Quando prescreve a pretensão punitiva?
Marcus Mota Moreira Lopes
Assessor Jurídico na Procuradoria Regional da República da 1ª Região
Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – FESMPDFT
Coautor do Curso de Direito Penal, Parte Especial (volume 2), coordenado por Paulo Queiroz, 2ª Edição. Salvador: Juspodivm, 2015.
Qual é o exato momento em que ocorre a prescrição da pretensão punitiva, impedindo a persecução penal do autor do crime? O presente artigo tem como objetivo esclarecer essa dúvida, tendo em vista que o tema é complexo, e envolve alguns detalhes sobre contagem de prazo que não costumam ser ministrados satisfatoriamente nas faculdades de Direito.
A maior dificuldade que se observa decorre do fato de o próprio Código Penal não prever uma fórmula geral de contagem de prazos em dias, meses e anos, limitando-se a dizer que o dia do começo se inclui no fluxo temporal (CP, art. 10) e quando ele se inicia (CP, art. 111, incisos I a V). Consequentemente, não há uma distinção precisa do que se considera “dia do começo”, “termo inicial” e “termo final”.
Além disso, as bancas de concursos públicos costumam avaliar os candidatos se sabem qual será o termo final da prescrição, tendo em vista que o conhecimento sobre a interrupção do prazo prescricional (CP, art. 117) no último dia do prazo será determinante para saber se houve extinção da punibilidade.
Daí surge a necessidade de tratarmos da prescrição da pretensão punitiva, a fim de delimitar com precisão até quando subsiste a pretensão punitiva do Estado.
1) Natureza jurídica do prazo prescricional:
Os prazos de prescrição são prazos de natureza penal, exclusivamente. Isso pelas seguintes razões: a) estão previstos no art. 109 do Código Penal, assim como a sua forma de contagem (art. 10 do CP). Além disso, todas as regras atinentes a essa modalidade de extinção da punibilidade estão expostas até o seu art. 118; b) a extinção da punibilidade não se refere à extinção do processo mas do “fundo de direito”, ou seja, do próprio direito concreto do Estado em realizar a persecução criminal, com vistas a obter uma condenação; c) sua existência diz respeito ao direito material penal, pois visa a proteger o indivíduo da possibilidade de vir a ser processado eternamente, salvo nos casos previstos na Constituição ou em futura lei que disponha sobre outros casos de imprescritibilidade não previstos na Carta Magna (conforme já decidiu pontualmente o Supremo Tribunal Federal); d) a contagem dos prazos regulados pelo CP é diferente da dos prazos processuais (vide art. 798 do CPP) e tem por objetivo beneficiar o réu, especialmente porque o termo final do prazo não se prorroga para o dia útil subsequente, como veremos.
2) Contagem de prazo e sua interpretação: vedação da analogia in malam partem
Conforme vimos, o prazo prescricional é de natureza penal, pois o CP prevê regra especial de contagem no art. 10, que dispõe: “O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum”. Como se vê, a redação do artigo é por demais genérica e não ajuda o intérprete a fixar seu significado. Na verdade, confunde quem o lê, porque não se sabe o que significa contar os prazos pelo calendário comum. Afinal, para a contagem do prazo de meses e anos, devemos levar em consideração os prazos em dias, já que os meses ora têm 30 dias, ora têm 31? E fevereiro, que é composto de 28 dias em ano comum e 29 nos anos bissextos?
Pois bem, o que significa então dizer que o dia do começo inclui-se no cômputo do prazo? Se o Código Penal nada diz, devemos buscar, mutatis mutandis (por analogia), uma norma no ordenamento que responda a essa indagação. Encontramos, portanto, o art. 132, caput e 3º, do Código Civil:
Art. 132. Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento. § 1º Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil. § 2º Meado considera-se, em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. § 3º Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência. § 4º Os prazos fixados por hora contar-se-ão de minuto a minuto.
Da sua simples leitura, observa-se que os meses e anos expiram no dia de igual número do de início ou no imediato se lhe faltar correspondência. Exemplo nº 1: o prazo de um mês que começa no dia 15 (termo inicial) expira no dia 15 do próximo mês (termo final). Exemplo nº 2: um prazo de 3 anos que inicia em 20/1/2000 tem seu termo final o dia 20/1/2003. Pouco importa o número de dias de um mês, se tem 28, 30 ou 31 dias. A regra, que acaba por criar uma ficção jurídica para a contagem de prazos no nosso calendário comum, visa a facilitar a aplicação do Direito.
Atente-se que o próprio dispositivo ressalva “outra disposição legal ou convencional em contrário”. Assim, pode ser que o dia do começo (que deve ser entendido como o momento em que ocorreu determinado ato ou fato jurídicos), pode coincidir ou não com o “termo inicial da contagem do prazo” (dies a quo). Um exemplo no processo civil é o art. 495 do CPC, que dispõe que “Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão.”. Confira-se, a propósito, o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça: REsp 1.112.864-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, julgado em 19/11/2014, DJe 17/12/2014 (Info 553)1. Nesse caso, está claro que o dia do começo (data do trânsito em julgado) coincidirá com o termo inicial. Logo, se a decisão ou o acórdão transitou em julgado no dia 8/5/2006, o termo final do prazo será o dia 8/5/2008.
Tendo em vista a ressalva do caput do art. 132 do CC, temos que ele também não é de todo aplicável ao Direito Penal. Sim, porque tal regra é alterada em parte pelo art. 10 do CP “ O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum”.
Portanto, aqui também o prazo da prescrição da pretensão punitiva começa a correr no “dia do começo”, definido pelo art. 111 do Código Penal:
Termo inicial da prescrição antes de transitar em julgado a sentença final
Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – do dia em que o crime se consumou;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV – nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
V – nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal. (Redação dada pela Lei nº 12.650, de 2012)
Porém, como o Código Penal é omisso quanto ao cômputo do termo final na contagem, pode-se presumir que ele deve ser sempre considerado, até porque esse marco só pode ser determinado se soubermos de antemão o termo inicial; e este, por sua vez, será definido a partir do dia do começo, ambos coincidindo ou não, conforme vimos.
É necessário, por tal motivo, utilizar uma interpretação extensiva da regra do artigos 10 do CP, que disse menos do que deveria. Isso, em conjunto com a regra do art. 132 do CC, chegamos, em síntese, à conclusão de que o prazo penal, em anos e em meses, é contado incluindo-se tanto o dia do começo (termo inicial) e o dia do vencimento (termo final).
Simplificando: no Direito Penal, o prazo de um mês que se inicie no dia 10, terminará no dia 10 do mês subsequente. E se um prazo exato de 2 anos que tenha por termo inicial o dia 5/5/2010, seu termo final será o dia 5/5/2012.
Agora o próximo passo é saber como se devem interpretar os prazos prescricionais. Adotaremos como exemplo o art. 109, V, do CP2, cuja regra diz que a prescrição verifica-se EM quatro anos, se a pena máxima for igual a um ano e se forinferior a 2 anos.
Mas este dispositivo legal também é dúbio e possibilita duas interpretações: a) o crime prescreve quando atingir exatamente 4 anos; b) a extinção da punibilidade ocorrerá somente no primeiro dia após o transcurso dos 4 anos. Qual delas está correta?
Temos que somente a primeira interpretação deve ser utilizada, que está rigorosamente de acordo com uma visão garantista dos direitos fundamentais do indivíduo e com o princípio da legalidade. A solução para o problema parece ter fundamento no princípio da segurança jurídica, visto que a subsunção às regras (normas escritas) é garantia do jurisdicionado. Logo, a aplicação da analogia e da interpretação não deve ser em desfavor do réu (vedação da analogia in malam partem)3, ressalvadas as exceções, como no caso da interpretação analógica, que permite ao aplicador do direito dizer no caso concreto se houve, por exemplo, motivo fútil ou torpe, para fins de imputação em homicídio simples ou qualificado.
Se assim é, podemos dizer que é equivocada a interpretação de que o prazo de prescrição é um prazo a favor do Estado e contra o réu. Não! Isso significaria retirar a garantia do art. 10 do CP em computar o dia da prática do crime (nos termos, é claro, do art. 111 do CP) como início do prazo. A intenção legal é clara ao beneficiar, ao menos indiretamente, o autor do crime. Antes disso, a norma penal exige que o Estado persiga os criminosos imediatamente, não se permitindo postergar essa atividade tão urgente para o dia seguinte, ou, pasmem, para o dia útil subsequente. Seria um absurdo pensar que o Estado poderia começar a exercer sua pretensão punitiva após as férias forenses…
Diante de tudo o que foi dito, a única interpretação possível quanto à prescrição é no sentido de que ela é exercida CONTRA o Estado. É ele quem possui o dever-poder de processar e perseguir dentro dos prazos permitidos legalmente. No dia do crime já está correndo o prazo para esse mister.
É por isso que na prescrição penal não se aplica a regra do art. 132, §3º, do CC, que permite a prorrogação do prazo prescricional para o próximo dia útil, como ocorre nos prazos de direito civil e nos processuais (no da ação rescisória inclusive, conforme o precedente citado).
Não se admite eventual dilação em prejuízo do réu tão somente para oportunizar um prazo para quem quer que seja, principalmente para a acusação. Assim, o prazo prescricional penal não segue a regra do direito civil, pois não se interrompe nos dias não úteis e nos feriados. Se a prescrição vier a ocorrer no domingo, a denúncia deve ser oferecida até o dia útil que lhe antecede.
3) Data da extinção da punibilidade pela prescrição e o último dia do exercício da pretensão punitiva
Enfim, a resposta à pergunta inicial é a seguinte, portanto: Nos termos do art. 109, V, do CP, o delito não é mais punível NO EXATO MOMENTO EM QUE SE COMPLETAREM 4 (QUATRO) ANOS. Dito de outro modo, com mais um exemplo: o Estado não tem quatro anos mas, sim, até o dia anterior deste lapso temporal para receber a denúncia e interromper a prescrição (CP, art. 117, I4), renovando-se o prazo. Uma vez alcançado o termo final, ou mais, a pretensão punitiva estará prescrita e o agente não poderá desde então ser punido pelo fato praticado há 4 anos.
Com a redação dada ao art. 109, percebe-se que o primeiro cálculo a ser feito sobre a prescrição deve recair sobre a pena máxima cominada em abstrato para cada infração penal. Se o cálculo deve ser realizado antes mesmo de qualquer sentença condenatória, na qual é concretizada a pena aplicada ao agente, podemos concluir que a prescrição que leva em consideração a pena máxima cominada a cada infração diz respeito à pretensão punitiva do Estado.
Assim, suponhamos que alguém tenha praticado um delito de lesões corporais cuja pena máxima seja de um ano de detenção. Em razão do disposto no inciso V do art. 109 do Código Penal, a prescrição pela pena máxima em abstrato ocorrerá em quatro anos. Se, por exemplo, durante a instrução do processo, após o primeiro marco interruptivo da prescrição , que, como veremos, é o recebimento da denúncia, já tiver decorrido período igual ou superior a quatro anos, o juiz interromperá a instrução do feito e reconhecerá a extinção da punibilidade com base na prescrição da pretensão punitiva do Estado.
Esses prazos fornecidos pelos incisos do art. 109 do Código Penal servirão não somente para o cálculo da prescrição, como também para aqueles relativos à pena já concretizada na sentença condenatória. (grifo nosso)
Está claro então que o “termo final” da prescrição, segundo interpretação restritiva do art. 109 do CP, determina a extinção da punibilidade do crime e não o último dia de interrupção do lapso prescricional.
De acordo com o que foi exposto, seguem exemplos de como se determina, corretamente, o último dia em que é possível a persecução penal:
1) X consumou a prática de um crime no dia 18/7/2000, cuja pena máxima é de 2 (dois) anos. Assim, nos termos do art. 109, V, do CP, a denúncia deve ser recebida pelo juiz até o dia 17/7/2004, considerando que, se o delito prescreve EM 4 quatro anos, e contado o termo inicial no cômputo do prazo, o crime está prescrito em 18/7/2004, pois é no termo final o momento em que se extingue a punibilidade.
2) Y teve a denúncia recebida em seu desfavor no dia 20/8/2006. O crime por ele praticado comina pena máxima de 6 (seis) anos, prescrevendo (in abstracto) em 12 (doze anos). Portanto, é correto afirmar que o juiz tem até o dia 19/8/2018 para prolatar sentença condenatória, visto que o termo final do prazo é o dia 20/9/2018, data em que a punibilidade será extinta pela prescrição, pois o art. 10 do CP determina a inclusão na contagem do dia da interrupção da prescrição pelo recebimento da peça acusatória.
3) Z foi condenado a 2 (dois) anos e 1 (um) dia de reclusão em 15/3/2015, data em que a sentença foi publicada em cartório, prescrevendo em 8 (oito) anos, nos termos do art. 109, IV, do CP. Como a pena foi baixa, e a partir da condenação o parâmetro para aferição da prescrição passa a ser a pena aplicada no caso concreto (CP, art. 110, § 1º), e tendo em vista que a denúncia foi recebida há 10 (dez) anos (em 15/3/2005) houve prescrição retroativa desde o dia 15/3/2013. Com essa pena aplicada, o juiz deveria ter publicado a sentença condenatória até o dia 14/3/2013, um dia antes do termo final, se quisesse evitar a extinção da punibilidade com base na pena definitiva que fixou.
Note-se, ainda, que as regras acima aplicam-se tanto para a prescrição com base na pena em abstrato quanto para a prescrição com base na pena em concreto (intercorrente), tanto na modalidade “retroativa” (retroagindo para antes da sentença condenatória) quanto na “superveniente” (após a sentença condenatória).
Em conclusão, podemos afirmar que:
a) Os prazos prescricionais têm natureza de direito material, e por isso são contados diferentemente dos prazos processuais e dos prazos civis: computam-se o dia do começo e o dia do final, por meio de interpretação extensiva do art. 10 do CP;
b) Os prazos prescricionais penais não se prorrogam para o próximo dia útil subsequente, sob pena de prejudicar o réu. A prescrição corre contra o Estado e imediatamente após o crime e já nesse dia ela começa a correr;
c) O art. 109 do CP diz sempre que a prescrição se verifica em X anos e não no dia seguinte. A fim de se evitar uma analogia/interpretação in malam partem, o termo final é o dia em que a punibilidade está extinta;
d) Consequentemente, o último dia para o exercício da pretensão punitiva é aquele imediatamente anterior ao termo final. Já computado o dia do começo e excluindo-se o do final, se um prazo prescricional de 4 anos se inicia, por exemplo, no dia 4/3/2004, o último dia em que o Estado pode agir contra o indivíduo é no dia 3/3/2008. O advento do termo final (4/3/2008) implica desde logo a ocorrência da prescrição.
1 Mais explicações sobre a contagem do prazo na ação rescisória estão disponíveis no sítio eletrônico “Dizer o Direito”: http://www.dizerodireito.com.br/2015/02/o-que-acontece-se-o-ultimo-dia-do-prazo.html
2 Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010). I – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze; II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze; III – emdoze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito; IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro; V – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois; VI – em dois anos, se o máximo da pena é inferior a um ano.VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).
3 Nesse sentido ensina Paulo Queiroz (Direito Penal, vol. 1, 2015, p. 118): É comum dar-se à analogia no direito e fora dele, tratamento secundário, por se pressupor, em geral, que o meio mais apropriado para a interpretação/aplicação do direito é a subsunção, em nome da segurança jurídica principalmente. Afirma-se assim que a analogia só é permitida em no direito penal quando for para beneficiar o réu (in bonam partem), não para prejudicá-lo (in malam partem); distingue-se ainda analogia de interpretação analógica, que seriam institutos distintos. (…)
4 Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se: I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa. (…)
5 GRECO, Rogério. Direito Penal, Vol. 1, 2013, p. 739.
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