não superada totalmente a fase da inquisição, ninguém é obrigado a falar nada como acusado. Ninguém é obrigado a se autoincriminar (conforme a Convenção Americana de Direitos Humanos). Apesar de todas essas garantias constitucionais e internacionais já pertencerem à nossa cultura jurídica, nada disso é respeitado pelo exagerado populismo midiático.
Vejamos o que afirmou um editorial do Correio Braziliense (23.05.12, p. 14): “A cidadania levou ontem (frente ao exercício do direito ao silêncio pelo acusado Cachoeira) um tapa no rosto e se descobriu impotente, abandonada”. A linguagem é terrorífica. Coloca toda população na posição de vítima. O exercício do direito constitucional ao silêncio constitui (para esse populismo midiático) uma grave “ofensa”, um “mal” que deve ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro. Coisa do diabo e não de Deus (consoante Maffesoli). Aliás, a proposta final do editorial foi a seguinte: “É hora de colocar uma vírgula no direito que garantiu o silêncio de Cachoeira: se o crime é contra o bem público, o acusado não pode se calar impunemente ante a autoridade. Elementar”. Extirpação, pura e simples, da garantia, que constitui cláusula pétrea no nosso sistema constitucional. Do ponto de vista jurídico, aberração maior é impossível. Mas nossa crítica contra esse disparate não pode ser unicamente negativa. É preciso reconhecer que o crime organizado dos poderosos econômicos, sobretudo quando envolve outros poderosos do poder público (políticos, juízes, fiscais, policiais etc.), é algo muito grave, que pode afetar inclusive a governabilidade e o próprio sistema democrático de direito. O crime organizado atinge as raízes da democracia (Ferrajoli). Ninguém pode imaginar qualquer tipo de discurso que defenda a impunidade desses específicos delitos. Ao mesmo tempo, se para punir esses criminosos a Constituição brasileira prevê uma determinada forma, um específico procedimento (regido pelo devido processo legal), constitui um renomado disparate pretender a (impostergável) punição do réu com desrespeito a esses direitos e garantias fundamentais. Todos queremos a proteção do Estado, mas também não podemos nunca esquecer de postular a proteção contra o Estado, que constitui fonte de muitos abusos e arbitrariedades. Em nome do eficientismo penal não podemos abandonar as garantias constitucionais que configuram termômetros de civilidade. As duas coisas não são incompatíveis. O Estado conta com mil maneiras racionais e válidas de provar os delitos organizados dos poderosos econômicos, que não podem mesmo ficar impunes. Mas não podemos abandonar o velho e bom discurso formulado por Beccaria de que o direito penal constitui também garantia do réu contra os abusos do Estado. O populismo midiático se equivoca redondamente quando, para reivindicar mais eficiência na persecução penal, sugere o corte dos direitos constitucionais. Não se pode cobrir um corpo descobrindo outro, quando há cobertor para os dois. A proteção do Estado (punindo os criminosos) é fundamental, tanto quanto a proteção contra o Estado. O populismo penal midiático incorre no mesmo erro antes cometido por alguns criminólogos críticos que ignoravam a função protetiva (e civilizatória) dos direitos e das garantias. É preciso que o populismo penal midiático resolva, de uma vez por todas, seu dilema entre a barbárie e a civilização. A problemática do delito não é algo alheio ou raro na vida da população brasileira (é muito difícil que alguém não tenha sido ou não tenha um conhecido que tenha tido a experiência da vitimização). Desde que a mídia se apoderou com “unhas e dentes” do (rentável, lucrativo) discurso criminológico o assunto nunca mais saiu da pauta do cotidiano das televisões, dos jornais, dos políticos etc. Minuto a minuto o tema, sendo recorrente, volta para os diálogos, telejornais, manchetes, projetos legislativos, leis novas etc. O sentimento de temor (medo) e de desproteção, pelo que dizem as pesquisas, aumenta a cada dia. O inconsciente (ou imaginário) coletivo tem algumas convicções formadas sobre a matéria. A primeira, evidentemente, é a de que nenhum crime pode ficar sem castigo. O castigo seria imprescindível não só para “vingar” o que foi feito (fato ofensivo), senão também para evitar que o criminoso repita o seu ato. O medo da reincidência constitui uma das fontes do desejo da retribuição. A população, em geral, no entanto, em tempos de populismo punitivo, não postula apenas o castigo devido, sim, cada vez mais reivindica castigos mais duros, “mão dura” contra o crime, fim da impunidade, corte de direitos e garantias fundamentais etc. Se perguntássemos para a população qual é o tratamento mais adequado para quem sofreu um aneurisma, claro que o cidadão comum diria: “não tenho a mínima ideia” Com certeza, ademais, nunca diria que um curandeiro seria a pessoa indicada para solucionar o problema citado. Sobre o mundo da medicina complexa o indivíduo comum não costuma opinar, por falta de conhecimento específico. Não é isso o que acontece, no entanto, no campo da criminalidade. Todo mundo, incluindo, portanto, os jornalistas, tem uma receita (infalível) para a “cura” desse “mal”. Prisão, castigo duro, humilhação, degradação do preso, abolição das garantias penais, tortura etc. Tudo que possa servir de instrumento de “vingança” vem à cabeça do cidadão comum (daí a demanda forte por pena de morte, prisão perpétua etc.). Ocorre que essa “receita” não vem dando certo. O Brasil é campeão mundial na taxa de encarceramento (de 1990 a 2011, 472% de aumento) mas, ao mesmo tempo, experimenta um dos maiores incrementos nos índices de homicídio (9,6 mortes para cada 100 mil habitantes em 1979, contra 27,3, em 2011). Está prendendo muito (com frequência desnecessariamente), mas nem a violência nem a criminalidade diminuíram. Ao contrário… |
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