É
preciso retomar, aqui, um pouco das razões de Foucault em seu
livro mais pop, “Vigiar e punir”. Como este espaço não se
presta a elaborações extensas, atenho-me, como de costume, a uma parte do livro apenas. Optei pelo início, isto é, pelo
primeiro capítulo. Para os amigos, reservo o diálogo acerca dos outros capítulos, um dia.
Antes de adentrar a resenha propriamente dita, declaro que não me contentei muito com a
tradução brasileira (em determinados parágrafos, há trechos ininteligíveis). Tentei buscar
on line, então, o original em francês, mas não o achei. Ainda bem. Porém, há trechos da tradução inglesa disponíveis na rede, os quais me ajudaram bastante quando houve dúvidas. Isso, de alguma maneira, comprova que o problema é mesmo da tradução brasileira, e não do original francês –
apesar de sabermos de toda a afetação de Foucault, inclusive no que diz respeito ao tratamento do texto. Como já traduzi um livro sobre o filósofo, creio haver algo de verdadeiro no que afirmo.
O livro começa pela narrativa da tortura, suplício e esquartejamento de um parricida, em 1757. Pois bem, isso é o bastante para que eu faça minhas primeiríssimas derivações, as quais servirão de intróito à “resenha”. Falemos da tortura de Damiens, o assassino: o modo como ela foi feita, a agressividade nela contida, o espírito de sua época, a animalidade, o mundo dicotômico em que se inseria – tudo isso servirá de substrato para a tese a ser apresentada ao longo do livro, qual seja, a de que essa tortura, com o tempo (isto é, ao longo dos séculos XIX e XX), transmuta-se em outra coisa, transfere-se para outro lugar. Não só passa do corpo para a “alma” (as aspas são minhas, e não de Foucault, mas acredito que estejam bem colocadas – ver a citação 23 do livro, mais abaixo): a tortura deixa também de ser prerrogativa de quem detém um poder político que se sustenta fortemente na moral religiosa, no crivo religioso, para passar a ser prerrogativa do poder legal, do poder educacional, do poder psiquiátrico, do poder presente no trabalho etc. Em outras palavras, passa a ser tortura disseminada, difusa.
Esse aspecto difuso da tortura, sua disseminação pelos mais diversos setores de nossa vida diária, já está, hoje, tão introjetado no que somos que sequer a percebemos. Ao contrário, há, na sociedade ocidental contemporânea, esquisita e esquizofrenicamente, um certo prazer em ser “torturado”, uma vontade de não ser livre, de delegar poderes aos carrascos, que são muitos, e também difusos, mas ainda tão sem luzes quanto aqueles carrascos caricatos, seja do Antigo Regime, seja da Revolução – meros cumpridores de ordens. Estamos diante deles no condomínio, no trabalho, no transporte público, nas ruas, na beira da praia – até o campo, com sua atmosfera de amplidão libertária, tem o seu carrasquinho. O Ocidente julga-se livre, mas está preso, muito preso…
Se o aprisionamento torturante, hoje, não é o do corpo, mas o da alma, há-de se buscar, na prática, o lugar de onde emanam os eflúvios de poder que agrilhoam essa tal alma. Não é difícil perceber que boa parte deles, talvez a mais forte e resistente em termos miasmático-prisionais (o quê?!), venha ainda do cerne e da carne da Igreja (assim como de seus derivados: os embutidos pentecostais, evangélicos, macedianos…). Cordeiros torturados em número crescente bradam seus cânticos torturantes por todo o lugar, até mesmo em Copacabana (eis a cor local do texto), enquanto prostitutas passam ao largo dos templos, desfilando pernas, umbigos e bocas. A necessidade de sentir-se subjugado encontra facilmente, assim, apesar da lascívia circundante, lugar de congregação. Sob o olhar piedoso do padre/pastor e dos irmãos em Cristo, todos estão protegidos e devidamente anulados. O espírito aprisionado entre as quatro paredes do Senhor é espírito satisfeito. Afinal, fora dessas quatro paredes, não há mesmo nada, a não ser o mundo, não é? Moldada a mente, ou espírito, ou alma, pela moral que emana da Igreja, resta pouco a moldar. Contudo, a educação escolar, o mundo do trabalho e o mundo paralelo da cultura/entretenimento/informação seriam, entre outras frentes, três replicadores dessa moral, pondo-se, ainda que em outros termos, contra o indivíduo, com a finalidade precípua, apesar de tácita, de torná-lo ainda mais dócil, ou, por fim, de moldar os que não dão ouvidos ao discurso religioso. Afinal quem não é religioso também precisa ser controlado. Fecham-se as brechas.
A escola, já pelo simples fato de dispor de um currículo, prega também verdades. Sua crença é a de que, por meio de restrições e encaminhamentos, o indivíduo será “devidamente” moldado. Uma vez moldado, será, então, entregue à sociedade “pronto para o trabalho”. Neste, cumprirá docilmente sua jornada de oito horas, contribuindo não só para sua dignificação própria, mas também para “o enobrecimento da humanidade”, dizem. Findas as oito horas, paralelamente ao trabalho, de maneira consecutiva, haverá algum tempo e espaço para o prazer/lazer, o conhecimento e a percepção da realidade, todos eles regidos, hoje, pela lógica da Publicidade, a qual
aproxima – sem escrúpulos e sob um fundo eminentemente quantitativo (leia-se quantificável) e quase nada qualitativo – prazer/lazer
de entretenimento, conhecimento
de cultura em sentido restrito e percepção da realidade
de informação jornalística. Desse caldeirão escola-trabalho-diversão, surgem os belos indivíduos que nos cercam, como se fossem “carcereiros do bem” (a expressão é minha). No aspecto diversão (deixarei a escola e o trabalho de fora, porque o texto já se anuncia longo), esses carcereiros do bem atuam como moedeiros falsos contumazes, mas julgam produzir somente dobrões de ouro. Tudo, para eles, deve imediatamente ser convertido em algo quantificável – daí os processos infantis em que incorrem, mesmo quando adultos maduros: “viajei
mais do que você durante as férias” (entretenimento quantificado); “sei
mais sobre Erasmo de Rotterdam do que você” (cultura em sentido restrito quantificada); “estou
mais bem informado do que você sobre a crise na Europa” (informação quantificada). Devidamente quantificada, a vida ganha ares de competição, e os moedeiros falsos sentem-se, sempre, na liderança. De fato, são próceres da humanidade de cuja companhia devemos muito nos orgulhar.
Depois desse longo intróito, passemos a trechos relevantes do livro, enfim. Estou usando a edição da Vozes, tradução de Raquel Ramalhete. Todos os trechos abaixo são do primeiro capítulo apenas. Após uma caminhada pela praia (sim, é um inverno quente este), pretendo analisá-los. Imaginem vocês que meu
scanner quebrou e tive de digitar todos os trechos. Santa tortura a que me submeto em nome do sagrado conteúdo deste
site…
Trechos de “Vigiar e punir” (tradução de Raquel Ramalhete) compilados por Vinicius Figueira, sem intenção comercial, para mera análise pessoal e intransferível.
1. “Dentre tantas modificações, atenho-me a uma: o desaparecimento dos suplícios. [...] Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação.” [p. 13]
2. “A punição [...] deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata [...] a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime [...].” [p.14]
3. “É a própria condenação que marcará o delinqüente com sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença; quanto à execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado.” [p. 15]
4. “A execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça.” [p. 15]
5. “E acima dessa distribuição dos papéis se realiza a negação teórica: o essencial da pena que nós, juízes, infligimos, não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, ‘curar’”. [p. 15]
6. “Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir, que nem sempre exclui o zelo: ela aumenta constantemente: sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral.” [p. 15]
7. “De modo geral, as práticas punitivas se tornaram públicas. Não tocar mais no corpo ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. [...] O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. [...] Um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos os educadores.” [p. 16]
8. “O emprego da psicofarmacologia e de diversos ‘desligadores’ fisiológicos, ainda que provisório, corresponde perfeitamente ao sentido dessa penalidade ‘incorpórea’”. [p. 16]
9. “Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva.” [p. 19]
10. “ A redução do suplício é uma tendência com raízes na grande transformação de 1760-1840. [...] Castigos como trabalhos forçados ou prisão – privação pura e simples da liberdade – nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra.”
11. “O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo: menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e ‘humanidade’. Na verdade, tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva. [...] Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que então se exerce? A resposta dos teóricos [...] é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. Marbly formulou o princípio fundamental: ‘que o castigo, se assim possa exprimir, fira mais a alma do que o corpo’”. [p. 21]
12. “Momento importante. O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são substituídos. Novo personagem entra em cena, mascarado. Terminada uma tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades impalpáveis. O aparato da justiça tem que se ater, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.” [p. 21]
13. “Muitos crimes perderam tal conotação [de crime], uma vez que estavam objetivamente ligados a um exercício de autoridade religiosa ou a um tipo de vida econômica; a blasfêmia deixou de se constituir em crime; o contrabando e o furto doméstico perderam parte de sua gravidade.” [p. 21]
14. “Sob o nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos definidos pelo código. Porém, julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente e de hereditariedade. [...] são as sombras que se escondem por trás dos elementos da causa que são, na realidade, julgadas e punidas. [...] o conhecimento do criminoso, a apreciação que dele se faz, o que pode saber sobre suas relações entre ele, seu passado e o crime, e o que se pode esperar dele no futuro.” [p. 22]
15. “A alma do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o crime e introduzi-la como um elemento na atribuição jurídica das responsabilidades; se ela é invocada com tanta ênfase, com tanto cuidado de compreensão e tão grande aplicação ‘científica’, é para julgá-la, ao mesmo tempo que o crime, e fazê-la participar da punição.” [p. 22]
16. “O laudo psiquiátrico, [...] a antropologia criminal e o discurso da [...] criminologia, introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos suscetíveis de um conhecimento científico, [dão] aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão ou possam ser. Não mais simplesmente: ‘Quem é o autor [ do crime]?” Mas “Como citar o processo causal que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem do crime?”. [p. 23]
17. “Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco; quanto mais louco, tanto menos culpado; culpado, sem dúvida, mas que deveria ser enclausurado e tratado e não punido; culpado, perigoso, pois manifestamente doente etc. E a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa uma decisão legal que sanciona: ela implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível. O juiz de nossos dias – magistrado ou jurado – faz outra coisa bem diferente de julgar.” [p. 23]
18. “Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instancias anexas: [...] peritos psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir[...]. A partir do momento em que se deixa a pessoas que não são os juízes da infração o cuidado de decidir se o condenado ‘merece ser posto em semiliberdade ou em liberdade condicional, se eles podem pôr um termo à sua tutela penal, são sem duvida mecanismos de punição legal que lhes são colocados entre as mãos e deixados à sua apreciação; juízes anexos, mas juízes de todo modo.” [p. 24 e 25]
19. “Resumindo: desde que funciona o novo sistema penal – o definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX – um processo global levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não são as dos juízes da infração. A operação penal inteira se carregou de elementos e personagens extrajurídicos. Pode-se dizer que não há nisso nada de extraordinário, que é do destino do direito absorver pouco a pouco elementos que lhe são estranhos. Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá-los pouco a pouco no estrito poder de punir; é, ao contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga.” [p. 25]
20. “Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade”. [nota minha: “conceito” de genealogia da punição] [p. 26]
21. “A relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão de obra suplementar – e constituir uma escravidão “civil” ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio.” [p. 28]
22. “Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem [atacam], o marcam, o dirigem o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas à sua utilização econômica [...] [A constituição do corpo] como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição; o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência e da ideologia; [...] pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física.” [p. 28 e 29]
23 . “Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície [e] no interior do corpo, pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica dessa alma que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação.” [p. 31 e 32]