Um querido leitor havia me solicitado, há um tempo atrás, para que eu escrevesse sobre misantropia. Talvez você não saiba o que esta palavra significa, então, vamos começar por ela: misantropia vem do grego. O final da palavra antropia vem de anthropos (άνθρωπος) que significa homem, ser humano. De άνθρωπος vem a palavra antropologia – que também estudamos na faculdade de psicologia, área dedicado ao estudo da cultura humana.
E o começo da palavra misantropia, mis, vem também do grego μίσος (misos) e significa ódio. Por exemplo, na palavra misoginia nós temos o mesmo prefixo mis (ódio) mais ginia (gyné significa mulher), então, misoginia é literalmente ódio à mulher.
Mas voltando à nossa palavra, misantropia significa ódio ao ser humano, ódio à humanidade em geral. Embora pareça forte dizer deste jeito, o conceito não implica necessariamente uma forma de violência. Devemos falar em vários graus de misantropia. É comum ter ódio ou aversão contra povos que são diferentes de nós, o que é um prato cheio para os estudos da antropologia, como é o caso da intolerância religiosa.
Também é comum ter aversão por um tipo específico de população, como pessoas que sentem aversão a quem é pobre ou aversão a quem tem uma determinada cor de pele. Há a misantropia que é dirigida à mulher (misoginia) e misantropia contra quem não tem o mesmo “nível” cultural. O que ficou conhecido como “rolezinho” nos Shoppings Centers em São Paulo parece ter despertado este tipo de misantropia contra pessoas pobres, normalmente negras, e que seriam inferiores e não poderiam frequentar certos lugares.
O que eu quero dizer, com isso, é que quando ouvimos falar de misantropia e quando vemos a definição como ódio ao ser humano ou aversão à humanidade, podemos ter uma visão de que ninguém tem isso. Ou, no máximo, só tem isso quem é um perturbado mental. Mas como é fácil de perceber, não é isto o que acontece na realidade. Existem diversos graus de aversão ao ser humano, por características que podem ser sociais, culturais, intelectuais, morais, espirituais ou religiosas, econômicas, etc.
A fim de refletirmos um pouco sobre as várias modalidades que são possíveis encontrar um certo grau de misantropia, gostaria de mencionar uma em especial e com a qual eu convivo frequentemente por estar no ambiente mais “elevado” das grandes instituições superiores de ensino no Brasil: a misantropia de quem se acha intelectualmente superior e não quer se misturar com a ralé que não sabe de nada.
Um exemplo do Livro Vermelho, de Jung
No Livro Vermelho, de Jung, uma espécie de diário autobiográfico de sonhos e visões, há uma narrativa na qual o autor em uma imaginação ativa (em resumo, uma fantasia ou devaneio) encontra um eremita chamado Amônio. Amônio era um professor de filosofia, erudito e espirituoso que vivia na cidade de Alexandria. Certo dia, ele encontra um antigo amigo de seu pai que lhe converte ao cristianismo ao apresentar a ideia de que Deus havia se feito homem.
Amônio, então convertido, muda-se para o deserto para estudar as Sagradas Escrituras. Nos capítulos Dies I e II (Dia 1 e 2), Jung conversa com Amônio e aprende com ele, até que percebe que o caminho do anacoreta era a solidão que lhe afastava dos demais. O objetivo de Amônio era encontrar o sentido profundo da Bíblia, bem como seu sentido vindouro. E Jung lhe pergunta: “Não chegas a acreditar que esta obra poderia antecipar seu êxito se estivesses mais perto das pessoas?” (JUNG, 2010, p. 272).
A primeira interpretação é que isto era uma tentação do mundo, uma tentação demoníaca. Depois, Amônio reflete e descobre que o melhor a fazer seria mesmo sair de seu isolamento no deserto.
Bem, fiz questão de citar este pequeno trecho do Livro Vermelho para mostrar que esta luta interna também esteve presente na psique do criador da Psicologia Analítica. A luta entre querer se isolar para estudar e querer estar entre a gente. Depois que li este trecho, entendi porque Jung sempre criticava as pessoas que se isolavam em seus pequenos universos, sem trocar nada com ninguém ou iam para países totalmente diferentes apenas para fugir de seus conterrâneos.
O significado deste trecho é, de certa forma, semelhante a outro trecho do Livro Vermelho, no qual Jung encontra um erudito silencioso fechado em seu castelo, imerso em suas leituras. É o capítulo “O Castelo na Floresta”. Ele escreve:
“Assim como tendes parte na natureza multiforme do mundo através de vosso corpo, assim tendes parte na natureza multiforme do mundo interior através de vossa alma. Este mundo interior é realmente infinito e em nada mais pobre do que o exterior. O ser humano vive em dois mundos. Um demente vive aqui ou lá, mas nunca aqui e lá” (JUNG, 2010, p. 264).
Jung critica, portanto, a crença de que um intelectual viva uma vida interior. Em sua opinião, a pessoa que se dedica às pesquisas em livros, à academia, vive mais fora de si do que dentro, pois, embora não viva externamente como os demais, vive o pensamento exterior de outros. Este tipo de unilateralidade é tão prejudicial como dos que vivem e perdem décadas em atividades exteriores e não encontram o seu interior. Como ele diz, viver só fora de si ou viver só dentro de si é uma unilateralidade prejudicial.
Conclusão
Existem muitos tipos de misantropia, muitos níveis e gradações do que é o ódio ao ser humano, o ódio à humanidade. Pode ser apenas um desprezo como aquele que diz que prefere os bichos aos homens ou pode ser o ódio, violento e assassino, de alguém que planeja e executa o plano de matar dezenas e até centenas de pessoas em um ataque. É mais fácil de ver a misantropia no outro. Em dois sentidos: é mais fácil criticar e ver que as outras pessoas tem pensamentos muito limitados (“mas eu não tenho esse tipo de pensamento”) e no sentido de que é o outro, o diferente, o estranho (em muitas línguas o estrangeiro é a mesma palavra para estranho) que desperta a exclusão, o preconceito, o sentimento ilusório de superioridade.
Por exemplo, alguém que tenha uma determinada crença religiosa pode dividir – como fez Amônio – a existência em dois pólos opostos: a Igreja e o mundo. É curioso analisar da perspectiva da psicologia da religião, a psicologia que estuda os fenômenos religiosos, este tipo de fenômeno. A pessoa acredita que apenas o que ela crê é certo e todo o mundo está errado, todo o resto do mundo é pecado. É como na crítica de Hegel à Kant: o Absoluto não pode ser menor e relativo, senão não é Absoluto. Se o Absoluto exclui o sujeito e encontra-se apenas fora dele ou encontra-se fora do mundo, ele não é Absoluto, ele é relativo e parcial…
Enfim, este acaba sendo um outro assunto. Mas o objetivo do texto foi o de ser uma reflexão sobre a misantropia, pegando como exemplo específico os acadêmicos torre de marfim que vivem uma vida inteira pensando que são melhores do que as outras pessoas que não leram o que eles leram e não dialogam com ninguém e, igualmente, o exemplo do religioso que foge do mundo ou não tem nenhum amor pelos outros.
A saída para a misantropia é, então, é o oposto: o Amor Mundi, o amor ao mundo.
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