sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A Institucionalização da Loucura - Introdução (Parte I)


A Institucionalização da Loucura - Introdução (Parte I)Flora Fernandes & Joviane Moura

As concepções sobre normalidade e anormalidade bem como as formas de lidar com a loucura variam de acordo com o contexto histórico. Até o início do estudo das ditas insanidades ser incluído no campo da medicina há cerca de 2.500 anos na Grécia, existiam apenas alusões à loucura como comportamentos estranhos, personalidades incomuns ou desagradáveis e mesmo “possessões demoníacas” (STONE, 1999).
Durante a Idade Média, segundo Stone (1999), pessoas consideradas loucas eram ditas possuídas pelo demônio e queimadas na fogueira. Considerava-se então que a qualquer momento o acometimento da loucura, por ser de natureza demoníaca, pudesse desapropriar a razão daqueles ditos sãos.
Em outros contextos sociais e históricos foram disseminadas idéias de que o louco possuía seu dito comprometimento mental decorrente de períodos cíclicos ou fases da natureza, incluem-se aqui as fases da lua. Baumgart (2006, p. 27) cita que “la locura estaba íntimamente relacionada con las fases y las transformaciones de la luna" e completa afirmando que daí surge a expressão do lunático, como sinônimo de louco.
Para Baumgart (2006, p.27), Nota-se que “a partir de todos estos ejemplos se ve cómo la patología asume formas fenoménicas diversas de acuerdo a una determinada sociedad, determinados órdenes etnográfico e histórico”.
No interstício entre período medieval e renascentista havia uma forte expressão social no ocidente de exclusão de um grupo de sujeitos, nesse caso os leprosos. Estes tidos desde os tempos pré-biblicos, como aqueles que traziam consigo as mazelas do mundo e que não tinham outro caminho se não serem excluídos, ou serem admitidos como objeto de caridade e indulgência por parte daqueles que concebiam um caráter religioso de pecado e condenação, ao explicar as causas da lepra.
A partir do final da Idade Média e início do período neoclássico ou renascentista, no entanto, a lepra passa a não mais figurar como causa biológica de impacto social de segregação, exclusão e banimento. Há a diminuição do número dos casos de lepra.
A partir de então esta peste e as mazelas que a ela eram atribuídas passam a desocupar o espaço de segregação social. Como resultado desse processo a sociedade da época passa a não mais experimentar a rotulação, condenação e a “cura sem a curar”.
Não obstante, em pouco tempo a loucura assume esse papel e passa a ser tida como substrato de exclusão e diluição social. A imagem do louco foi vitalizada e fortalecida como aquele agente social que fomenta a perda da razão, sinônimo de ordem e de norma.
Baumgart (2006), aponta que o doente mental era retirado da convivência com outros homens por que se alegava na época que devido à enfermidade suas funções mentais superiores desapareceriam e a convivência social ficaria inviabilizada. Acresce-se que, na Renascença, há a volta dos valores humanistas greco-romanos e retorno das indagações sobre as origens e causalidades naturais dos fenômenos mentais, são dessa época os primeiros asilos.

· Institucionalização da loucura

O surgimento dos asilos por volta do século XV e XVI, no entanto, não se restringiu a internação apenas dos considerados doentes mentais. Assumem de acordo com Basaglia (2001), a função de defender e afastar da sociedade todas as “espécies” que fossem incômodas impondo por intermédio desses locais sistemas de restrições e limites de forma mais incisiva. O controle social sobre as expressões e manifestações sociais tidas como desviantes retoma então através destas instituições o papel de segregação e exclusão.
Esses asilos, por vezes, situavam-se inclusive nas mesmas instalações físicas dos antigos leprosários da Idade Média, abandonados por um certo tempo pela regressão da lepra. Os leprosários constituíam espaços “malditos” caracterizados pelo isolamento físico e social particularmente direcionado aos leprosos. Segundo Foucault (2002, P.6)
A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a Lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso.
No contexto renascentista a loucura apresenta-se como ameaça ao sistema racional nascente. Tudo o que não pudesse ser enquadrado pelo cartesianismo era sistematicamente negado e rotulado como não-verdade e perdendo, segundo Birman (2003), a validade do discurso. Paulatinamente a loucura é emudecida como fonte de veracidade gerando assim exclusão social e política. Foucault (2000, p.47), afirma que
A não razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações de subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana parece testemunhar que no século XVII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este que, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a loucura está exilada.
Antes do século XVII a loucura não era uma entidade diferenciada. Tinha-se consciência da sua existência, da sua diferença, mas de uma diferença que não é perfeitamente delimitada, “que não possuía um estatuto definido e que freqüentemente era vista como uma forma suprema de sabedoria para se perder em seguida no mistério da diferença pura” (ROZA, 2005, p.27). Não havia um abismo entre elas. Loucura e não-loucura estariam confusamente implicadas.
A partir do século XVIII, a psiquiatria adentra os asilos e o poder no interior dessas instituições que antes era conferido à Igreja e ao Estado passa a ser exercido pela Medicina. Pinel (1745-1826) e Esquirol (1772-1840) em Bicêtre, considerados os pais da Psiquiatria, promoveram uma inovadora reforma hospitalar que ficou conhecida como “tratamento moral”.
Promoveram um processo de humanização no sistema psiquiátrico, que até então se resumia ao depósito e degredo dos loucos. Revolucionou-se a filosofia do atendimento asilar, quebrando grilhões e cadeados, saneando a imundície das celas. Devolveu-se o sentimento de identidade aos doentes mentais (STONE, 1999). Identificação esta que não implica em inclusão social, mas denota, por outro lado, a outra face admitida pelo mesmo fenômeno – a loucura.
Mesmo com as mudanças proporcionadas pelos feitos de Pinel, Foucault (2002), defende que, a princípio, a Psiquiatria não surge como uma especialização do saber ou área da ciência médica e sim como um ramo especializado da higiene pública que tinha por objetivo a higiene do corpo social por inteiro. Para constituir-se como instituição de saber, nesse caso, saber médico fundamentado e justificável precisou, segundo mostra Foucault (2002), estabelecer dois parâmetros: a loucura foi simultaneamente codificada como patológica e perigosa objetivando com isso ganhar importância social.
A Psiquiatria como detentora de conhecimentos relacionados à doença mental poderia utilizá-los para prevenir e eventualmente curá-la de modo a funcionar, ainda segundo Foucault (2002), como forma de “precaução social absolutamente necessária para se evitar um certo número de perigos fundamentais decorrentes da existência mesma da loucura”. A loucura passa então a ser concebida como doença e percebida como perigo social.
O hospício consolidou-se como uma instituição total que tem por objetivo cuidar e segregar os loucos de condutas consideradas perigosas, do restante da sociedade. Por instituição total entenda-se de acordo com Goffman (2005, p. 11), local de residência onde “indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo levam uma vida fechada e formalmente administrada”. Nessas instituições a individualidade é mortificada e a autonomia do sujeito delegada ao poder do médico.
Dentro do manicômio o médico tem a liberdade de agir independentemente de controles sociais externos. Jervis (2001), coloca que o psiquiatra tem um poder sobre o corpo do paciente ainda maior que os outros médicos já que não age apenas setorialmente e sim de forma global assumindo um papel de controle e contenção desse sujeito. Jervis (2001, p. 265), destaca que
O especialista em psiquiatria, juntamente com o psicólogo, o psicanalista e o sociólogo, serve para reeducar o cidadão para o consumo ou para a adesão ao poder, independentemente da presença nele daquilo que continuamos a chamar de “distúrbio mental".
Na prática isso quer dizer que os profissionais ligados à saúde mental trabalham majoritariamente com adequação de comportamentos. A patologização da loucura desemboca na normalização do modo de conduta da sociedade já que, segundo Jervis (2001), o internamento do louco em um hospício para tratamento é a reafirmação da sanidade de todos os que estão fora dele.
O manicômio sob essa ótica apresentar-se-ia como afirmação da própria necessidade de tornar distintos e claros os comportamentos considerados normais. A conseqüência social dessa delimitação é a busca de condicionamento a comportamentos considerados adequados pelos parâmetros sociais estabelecidos.


Fonte: A Institucionalização da Loucura - Introdução (Parte I) - Psiquiatria - Psicopatologia - Psicologado Artigos http://artigos.psicologado.com/psicopatologia/psiquiatria/a-institucionalizacao-da-loucura-introducao-parte-i#ixzz26SnxCh9d

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