Pior da pandemia de Covid-19 está por vir, alerta OMS
Declaração é dada após mundo bater marca de 10 milhões de casos
29 jun 2020
14h44
A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou nesta segunda-feira
(29) que a pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) está longe de
terminar e o pior momento ainda está por vir.
A declaração foi dada pelo diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom
Ghebreyesus, durante coletiva de imprensa, um dia depois do mundo passar
a marca de 10 milhões de casos confirmados e 500 mil óbitos provocados
pela doença, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.
NÃO VOS ASSUSTEIS: METADE DA POPULAÇÃO DO GLOBO TERRESTRE SERÁ DIZIMADA. É UM CORRETIVO MORAL ! ! !
(Raymundo Evangelhista)
"Todos nós queremos que isso acabe. Todos queremos continuar com nossas vidas. Mas a dura realidade é que isso não está nem perto de acabar", disse Tedros, ressaltando que "embora muitos países tenham feito algum progresso globalmente, a pandemia está na verdade acelerando".
Segundo ele, "a maioria das pessoas permanece suscetível", principalmente porque "o vírus ainda tem muito espaço para se movimentar".
"O novo normal será conviver com o vírus. Nos próximos meses, precisaremos de ainda mais resiliência, paciência e generosidade", acrescentou o diretor da OMS.
Tedros também lembrou que nesta terça-feira (30) completará seis meses desde que a entidade recebeu os primeiros relatos dos casos da Covid-19 na China. Na ocasião, as causas da doença respiratória ainda eram desconhecidas.
"Esse é um momento para todos nós refletirmos sobre o progresso que fizemos e as lições que aprendemos", disse ele, ao pedir para as nações renovarem os compromissos para salvar vidas.
Apesar do tom pessimista, o chefe do programa de emergências da OMS, Mike Ryan, ressaltou o progresso na tentativa de encontrar uma vacina segura e eficaz contra o novo coronavírus, mas alertou que, até o momento, não existe garantias do sucesso do medicamento.
Literatura – Aguinaldo Severino escreve sobre “Free women, free men”, de Camille Paglia
Professor Aguinaldo Severino
Comprei esse livro ainda em abril, mas os serviços alfandegários
brasileiros, ineficientes e canalhas como sabem ser, me fizeram
recebê-lo apenas em julho.
Em
“Free Women, Free Men” encontramos 36 ensaios robustos, onde Camille
Paglia apresenta sua visão bastante particular e provocadora sobre
feminismo, sexo e gênero. Mais precisamente, encontramos no livro os
três primeiros capítulos de seu livro mais contundente, “Personas
Sexuais”, de 1990; três transcrições de palestras ou conferências
acadêmicas; três resenhas literárias; cinco transcrições de entrevistas;
vinte e dois ensaios independentes, publicados originalmente em
revistas e jornais americanos e ingleses.
O conjunto também pode ser dividido cronologicamente, em dois grandes
blocos: dezenove são textos relativamente antigos, dos anos 1990,
associados a repercussão de “Personas Sexuais”, e quatorze mais
recentes, dos anos 2010.
O leitor não precisa ler os ensaios do livro sequencialmente, na
ordem em que foram editados. Há uma natural repetição de temas e
informações, mas isso não chega a aborrecer o leitor. É inegável que
cada um deles se defende sozinho e oferece um festival de associações
(“Personas Sexuais” é imbatível, qualquer pessoa honesta
intelectualmente que trabalhe com esses assuntos não pode furtar-se de
lê-lo).
Alguns ensaios são panfletos marcadamente políticos, mais agressivos,
incisivos, categóricos; em outros o tom é mais professoral, acadêmico,
frio, mas sem condescendência. Há vários ensaios em que Camille defende
seus argumentos sobre política sexual, mídia e o papel das universidades
como foro de discussão; noutros encontramos abordagens acadêmicas sobre
a história do feminismo, estética, cultura pop, a história das lutas
pelas liberdades civis nos Estados Unidos.
No
fundo seu tema principal não é exatamente o feminismo, a luta por
igualdade de gênero, mas sim a cultura, a evolução da cultura como
núcleo central de coesão entre seres humanos de diferentes lugares do
planeta, origens étnicas e gêneros.
É interessante como ela antecipa, nos artigos dos anos 1990, a
ascensão de uma geração de acadêmicos dedicados aos temas de feminismo e
gênero que não alcançaram uma formação adequada, fatalmente
contaminados por retóricas foucaultianas, lacanianas, desconstrutivistas
e marxistas.
“Free Women, Free Men: Sex, Gender, Feminism”, Camille Paglia,
New York: Pantheon Books / Penguin Random House, 1a. edição (2017)
Entrevista – Camille Paglia
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Reconhecida intelectual norte-americana, Camille Paglia fala à CULT de feminismo, homossexualidade, política e cultura pop
Gunter Axt
De seu grande livro de estreia, Personas sexuais, publicado no Brasil em 1990, ao recente Break, Blow, Burn, antologia
comentada de 43 poemas, ainda inédito por aqui, a historiadora da arte e
da cultura Camille Paglia tornou-se conhecida pela importância de sua
obra e pela sua combatividade em muitas controvérsias nas quais se
envolveu. Formada pela Universidade de Yale e professora no Philadelphia
College of the Performing Arts, na Pennsylvania, a nova-iorquina de
ascendência italiana é considerada uma das principais teóricas do assim
chamado pós-feminismo, sendo reconhecida no ranking da revista Foreign policy como uma das intelectuais mais influentes do planeta.
Seu método acadêmico é erudito, comparativo e descritivo. É,
portanto, a partir de sólida base – a reflexão sobre a religião
comparada, sobre a apropriação simbólica das artes ou sobre a maneira
pela qual uma obra artística foi produzida – que Camille produz ensaios
de grande repercussão midiática. Apesar da elaborada formação clássica,
Camille interessou-se pela cultura popular, valorizando o tema da
cultura de massas no ambiente acadêmico.
Camille visitou quatro vezes o Brasil. Em 1996, promovendo o lançamento de seu Vampes e vadias,
foi ao Rio de Janeiro e a São Paulo, em companhia de sua então
companheira Alison Maddex. Em 2007, conferenciou em Porto Alegre e, em
2008, em Salvador. Retornou a Salvador em fevereiro de 2009 para curtir o
carnaval baiano. Declara-se apaixonada pelo Brasil.
Na entrevista a seguir, Camille Paglia fala de Madonna, de Michael
Jackson e de Daniela Mercury. Discute a política norte-americana e
comenta seu mais recente trabalho publicado nos Estados Unidos. Fala
ainda de casamento gay, da adoção de crianças por casais gays e de
religião.
CULT – Seu último livro, Break, blow, burn, é um comentário de 43 poemas. Como foi que você selecionou esses poemas e que método usou para analisá-los?
Camille Paglia – O livro é uma mistura de poemas
ingleses famosos e obscuros. Ele vai de Shakespeare a Joni Mitchell,
cuja canção “Woodstock” abordo como uma ode à natureza durante os
revolucionários anos 1960. Eu queria alcançar as massas que já não leem
poesia e que agora são absorvidas pela TV, pelos videogames e pela
internet. O livro tornou-se, surpreendentemente, um best seller nos EUA –
o que demonstra que de fato há um anseio por beleza e por sentido que
não tem sido satisfeito pela nova tecnologia.
CULT – Como você analisa os primeiros meses do presidente Barack Obama?
Camille – Eu apoiei Obama nas eleições primárias do
Partido Democrata e doei dinheiro para a sua campanha. Acho que ele está
ocupando seu cargo com autoridade e dignidade e que sua esposa,
Michelle, se tornou uma vigorosa e elegante primeira-dama. Infelizmente,
a crise econômica mundial que o presidente herdou fez com que seus
primeiros meses fossem muito turbulentos. Eu não acho que suas
nomeações, em especial na área da economia, tenham sido tão boas quanto
deveriam. O resultado foi uma primeira semana desastrosa, em que Obama
permitiu passivamente que o Congresso aprovasse um pacote de incentivo
econômico tão grotesco e extravagante que fez com que o desmoralizado
Partido Republicano ressuscitasse. Num piscar de olhos, Obama perdeu
toda a esperança de governar de maneira unificadora na estrutura
bipartidária.
Fiquei satisfeita com seu discurso no Cairo, que tratou de curar as
divisões entre o Ocidente e o mundo muçulmano, mesmo que alguns detalhes
tenham me parecido ingenuamente otimistas ou historicamente imprecisos.
A atmosfera política nos Estados Unidos voltou ao partidarismo amargo e
feroz.
CULT – E quanto a Hillary Clinton, cuja campanha presidencial você criticou?
Camille – Eu era uma fã de Hillary quando ela
apareceu na cena nacional durante a primeira campanha presidencial de
Bill Clinton, em 1992. Achei que ela era uma mulher forte e franca. Mas
depois me decepcionei com sua megalomania à Evita, com seus sigilos
paranoicos e seu gerenciamento amador da reforma da saúde em 1993. As
duas administrações de Clinton foram uma cadeia de escândalos
autoinduzidos. Quais eram as qualificações de Hillary para a
presidência, além de ter sido casada com Bill? As feministas a adoravam,
mas ela nunca conseguiu nada por si própria.
CULT – Na sua opinião, o que Michael Jackson representa para a cultura pop?
Camille – Como a Madonna, Michael Jackson decaiu
lentamente do ofuscante cume de seu brilho artístico. Historiadores da
música estudarão quanto os álbuns mais importantes de Michael deveram à
sua colaboração com o produtor virtuoso Quincy Jones. Michael fez muito
pouco de grande música depois que a parceria com Jones acabou. Michael é
uma de muitas estrelas infantis admiráveis, como Judy Garland, que
tiveram problemas na transição para a vida adulta e acabaram se tornando
viciadas em drogas.
Michael era muito talentoso e, apesar disso, deleitava-se com
produções exageradas em que se apresentava arrogante como um mártir
semelhante a Cristo. um gângster pomposo ou um líder de esquadrão
fascista. Ele era um dançarino maravilhoso, mas nunca evoluiu para além
de um conjunto nuclear de passos de marionete e aquele ilusório “moon
walk”. Seu repertório vocal também cessou de se desenvolver – a emoção
sincera era truncada por grunhidos e soluços sufocados. Todos nós
intuíamos as agonias acerca de sua raça e de seu gênero sinalizadas
pelas cirurgias plásticas que ele fazia compulsivamente. Menos perdoável
era a maneira com a qual ele tratava seus filhos, mentindo sobre sua
paternidade e forçando-os a usar máscaras em público. A ironia é que,
agora que Michael morreu, nós podemos rever todo o corpus de
sua obra e aproveitar e celebrar o que nele há de soberbo e de melhor.
Não há dúvida de que a vida mais autêntica de Michael se deu no palco.
Todo o resto foi um caos.
CULT – Você já criticou o casamento gay. Por quê?
Camille – Por 20 anos, tenho clamado pela
substituição de todo casamento, homossexual ou heterossexual, pela união
civil. O Estado, que governa os direitos de propriedade, deve ser
estritamente separado da religião e não deve jamais sancionar
sacramentos religiosos. Pessoas que querem a bênção de uma igreja devem
se sentir livres para ter uma segunda cerimônia na igreja que
escolherem. Eu acredito que os ativistas gays dos Estados Unidos
cometeram um sério erro estratégico ao reivindicar o casamento, porque a
palavra “casamento” é muito associada à tradição religiosa e gera uma
revolta entre os conservadores. Em vez disso, os ativistas deveriam se
concentrar nos benefícios específicos injustamente negados às uniões
gays. Por exemplo, nos Estados Unidos, se um gay morre, seu parceiro não
recebe os benefícios do seguro social, que, no caso das uniões
heterossexuais, vai automaticamente para o parceiro. Isso é uma afronta!
Mas esse ponto tem sido deixado de lado pelos ativistas gays por conta
do seu entusiasmo pela quimera reacionária do “casamento”. Uma visão de
esquerda autêntica (como nos anos 1960) iria desafiar todo o conceito de
casamento.
CULT – Você terminou recentemente um relacionamento de 15 anos com sua parceira Alison Maddex. Vocês foram casadas formalmente?
Camille – Na realidade, nós terminamos há um ano e
meio, mas a notícia surgiu na mídia somente agora. Não, nós não fomos
casadas. Um dos pontos altos do nosso relacionamento foi a repercussão
na mídia de nossa visita ao Brasil em 1996. Nós amamos os brasileiros.
Na verdade, o mais importante relacionamento da Alison, antes do nosso,
foi com uma brasileira.
CULT – Como você avalia a possibilidade de um relacionamento amoroso de longa duração entre duas mulheres?
Camille – Para ser franca, sou pessimista quanto a
eles do ponto de vista erótico. As lésbicas formam laços de lealdade
muito profundos – compromissos vitalícios que têm sido observados desde o
famoso caso das “senhoritas de Llangollen”, que aconteceu há dois
séculos no País de Gales. Mas sou cética sobre quanto “fervor” sexual
ainda pode haver entre duas mulheres depois de dez ou 20 anos. Existem,
entre escritores gays, casos muito famosos de casais de homens que
ficaram juntos por toda a vida — W.H. Auden, Allen Ginsberg, Gore Vidal.
Mas eles jamais exigiram de seus parceiros a exclusividade sexual.
Ambos os amantes tinham divertidas aventuras alhures com jovens
atraentes. Isso não parece possível com as lésbicas. A aventura externa
acaba representando uma traição do laço emocional. Eu mesma fui, de modo
entediante, monogâmica em minha conduta. Olhando em retrospecto (dado o
número de assédios que recebi tanto de homens quanto de mulheres nos
últimos 20 anos), acho que foi um erro!
CULT – Você e Alison têm um filho. O que pensa sobre a adoção e a criação de crianças por casais gays?
Camille – Meu filho, que adotei legalmente depois
que nasceu, sete anos atrás, é filho biológico de Alison e está sendo
criado por nós duas de modo amigável. Usamos uma clínica de fertilidade
da Filadélfia e um banco de esperma da Califórnia para escolher um
doador anônimo. Tivemos a sorte de a adoção gay ser permitida no estado
da Pensilvânia – o que não ocorre em algumas partes dos Estados Unidos.
Não gosto da ideia de “duas mamães” ou de “dois papais” para os filhos
de casais gays. Acho que isso pesa muito sobre a criança na forma de
aborrecimentos desnecessários durante a adolescência. Meu filho tem
apenas uma mãe – Alison – e é por isso que ele tem o sobrenome dela. Não
gosto dos nomes longos nem das combinações hifenizadas construídas por
muitos pais gays. Essas são estratégias desenvolvidas para proteger o
amor-próprio de adultos, e não o bem da criança. De forma geral, a
criação de uma criança por um casal gay é um enorme experimento social
tornado possível por um clima liberal na cultura ocidental. Tenho muita
esperança de que os resultados gerais serão positivos – mas a essa
altura ninguém pode ter certeza.
CULT – Em recente entrevista a uma emissora de televisão de
Toronto, você declarou que estava “loucamente apaixonada” por Daniela
Mercury, que você conheceu no último carnaval de Salvador. Alguns sites
brasileiros especularam que vocês estavam tendo um caso amoroso. Como é a
sua relação com ela?
Camille – Tendo Vênus por minha testemunha, afirmo
ser uma simples devota no culto a Daniela, que tem inúmeros seguidores
ao redor do mundo. Tudo começou há um ano, muito antes de conhecê-la
pessoalmente, quando fui presenteada com um pacote com seus DVDs depois
de uma palestra que proferi em Salvador. Eu estava absolutamente
eletrizada pelo brilho artístico de Daniela e me tornei uma estudiosa de
seu trabalho, sobre o qual escrevi no site Salon.com. Depois de anos de
desilusão com o declínio da qualidade dos filmes de Hollywood e da
música popular nos Estados Unidos, fiquei estonteada com o samba-reggae
da Bahia, que Daniela reinterpretou de forma explosiva. Além disso,
Daniela era a encarnação viva de muitas de minhas ideias — como as
desenvolvidas em Personas sexuais, que ela representa em seus maravilhosos figurinos teatrais e coreografias.
Quando conheci Daniela no carnaval, fiquei encantada pelo seu calor
despretensioso e humano. Mas esse também foi um momento de grande
revelação, porque nunca na minha vida eu tinha conhecido alguém, homem
ou mulher, em quem tivesse reconhecido uma corajosa imaginação
sincrética como a minha. Talvez seja por nossa ascendência italiana! O
barroco Bernini floresce em Daniela. Além disso, Daniela casou-se com um
homem que eu adoro. Desde o momento em que conheci Marco Scabia na casa
de Daniela, fiquei profundamente impressionada com ele, como pessoa e
como pensador. Ele é tão bonito espiritualmente quanto fisicamente. Toda
foto tirada de Daniela e Marco juntos resplandece com a luz da química
mútua que eles têm. Eles merecem toda a felicidade na vida!
CULT – Vampes e vadias finalmente está sendo
publicado na França. É seu primeiro livro publicado naquele país. Você
acredita que a sua crítica ao pós-estruturalismo francês pode ter
contribuído para o eventual desafeto encontrado por sua obra ali? O que
mudou?
Camille – Duvido que tenha sido minha campanha
militante contra Jacques Derrida, Jacques Lacan e Michel Foucault o que
causou esse atraso, pois esses autores já estavam obsoletos na França na
época em que os professores norte-americanos os promoviam servilmente.
Foi pelo fato de eu ter absorvido tanto as ideias francesas desde a
minha infância (meu pai ensinava francês) que os franceses não
precisavam de mim. Fiquei famosa por atacar o puritanismo
anglo-americano no feminismo e na academia. Eu estava simplesmente pondo
em prática as lições que aprendi de Sade, Gautier e Balzac, assim como
de Jeanne Moreau e de Catherine Deneuve! As feministas francesas eram
muito chiques e nunca atacaram a arte ou a indústria da moda, como
fizeram as feministas anglo-americanas. Mas algo estranho pode estar
acontecendo na França; por exemplo, um documentário francês sobre
pornografia para o qual fui entrevistada há vários anos teve seu
lançamento proibido em um julgamento. Assim, o meu trabalho, com sua
defesa da liberdade de expressão e da fantasia sexual, pode parecer
especialmente relevante neste momento.
CULT – Você está trabalhando em algum novo projeto neste momento?
Camille – Estou escrevendo um novo livro na linha de Break, blow, burn. É sobre a história das artes visuais e também visa o grande público.
Em 9 de abril de 2019, a reconhecida historiadora cultural
Camille Paglia, autora de oito livros – alguns icônicos em muitos
países, como Personas Sexuais –, estava pronta
para falar de Mick Jagger e David Bowie em uma conferência intitulada
“Imagens Ambíguas: Dualidade Sexual e Multiplicidade Sexual na Arte
Ocidental”, na Universidade das Artes da Filadélfia, quando
manifestantes a interromperam. Antes da palestra, um grupo protestava
contra comentários sobre agressão sexual e transgenerismo, divulgados
nas mídias sociais, que teriam sido feitos há anos por Camille em
entrevistas diversas. Cerca de 40 minutos depois do início da palestra,
um manifestante acionou o alarme de incêndio no corredor, causando o
cancelamento do evento, pois todos os 17 andares do prédio da
universidade tiveram de ser evacuados. No dia seguinte, o presidente da
UArts, David Yager, publicou, via e-mail, uma contundente declaração em
defesa da liberdade de expressão: “limitar o leque de vozes na sociedade
corrói nossa democracia. As universidades, além disso, estão no centro
da noção revolucionária de liberdade de expressão: promover a livre
troca de ideias é parte da razão central de sua existência.” E concluiu,
enfático: “agora não, não na UArts!”. Os ativistas, rejeitando a
declaração como “ignorante”, promoveram uma petição online exigindo a
demissão de Camille da universidade, onde ela leciona desde 1984, e sua
substituição por uma “pessoa queer e de cor”.
A resposta do presidente poderia ser considerada óbvia: em
defesa de um membro do corpo docente sênior (com relevante produção
acadêmica, de repercussão internacional), da autonomia para decidir
sobre o currículo e da liberdade de expressão. Mas a verdade é que
provocou forte impressão. Porque os Estados Unidos vêm sendo sacudidos
por episódios cujo desfecho tem sido frequentemente o oposto.
Como na Universidade de Yale, em novembro de 2015, quando
por duas horas um grupo de estudantes cercou o respeitado sociólogo
Nicholas Christakis, o Mestre do Silliman College, com gritos e
explosões de choro. A fúria foi desencadeada porque sua esposa, uma
psicóloga infantil, sugeriu em um e-mail que os alunos de graduação
poderiam escolher seus trajes de Halloween sem a aprovação do
“escritório de diversidade” – como se no Brasil precisássemos de um
departamento para regular o carnaval. Alguns interpelaram Christakis:
“Não importa se você concorda ou não. Não é um debate!” Uma garota
gritou: “Você é nojento!” As imagens de vídeo são perturbadoras, pois
vemos Christakis acreditando na força do diálogo, cercado por estudantes
infantis e desesperados – representação perfeita do que é chamado de
“geração floco de neve”: uma turma ultrassensível que explode em
lágrimas diante de qualquer frustração. Nenhum aluno foi repreendido por
insubordinação, e Yale até mesmo concedeu prêmios a alguns, depois que o
presidente, Peter Salovey, agradeceu àqueles que invadiram o gramado de
sua casa à noite, abraçando a ideia de que tinha algo a aprender com
eles. Diante da capitulação adulta, o assédio e a intimidação aos
Christakises continuou por meses. O casal finalmente renunciou e deixou a
residência do Mestre, embora Christakis tenha continuado com sua
posição na faculdade de Yale. Sua esposa, porém, não ensinaria mais lá.
Em maio de 2017, um grupo de estudantes invadiu a aula de
biologia do popular professor Bret Weinstein, um progressista de
esquerda de longa data, no Evergreen State College, e o chamou de
“racista” por ter recusado o decreto do diretor de orientação
multicultural para todos os professores brancos suspenderem seus cursos e
permanecer fora do campus em um “Dia da Ausência”, uma forma de empatia
por não-brancos. Weinstein chamou o banimento de brancos do campus de
um “ato de opressão por si mesmo”, por causa de seu direcionamento da
cor da pele. Weinstein e sua esposa bióloga, Heather Heying, finalmente
renunciaram à Evergreen, depois de entrarem com uma ação judicial
alegando que a faculdade “não protegeu seus funcionários de repetidas
hostilidades verbais e escritas provocativas e corrosivas baseadas em
raça, bem como de ameaças de violência física”.
O psicólogo canadense Jordan Peterson também teve aulas de
pós-graduação e palestras interrompidas, como em março de 2017 na
Universidade McMaster, e, um ano depois, na Queen’s University. Ao
discordar de certos exageros do politicamente correto e da intervenção
do Estado no modo como as pessoas podem falar ou escrever, Peterson foi
acusado de “transfobia”. Recentemente, em um episódio nebuloso, a
Universidade de Cambridge cancelou um convite a Peterson para um período
como professor visitante, sem dar uma razão.
Em maio deste ano, a Harvard College demitiu o professor
Ronald Sullivan e sua esposa, Stephanie Robinson, de seus cargos de dez
anos como co-reitores residentes da Winthrop House porque Sullivan
decidiu se juntar à equipe de defesa do controverso produtor de filmes
Harvey Weinstein, acusado de múltiplos estupros e assédios e pivô do
movimento #MeToo. Embora Weinstein não tenha sequer sido
julgado e o direito a um advogado de defesa seja uma garantia
constitucional para todo réu, os estudantes argumentaram que não se
sentiam “seguros” na Winthrop House com Sullivan, diretor do Instituto
de Justiça Criminal da Harvard Law – que, aliás, já havia representado
clientes impopulares no passado, como assassinos em série e até acusados
de terrorismo, sem nunca provocar qualquer sentimento de insegurança
entre os estudantes. Mas Harvard capitulou, abrindo um precedente
perigoso que coloca a presunção de inocência em segundo plano, tornando o
advogado culpado apenas por defender um acusado impopular.
Na entrevista que segue, conversei com Camille Paglia sobre
o recente episódio na UArts, bem como sobre o contexto de outros
incidentes em campus na América do Norte.
Sobre o que exatamente era sua palestra, e quais
assuntos você não conseguiu abordar por causa da interrupção? O Sunday
Times de Londres mencionou que você estava prestes a falar sobre Mick
Jagger e David Bowie.
Camille Paglia – No outono passado, o diretor da Escola de
Estudos de Crítica (onde meus cursos estão listados) me pediu para dar
uma palestra em sua nova série de conferências. Então eu escolhi o
assunto de gênero, porque o meu curso “Imagens de Gênero na Mídia”, que
eu ministrei pela 29ª vez na primavera passada, foi o primeiro curso
sobre gênero já oferecido pela Universidade das Artes. Começou em 1986
como “Mulheres e Papeis Sexuais”, dois anos depois que eu cheguei para
ensinar aqui. Naquele primeiro semestre, iniciei uma discussão com os
estudantes sobre o tema feminista de assédio sexual. Minha turma
desenvolveu diretrizes moderadas apropriadas para uma faculdade de artes
e eu apresentei a proposta completa à administração. Foi a primeira vez
que o assédio sexual foi levantado como uma questão pública neste
campus.
Minha palestra de 9 de abril, “Imagens Ambíguas: Dualidade
Sexual e Multiplicidade Sexual na Arte Ocidental”, era um comentário
sobre uma série de 50 imagens sexualmente ambíguas ou relacionadas a
gênero tiradas de toda a história da arte, começando com a Idade da
Pedra e se movendo cronologicamente, através do antigo Egito, da
Mesopotâmia e da era greco-romana até a cultura popular moderna. Entre
as imagens pop estavam Marlene Dietrich em seu smoking masculino e de
cartola no Marrocos; Katharine Hepburn em seus terninhos e calças jeans;
as drags e trans superstars de Andy Warhol, Jackie Curtis e Candy
Darling; Mick Jagger e David Bowie em seus “vestidos masculinos” de
Michael Fish; a sessão de fotos de Jim Morrison como um Antinoo de
cabelos compridos e peito nu; e seis fotos espetaculares de Grace Jones
vivendo personas sexuais deslumbrantemente diferentes, de femme fatal a açougueira.
As imagens terminariam com um pôster de filme de Raquel
Welch como a transexual Myra Breckinridge de Gore Vidal no filme baseado
em seu romance best-seller de 1968 (que vendeu mais de dois milhões de
cópias em um mês). Myra Breckinridge foi relançado em maio, depois de
estar fora de catálogo nos EUA por mais de 30 anos. A editora me pediu
para escrever a introdução. Em 1991, Vidal disse à revista New York para sua reportagem de capa sobre mim (“Woman Warrior”) que meu primeiro livro, Sexual Personae,
“soa como Myra Breckinridge em um rolo. Eu não tenho elogios maiores”.
Vidal estava absolutamente correto: a voz do livro é uma construção
transexual, expressando minha alienação vitalícia do sistema de gênero.
Após sua publicação, eu chamei Sexual Personae (718 páginas) “a maior mudança de sexo na história”.
Daí o absurdo de um protesto transgênero contra um
professor e autor que se descreve como transgênero – e que foi a única
pessoa abertamente gay (estudante ou professor) na Pós-Graduação de Yale
durante os anos que estive lá (1968-72). Todo mundo estava em segurança
no armário. Minha tese de doutorado, Personas Sexuais: Categorias do Andrógino,
foi a única dissertação sobre sexo em toda a pós-graduação – numa época
em que essa questão não era levada a sério e tratar dela era
profissionalmente arriscado.
Não há papa e nenhuma doutrina oficial nem no feminismo nem
no transgenerismo. Qualquer feminista ou transexual é completamente
livre para assumir qualquer posição sobre qualquer assunto. Nenhum
indivíduo ou grupo de indivíduos tem o direito de impor a conformidade
em assuntos controversos, especialmente quando um movimento ainda está
em suas fases iniciais. Assumir que a ideologia feminista ou transgênero
já está congelada e que o menor desvio dela é heresia é uma profunda
estupidez. O pensamento contemporâneo progressista deve estar sempre em
fluxo livre – e especialmente no campo do gênero, sobre cuja fluidez
venho escrevendo há mais de meio século.
Minha palestra terminou abruptamente enquanto ainda
estávamos na Antiguidade: minha imagem da estátua de culto estranhamente
mumiforme de Diana de Éfeso acabara de aparecer na tela. Antecedendo,
havia duas magníficas esculturas do amante do imperador Adriano,
Antínoo, assim como a ambígua “Hermafrodita Adormecida” no Louvre. Era
bastante óbvio que os manifestantes (rindo e tagarelando como crianças
de colégio inquietas nas filas superiores) ficaram desapontados que
minha palestra foi realmente pró-transgênero e que não havia nada sobre o
que vaiar. Em vez de admitir para si mesmos que haviam sido
grosseiramente mal informados sobre mim e meu trabalho, um
co-conspirador acionou o alarme de incêndio no corredor – um testemunho
do desespero narcisista dos manifestantes em se tornarem rebeldes. Essa
intervenção grosseira foi um ato ilegal que colocou centenas de
ocupantes estudantis do prédio de 17 andares em perigo, pois todos foram
forçados a sair rapidamente pelos estreitos degraus até as movimentadas
ruas da cidade e a aguardar até os caminhões de bombeiros chegarem.
Somente quando os fiscais de incêndio inspecionavam todos os andares,
foi permitido que as pessoas voltassem a entrar no prédio para retornar
às aulas ou aos estúdios de arte. (Eu mesmo fui escoltada pelos agentes
de segurança do campus para o camarim do auditório, onde durante uma
hora presenciei os principais funcionários da universidade enfrentando
heroicamente essa ameaça emergencial à segurança pública.)
Esse episódio escandaloso, que privou outros estudantes
pagantes de seu direito de adquirir amplo conhecimento histórico, foi um
ataque a toda a tradição ocidental universitária. Quando o alarme de
incêndio disparou, os manifestantes nas filas superiores levantaram-se e
gritaram como maníacos, apontando para o palco e amaldiçoando-me. Seu
comportamento era excessivo e anormal por qualquer padrão psicológico.
Enquanto o auditório degenerava em caos, o que me veio à mente foi uma
cena brutal no filme Julia (estrelado por Jane
Fonda e Vanessa Redgrave), de 1977, onde uma horda de jovens nazistas
rindo ataca uma escola de medicina em Viena. Seja o que for aquilo que
os manifestantes pensaram que estavam alcançando, o objetivo foi minado
por seu comportamento e ações incivilizadas. Mostrando indiferença e
desrespeito à exibição pública de artefatos clássicos (como o requintado
Hermes de Praxiteles ou a majestosa estátua verde-diorita do entronado
faraó Quéfren, de Gize), eles se alinharam com as forças da barbárie. E
seu recurso primitivo ao reinado da turba foi um fiasco político na
medida em que (através da cobertura da mídia nacional) já enfraqueceu a
esquerda e inevitavelmente fortalecerá a oposição conservadora, que se
manifestará nas próximas eleições presidenciais nos EUA.
Apenas três dias antes da minha palestra, o ex-presidente
Barack Obama fez um discurso em Berlim, onde expressou “preocupação”
sobre “um certo tipo de rigidez” entre os progressistas nos EUA:
“Começamos a criar o que pode ser chamado de esquadrão circular de tiro,
onde se começa a atirar em seus aliados, porque um deles está se
afastando da pureza sobre os problemas”. Foi exatamente o que aconteceu
no incidente em minha universidade: por seu extremismo auto-indulgente e
insensível desrespeito pelos direitos dos outros, incluindo seus
próprios pares, os manifestantes causaram danos profundos a si mesmos e à
sua própria causa progressista.
Você se declarou transgênero. Por que você foi acusada agora de transfobia?
Camille Paglia – Em primeiro lugar, a transfobia,
como a homofobia, é uma condição psicológica. Este termo clínico foi
erroneamente apropriado e distorcido por ideólogos políticos, que o
injetaram com um moralismo de cruzada. A fobia é um medo ou obsessão
compulsiva, que tudo consome, às vezes produzida por uma atração
inconsciente para aquilo que é temido. Simplesmente expressar uma
crítica racional ao ativismo transgênero ou gay não torna ninguém
transfóbico ou homofóbico.
Sim, ao longos dos últimos anos, eu tenho sido publicamente
crítica a vários princípios do atual ativismo transgênero, e eu
encorajo fortemente outros dissidentes gays e transexuais a se
manifestarem. O silêncio sobre essas questões urgentes não ajuda ninguém
além da extrema direita, para a qual grande parte dos eleitores é
levada quando a esquerda se torna tão consumida por sua própria
ideologia que reivindica poderes repressivos e ditatoriais sobre a vida
pública e privada.
Em primeiro lugar, oponho-me categoricamente ao uso de
bloqueadores da puberdade em crianças, o que considero uma violação dos
direitos humanos. As crianças não estão equipadas para fazer uma escolha
informada sobre questões médicas e devem confiar na sabedoria e
prudência dos adultos. Os efeitos no longo prazo dos bloqueadores da
puberdade são desconhecidos. Por que qualquer sociedade ética realizaria
experimentos médicos com crianças? Eu prevejo que o futuro olhará para
este momento que vivemos com incredulidade.
Eu me identifico fortemente com essa questão porque eu
mesma tenho vivido com uma massiva disforia de gênero desde a infância –
tanto quanto me lembro. É de fato a fonte primária da minha perspectiva
e é a principal motivação do meu trabalho. Eu sempre contemplei a vida
humana do lado de fora, como um visitante de uma galáxia alienígena. Ao
longo das décadas, descrevi repetidamente meus extravagantes trajes
masculinos de Halloween, algo inédito para uma menina pequena nos EUA
conservadores e conformistas da década de 1950: Robin Hood (de uma
revista em quadrinhos); o toureiro de Carmen (de um livro de ópera); um
soldado romano (modelado a partir dos atormentadores de Jesus na Via
Crucies); Napoleão Bonaparte (de um anúncio de brandy na revista Time);
e Hamlet (de uma revista em quadrinhos ilustrada). Uma foto minha aos
oito anos em traje completo como Napoleão aparece no meu livro mais
recente, Provocations.
Identificar-me como lésbica na adolescência parecia
oferecer uma solução para meu desajustamento social, mas nunca fui uma
lésbica particularmente boa ou de sucesso. Entre outras coisas, as
lésbicas raramente gostaram de mim ou me aprovaram – acho que
provavelmente é porque eu lhes pareço muito um garoto adolescente rude e
barulhento! Muitas vezes pensei que as coisas seriam muito mais simples
se eu fosse simplesmente um homem gay, dada a frequência com que
encontro interesses profundamente compartilhados em arte, beleza e
filmes clássicos de Hollywood com homens gays espirituosos e cultos de
todo o mundo.
Digo tudo isso para enfatizar o quão profundamente e
pessoalmente tomo a questão dos bloqueadores da puberdade, porque não há
dúvida alguma de que eu era obviamente uma excelente candidata para
essa intervenção médica desde os meus primeiros anos. Eu tinha zero
identificação com qualquer coisa convencionalmente feminina – começando
com bonecas, que eram constantemente dadas a mim, mas que eu detestava.
Eu queria espadas! (Eu comprei minha primeira espada real em uma loja de
sucata rural quando eu tinha 12 anos.) Se eu tivesse ouvido o menor
rumor de que existiam operações de mudança de sexo, eu teria ficado
obcecada com a ideia de que seria realmente um menino e que a cirurgia
poderia recuperar e restaurar meu verdadeiro eu. De fato, eu acho que
teria permanecido vulnerável a essa ideia fixa até meus 20 e poucos
anos, quando eu já estava dando aulas no meu primeiro emprego no
Bennington College.
O que baniu o fascínio dessa transformação física foi a
minha realização e externalização do meu eu verdadeiro em outra forma: o
gigantesco manuscrito de Sexual Personae (originalmente com
mais de 1.700 páginas), no qual projetei todas as minhas reflexões e
insatisfações com o gênero. Nesse livro, sustento que nosso verdadeiro
opressor não é a sociedade, mas a natureza, que em sua ecologia fascista
nos impôs o gênero biológico no nascimento. A mudança de sexo é
literalmente impossível: cada célula de nosso corpo, exceto o sangue,
permanece codificada com nosso gênero biológico de nascimento para a
vida. No entanto, eu me alio à grande tradição dissidente de Marquês de
Sade, Baudelaire e Oscar Wilde, que exigem e celebram o desafio à
natureza – como o Capitão Ahab de Melville agitando seu punho no céu
tempestuoso. De encontro à natureza: esse é o argumento do meu livro, e
continua sendo minha definição de arte.
Por isso, estou muito preocupada com a pressa de tantos
jovens questionadores de gênero em relação aos hormônios e à cirurgia.
Por que é necessário solidificar e literalizar a identidade mercurial e
em constante evolução no frágil envelope da carne – que todas as
principais religiões do mundo descreveram corretamente como uma ilusão
destinada a decair e a desaparecer. Ninguém está completamente
satisfeito com seu corpo, o que inevitavelmente nos trairá de qualquer
maneira, à medida que deslizamos em direção à morte. Por que essa
ansiedade entre os jovens pela servidão à indústria farmacêutica voraz?
Por que fazer mudanças irreversíveis no corpo quando não há nada no
corpo que realmente expresse nossa identidade mais profunda e
verdadeira?
Os jovens da minha geração rebelde dos anos 1960 libertaram
a sexualidade da censura e do controle institucional, mas, mais
importante, procuraram uma expansão e um refinamento da consciência. Em Provocations,
minha mensagem para os jovens que questionam o gênero é: “Mantenha-se
fluido! Fique livre!” Liberdade é o meu valor final. O filósofo
pré-socrático Heráclito disse: “Todas as coisas fluem”. Uma verdadeira
revolução no gênero começa na mente.
A imaginação é muito maior que o corpo. Um dos meus momentos favoritos no cinema ocorre em Blow-Up
de Michelangelo Antonioni (1966), onde um fotógrafo desiludido (David
Hemmings) encontra uma modelo glamorosa (Veruschka) em uma festa regada a
drogas em Londres. “Eu pensei que você estava indo para Paris”, diz
ele. Ela responde: “Estou em Paris”.
Como você se sente ao se dirigir aos alunos como eles preferem?
Camille Paglia – Dentre as mentiras
grotescas que circularam sobre mim nas redes sociais, espalhadas por
ativistas transgêneros sem escrúpulos no mês anterior à minha
conferência pública, está que me recusei a usar os pronomes preferidos
de um aluno na sala de aula e insultei essa pessoa diante de outros
alunos declarando que o único pronome que eu usaria seria “isso” – como
se o aluno fosse sub-humano.
Essa fabricação alucinatória expõe a amoralidade
desavergonhada de muitos ativistas políticos de hoje, que são tão
viciados em sua auto-imagem messiânica que usam qualquer ferramenta,
incluindo o assassinato de personagens, para destruir seus oponentes.
Esses ideólogos fanáticos são os inimigos da democracia.
A questão dos pronomes transgêneros nunca ocorreu em
nenhuma das minhas aulas e certamente não no meu curso regular ” Imagens
de Gênero na Mídia”, que é conduzido como uma grande série de palestras
, consistindo de material puramente histórico e cultural. Minha posição
de longa data sobre essa questão é que usar os pronomes preferidos de
um indivíduo é uma questão básica de cortesia humana. Não o fazer seria
desnecessariamente grosseiro e certamente inaceitável em uma situação de
sala de aula com outros estudantes presentes.
No entanto, eu me oponho fortemente a qualquer intrusão do
governo no controle da língua, a menos que essa linguagem envolva ameaça
física ou perigo público. Minha posição é exatamente igual à do
principal intelectual canadense, Jordan Peterson, que enfatiza a
liberdade do indivíduo durante todo o seu trabalho. Peterson também
declarou publicamente que evidentemente usaria os pronomes preferidos
como uma simples cortesia, mas ele e eu concordamos que o governo não
tem nenhum direito de monitorar a linguagem ou de obrigar a
conformidade. Entregar nossa autonomia à vigilância punitiva de uma
burocracia inchada convida e, afinal, produz o totalitarismo.
Meus princípios de gênero pertencem à minha filosofia
libertária mais geral: eu defendo que todo indivíduo possui direitos
totais sobre sua identidade, assim como sobre seu corpo, que podem ser
alterados ou modificados à vontade. Eu apoio fortemente a criação de uma
categoria “X” nos passaportes e carteiras de identidade: na minha
opinião, o governo não tem autoridade, nem precisa sequer perguntar,
sobre gênero, que deve permanecer completamente dentro do domínio da
escolha pessoal.
O direito fundamental do indivíduo ao seu corpo também se
estende ao aborto. Embora eu aceite que o feto em desenvolvimento é de
fato uma pessoa (como sustentado por religiosos tradicionalistas), nego
que o Estado tenha qualquer direito de intervir nas escolhas de uma
mulher sobre as operações internas de seu próprio corpo, que foram
formadas pela natureza e apenas por ela. Assim, na minha opinião, tanto o
feminismo acadêmico quanto o transgenerismo atual erraram ao apagar a
biologia de seu sistema teórico. A natureza é maior que a sociedade e é a
fonte última do nosso poder como seres vivos. Uma mulher que termina
sua própria gravidez está atuando como representante da própria
natureza, impiedosa, cujo plano mestre, ao longo de muitos milênios,
cobriu a terra com seus sacrifícios de sangue.
Também intrínseco à minha filosofia libertária é minha
exigência de que o Estado deve tratar todos os indivíduos exatamente da
mesma maneira. Essa é a verdadeira igualdade perante a lei. Não deve
haver proteções especiais para nenhum grupo – nenhuma protração
condescendente do status histórico de “vítima”. Por isso, oponho-me às
categorias generalizadas de “discurso de ódio” e “crimes de ódio”, que
considero totalmente reacionárias. Nunca devemos permitir que o Estado
investigue o pensamento ou motivação de qualquer cidadão (exceto na fase
de condenação de um julgamento, após a condenação por um crime). Tanto o
pensamento quanto a linguagem devem ser protegidos de forma vigilante
contra a invasão do Estado.
Eu tenho expressado minhas objeções à legislação de
“discursos de ódio” e “crimes de ódio” há décadas, e minha sombria
profecia sobre a desordem que eles desencadearam foi abundantemente
confirmada. A sociedade ocidental tem sido constantemente consumida pelo
politicamente correto, que se espalhou através de burocracias inchadas e
parasitas em todas as áreas da vida e agora ameaça a grande tradição
universitária em si, cujas raízes estavam na erudição medieval, tanto
cristã quanto muçulmana.
Você também endereçou críticas ao movimento #MeToo.
Em uma entrevista, você comentou como esse movimento foi empanado pela
defesa organizada por Judith Butler para sua amiga Avital Ronell, uma
professora acusada por um estudante de sexo masculino de assédio sexual.
(A Universidade de Nova York posteriormente suspendeu Ronell por um ano
sem pagamento.) Até que ponto suas críticas ao #MeToo ressoaram entre
os manifestantes da UArts?
Camille Paglia – A intervenção
manipulativa de Judith Butler no caso Avital Ronell surpreendeu e
desanimou muitos de seus admiradores, que não haviam percebido até que
ponto Butler é um produto e símbolo da elite acadêmica internacional.
Butler nunca desafiou o sistema acadêmico, mas se adaptou suavemente a
ele, desde o momento em que se transferiu da faculdade de Bennington
(onde eu lecionava durante minha fase feminista mais inflamatória e
conflituosa), na década de 1970, para a Universidade de Yale, onde o
pós-estruturalismo era a nova oportunidade quente para jovens
carreiristas ambiciosos. Butler nunca fez meus cursos em Bennington (uma
faculdade muito pequena na zona rural de Vermont), mas eu a conhecia,
bem como seu círculo social, e, portanto, estou bem ciente de sua
trajetória.
Em relação aos manifestantes do UArts, sim, alguns deles (a
julgar por cartazes no corredor que mais tarde vi nas imagens das
notícias) pareciam ter sido focados em questões de agressão sexual. Mas
era óbvio que os manifestantes nunca leram ou sequer viram meus livros e
que eles foram estimulados por trechos dispersos de entrevistas
anteriores circuladas nas mídias sociais. Eles sem dúvida desconheciam
totalmente que eu havia sido a primeira a introduzir diretrizes de
assédio sexual na Universidade das Artes em 1986 – o que mostra quão
pouco eles haviam pesquisado sobre isso.
Eu realmente disse muito pouco publicamente sobre o #MeToo, exceto por um artigo no início do ano passado no The Hollywood Reporter,
onde registrei: “A grande questão é se a presente onda de revelações,
muitas vezes consistindo em alegações infundadas de décadas atrás,
ajudará as ambições das mulheres no longo prazo ou se já está criando
mais problemas ao reviver os estereótipos antigos das mulheres como
histéricas, voláteis e vingativas”.
Uma resposta preliminar já veio de Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, que disse à CBS News,
em maio, que, no mundo dos negócios, os gerentes masculinos estão agora
limitando e diminuindo suas interações profissionais com mulheres, que
estão perdendo oportunidades cruciais para mentoring (aperfeiçoamento e
treinamento) e mesmo para reuniões individuais com seus chefes
masculinos. Sandberg disse que houve um aumento enorme em apenas um ano
(de 32% para 60%) no número de gerentes do sexo masculino que admitem
que agora estão “com medo” de se encontrarem em particular com mulheres.
Isso não é uma boa notícia para as mulheres, mas era totalmente
previsível. Comportar-se como Fúrias uivantes ou implacáveis cães de
caça não ajuda no avanço das mulheres em direção ao poder profissional e
político.
Desde o primeiro artigo de opinião que escrevi sobre a controvérsia do date-rape (encontro-estupro) no campus no New York Newsday
em 1991, opus-me fortemente ao envolvimento das administrações
universitárias em qualquer aspecto da vida sexual dos estudantes. Se
ocorrer um assalto ou estupro, ele deve ser prontamente denunciado à
polícia. Os comitês universitários não são profissionalmente treinados
ou competentes para servir como investigadores de crimes ou tribunais
judiciais. Além disso, a menos que exista evidência concreta e objetiva,
apresentar uma queixa sobre um incidente sexual meses ou anos após o
evento é incompatível com a democracia moderna ou mesmo com a Justiça.
A intrusão agora universal dos escritórios administrativos
na vida social privada dos estudantes é um retorno aterrador às regras
estritas in loco parentis (“no lugar dos pais”) contra as quais minha
geração de mulheres universitárias se rebelou durante a década de 1960.
Para nossa segurança e proteção, éramos escandalosamente trancadas em
nossos dormitórios às onze da noite, enquanto os estudantes homens
podiam ficar livres a noite toda. Enfurecidas por esse duplo padrão,
conquistamos a liberdade pessoal e sexual para futuras alunas – mas,
evidentemente, muitas jovens hoje não a querem. Como órfãos nos romances
de Charles Dickens, elas anseiam por proteções paternalistas e
apaziguamento materno. Como donzelas vitorianas refinadas, elas se
sentem incapazes de se expressar ou se defender no trabalho ou no lazer
sem o apoio autoritário de superintendentes punitivos.
Meu código de feminismo amazonas é baseado no empoderamento
pessoal: toda mulher é responsável por sua própria vida. As mulheres da
classe trabalhadora têm dolorosamente poucas opções e são vulneráveis
ao abuso, mas não há desculpa para as mulheres profissionais de classe
média alta bem-educadas reivindicarem impotência no trabalho. Elas devem
falar firme e imediatamente para defender sua própria dignidade e
auto-respeito, que são princípios espirituais muito mais importantes do
que qualquer vantagem na carreira material. Ninguém está aceitando ou
inventando desculpas por comportamento criminoso. Mas a existência
humana é repleta de perigos – também para os homens. A sexualidade é uma
força instável e primitiva enraizada no instinto animal. Existem
psicóticos vagando pelo mundo que todos devem temer. Nenhum conjunto de
regras adotadas por um campus ou local de trabalho eliminará os riscos
que todos nós incorremos apenas por estarmos vivos. A utopia segura,
higienizada e rigidamente regulada, exigida por muitas feministas, é uma
fantasia burguesa que impede as jovens de ver a vida como ela é. Um
feminismo baseado na vitimização e no martírio é um desastre para as
mulheres modernas.
Qual o papel das mídias sociais na mobilização
desses estudantes para o evento? O Facebook tem sido usado para difundir
mensagens difamatórias e alegações de grupos esquerdistas e de
extrema-direita nos EUA e no Brasil. Ao mesmo tempo, os administradores
de mídias sociais estão aplicando estratégias de censura. Eu mesmo já
tive um post bloqueado porque continha um link para uma reportagem no
jornal O Globo sobre uma exposição das obras do fotógrafo Otto Stupakoff
no Museu de Arte Moderna de Nova York. Eu também vi posts bloqueados
por causa de um link a um ensaio seu no The Hollywood Reporter, que
continha ilustrações sensuais conhecidíssimas de Rihanna e Kim
Kardashian.
Camille Paglia – As mídias sociais foram a
origem e o impulso para este incidente na minha universidade. Dois
meses antes da minha palestra, um ex-aluno me contatou para dizer que
vários ativistas transgêneros na Filadélfia estavam visando alunos da
UArts nas mídias sociais e pressionando-os a apresentar uma queixa
contra mim no escritório do Título IX [1] da universidade. Ele previu
que haveria “problemas” pela frente. Os escritórios do Título IX, cuja
autoridade no campus vêm do governo federal, têm sido objeto de
controvérsias há algum tempo nos EUA. Por exemplo, há dois anos, a
escritora e professora Laura Kipnis publicou um livro amplamente
resenhado sobre os procedimentos totalitários do Título IX na
Northwestern University, Unwanted Advances: Sexual Paranoia Comes to Campus
(“Os indesejados avanços: a paranoia sexual chega ao campus”). Em
muitos campi, os escritórios do Título IX usurparam a autoridade da
faculdade e tornaram-se monitores e executores intrusivos de um rígido
politicamente correto.
Eu posso ter sido o primeiro professor a alertar
publicamente sobre o crescente abuso do Título IX, uma emenda de 1972 à
Lei dos Direitos Civis de 1964 que tinha como objetivo eliminar a
discriminação sexual nos campi universitários. O artigo polêmico que
escrevi em 1996 para o USA Today (no qual protestei contra a
eliminação do programa de luta greco-romana masculina na Universidade de
Princeton) está reimpresso em meu livro de 2017, Free Women, Free Men (“Mulheres Livres, Homens Livres”). Lá denunciei a “corrupta master class”
de administradores de universidades “cujas fileiras grotescamente
aumentaram nos campi dos EUA nos últimos 30 anos e que desviaram a
missão educacional para uma ideologia sufocante de bem-estar social”.
Quando recebi esse aviso do meu ex-aluno no início deste
ano, não me preocupei, porque a Universidade das Artes sempre apoiou
muito meu trabalho. Após o lançamento, em 1990, do Sexual Personae,
houve uma enorme e prolongada controvérsia por vários anos, quando
escrevi artigos de opinião de jornais que causaram um alvoroço entre as
feministas da velha guarda como Gloria Steinem, que me comparou a
Hitler. Apesar do fato de que eu claramente representava uma nova facção
no feminismo (a ala pró-sexo para a qual Madonna era o ícone), eu era
rotineiramente condenada e difamada na mídia nacional nos EUA, no Reino
Unido e na Europa. Em 1991, houve uma campanha organizada por grupos
feministas (que pareciam estar sediados no Meio-Oeste dos EUA) para
pressionar o presidente e fundador da UArts, Peter Solmssen, a me
demitir. No entanto, o presidente Solmssen, tal o nosso admirável
presidente atual, David Yager, respondeu corajosamente aos queixosos que
meu trabalho público como crítica social estava totalmente protegido
pela liberdade acadêmica.
O que deve ser enfatizado aqui é que minha carreira docente
na Universidade das Artes não teve nenhuma conexão com minha atividade
profissional como escritora. Meu primeiro livro não foi publicado até
seis anos depois que comecei a lecionar aqui. Até a recente chegada das
mídias sociais, nunca houve a menor intrusão ou interrupção de minha
celebridade ou notoriedade internacional. Meus alunos raramente tiveram
alguma ideia de que eu escrevo livros. Eu não ensino “minhas” ideias na
sala de aula, nem jamais atribuo meus livros como textos obrigatórios –
como muitos acadêmicos narcisistas “estrelados” nos EUA. Ocasionalmente,
um aluno pode mencionar para mim depois de nossa primeira aula que um
de seus pais é fã meu, mas nada mais. Sempre mantive um perfil discreto
no campus e (apesar dos constantes pedidos) nunca permiti que pessoas de
fora visitassem minhas aulas, na condição de ouvintes. Como tenho
repetidamente dito, sou simplesmente uma professora universitária: essa é
a minha identidade central, inspirada na das freiras de ensino do
catolicismo italiano e ibérico!
Daí a atroz amoralidade das mídias sociais sendo usadas
como arma por ideólogos implacáveis para espalhar mentiras grotescas
sobre minhas aulas e para agitar contra mim estudantes que não me
conhecem e que não têm ideia sobre a expansividade acadêmica e
interdisciplinar de meus prolíficos livros e ensaios publicados.
Citações de minhas entrevistas na mídia tiradas do contexto foram
divulgadas, mas não havia nenhuma referência à enorme quantidade de
material em todo o meu trabalho que glorifica vividamente e celebra a
sexualidade, fluidez de gênero, arte, beleza e individualismo radical.
A jovem atriz Selena Gomez disse recentemente em Cannes:
“As mídias sociais têm sido terríveis para minha geração”. Esse
incidente em minha universidade é um exemplo clássico da destrutividade
das mídias sociais para uma geração que perdeu tragicamente o acesso aos
livros. Por causa da concorrência da Amazon, as livrarias
praticamente desapareceram nos EUA, mesmo em uma grande cidade como a
Filadélfia. É incrível – eu raramente vejo uma livraria em qualquer
lugar, enquanto elas já foram uma característica padrão dos shoppings.
As livrarias eram centros culturais da minha geração da década de 1960:
como estudante com pouco dinheiro, aprendi muito com as livrarias
itinerantes e folheando livros. Mas a leitura de livros está em forte
declínio para a geração mais jovem, que agora obtém todas as suas
informações online. Por mais de quinze anos, tenho testemunhado a
crescente relutância dos estudantes em ir à biblioteca pesquisar: eles
querem tudo instantaneamente disponível na ponta dos dedos. A densa
fisicalidade dos livros, que eu adorava como estudante, agora parece
pesada e entediante para os jovens.
O problema com este movimento frenético e imparável é que
somente através da leitura de livros se aprende a seguir ou construir um
argumento sequencial com raciocínio dedutivo, em que a evidência é
ponderada e uma conclusão, alcançada. Uma geração criada no Facebook,
Twitter e Instagram nunca foi exposta à argumentação racional. No mundo
online, as questões são polarizadas de maneira simplista: “gostar” ou
“não gostar”; polegares para cima ou polegares para baixo. É um universo
maniqueísta de anjos versus demônios, onde não são possíveis sutilezas
ou qualificações: você está conosco ou contra nós.
Essa geração, casada com as mídias sociais, é cercada
durante todo o dia, com fragmentos desconexos e apelos estridentes à
emoção. Eles são varridos para ultrajes instantâneos, ondas de pânico, a
luxúria do sangue dos julgamentos das Bruxas de Salem – que Arthur Miller invocou como um paralelo ao macarthismo vicioso dos EUA em sua peça clássica de 1953, The Crucible.
Muitos jovens parecem incertos, nervosos e solitários, desesperados por
afiliação e validação em grupo, e é por isso que eles se voltam tão
rapidamente para a ação da multidão.
Os jovens de hoje tiveram pouca ou nenhuma exposição a
escritores dissidentes que não podem ser facilmente classificados em
termos ideológicos. Na minha juventude, havia muitos modelos de
pensamento ousado e contrário: Simone de Beauvoir, Mary McCarthy, Allen
Ginsberg, Marshall McLuhan, Norman O. Brown, Susan Sontag, Norman
Mailer, Gore Vidal. Uma citação de Kafka foi amplamente divulgada quando
eu estava na faculdade: “Um livro deveria ser o machado para o mar
congelado dentro de nós”. Nós procuramos corretamente livros que nos
fizeram sentir inseguros. A iluminação, não o conforto emocional, era o
nosso objetivo.
A histeria epidêmica das mídias sociais demonstra o
fracasso catastrófico do humanismo secular, sobre o qual venho
advertindo há anos. Embora eu seja ateia, tenho enorme respeito pelas
grandes religiões mundiais como vastos sistemas simbólicos que fornecem
uma profunda perspectiva metafísica da vida. Os jovens de hoje que foram
criados sem religião, em lares liberais progressistas, têm apenas a
política para dar forma e significado ao mundo. Essa é uma troca muito
triste, porque a política, importante e vital como é, ocupa um nível
inferior na existência humana. O materialismo marxista, agora o credo
universal da academia ocidental, não vê nada no universo além de si
mesmo.
Eu me sinto muito feliz por ter frequentado a faculdade
quando a contracultura dos anos 1960 foi inundada por temas espirituais
do hinduísmo e do budismo, que podiam ser ouvidos até mesmo na música
popular. Foi também um grande período para filmes internacionais de
arte, que nos introduziram ao multiculturalismo mundial e nos
presentearam com uma visão super-sofisticada da sexualidade. Minha mente
estava saturada e transformada por esses grandes filmes, desde Orfeu Negro, de Marcel Camus; Persona, de Ingmar Bergman; Belle de Jour, de Luis Buñuel; até Rashomon, de Akira Kurosawa – que nos ensinaram sobre multiplicidade e subjetividade de perspectiva sobre eventos humanos.
Compare essas riquezas culturais com a banalidade monótona
da atual cultura popular, fortemente comercializada e mecanicamente
digitalizada. Não é nenhum mistério por que os jovens estão
desesperadamente procurando por significado. Infelizmente, eles estão
procurando nos lugares errados. As mídias sociais são uma zona de guerra
de ilusões ansiosas, como as sombras na parede da caverna de Platão.
Nenhuma estabilidade ou segurança jamais será encontrada lá. E injetar a
política com o dualismo cósmico do bem contra o mal nunca trará
verdade, sabedoria ou paz de espírito.
Algumas de suas declarações recentes foram recebidas,
especialmente por críticos da esquerda e por setores de estudos de
gênero (como Judith Butler, que a atacou em uma entrevista em O Globo),
como apoio a Donald Trump e a Jair Bolsonaro. Como você responde a isso?
Camille Paglia – Aqueles que vivem em uma
bolha ideológica fechada não podem entender nada fora dela. Tenho
repetidamente chamado a atenção do público para a escassez de evidências
de que Judith Butler, cuja formação acadêmica foi em filosofia e cuja
metodologia é pós-estruturalista, empreendeu a extensa pesquisa
histórica e científica necessária para uma professora que se apresenta
como especialista em gênero e sexualidade.
Minha afiliação política é bem conhecida. Eu sou uma
democrata registrada que votou no esquerdista Bernie Sanders na primária
presidencial de 2016 e, depois, para Jill Stein, do Partido Verde, nas
eleições gerais. Todos os anos, contribuo financeiramente para o Partido
Verde. Eu tenho todo o direito de criticar a esquerda quando seu
comportamento e suas táticas tolamente insultam e alienam os eleitores e
os empurram para a direita. Isso é exatamente o que aconteceu antes da
eleição surpresa de Trump e de Bolsonaro.
É um fato da história mundial que, quando ansiedades
sociais e problemas urgentes não são enfrentados por uma elite
governante egocêntrica, há um movimento para a direita por cidadãos
comuns, que sentem que apenas um “herói” rude, vigoroso e
ultra-masculino esmagará o impasse e finalmente fará as coisas. Essas
figuras barulhentas, esnobes e egoístas frequentemente oferecem uma
restauração da identidade nacional e do senso de destino – contra a
insularidade arrogante da elite afluente, que é “cosmopolita” em suas
suposições, associações e estilo de vida peripatético e que despreza o
patriotismo como simplista e ingênuo.
Foi assim que Hitler e Mussolini chegaram ao poder.
Mussolini “fez os trens rodarem a tempo”. Hitler promoveu o orgulho da
identidade alemã medieval após a humilhação da derrota na Primeira
Guerra Mundial e fez campanha contra a “divina decadência” (para citar
Sally Bowles, de Christopher Isherwood, em Cabaret) da Berlim
da República de Weimar – com sua vasta paisagem erótica de prostituição
organizada, aberta à homossexualidade, e pródigos bailes drag.
Deve ser enfatizado que eu me identifico alegremente como
uma criatura da decadência de Weimar que molda o gênero – o que moldou
profundamente Marlene Dietrich, nascida em Berlim, cujas sofisticadas
ambiguidades bissexuais e estilo blindado “hard glamour” podem ser
traçados através da história de Hollywood até Madonna e as drag queens
performáticas em todo o mundo hoje.
Decadência tem sido um tema central em meu trabalho – do subtítulo de Sexual Personae
(“Arte e Decadência de Nefertiti para Emily Dickinson”) ao meu curso de
assinatura, “Estética e Decadência”, que ministrei várias vezes durante
os anos 1970 e os anos 1980 em Bennington, Wesleyan, Yale e na
Universidade das Artes. No entanto, não me atrevo mais a ensinar
“Estética e Decadência” porque o material sexual (como os romances do
Marquês de Sade, um dos maiores e mais audazes escritores dos últimos
250 anos) é muito intenso e problemático para os estudantes de hoje.
Na faculdade, fui fortemente influenciada pela Factory
de Andy Warhol, uma célula decadente da Berlin de Weimar transplantada
para Nova York e povoada por suas extravagantes estrelas de travestis e
transgêneros. Desde que vi os primeiros curtas-metragens em
preto-e-branco de Warhol em meados da década de 1960 (acima de tudo, Harlot, estrelado por Mario Montez em drag), eu me chamei de “Warholite”. É por isso que a imagem de capa do meu livro mais recente, Provocations,
é minha foto alterada para imitar o estilo policromo vívido de uma
pintura de Warhol. (A Fundação Warhol concedeu muito graciosamente
permissão.)
No entanto, como scholar, vejo a história de forma clara e
não sentimental, sem distorção de preferências ou lealdades pessoais.
Foi durante minha laboriosa pesquisa para minha tese de doutorado em
Yale naquele grande santuário gótico, a Sterling Memorial Library, que
descobri um padrão sinistro na história: as civilizações são
frequentemente cíclicas, com padrões recorrentes distintos registrados
na arte. As fases “tardias” da cultura são frequentemente caracterizadas
por estilos “irônicos” altamente elaborados, homossexualidade aberta e
um fascínio pela androginia, subvertendo as normas sociais e religiosas
tradicionais.
Sinais de contra-reação ou retrocesso podem ser
perceptíveis, mas a elite sofisticada, complacente em sua refinada
“tolerância” e seu controle das principais instituições e comunicações,
os ignora. O tempo passa. Então, uma onda gigante parece vir do nada –
de um estrato social marginalizado ou de estranhos saqueadores – e toda
uma sociedade supercomplexa é subjugada e se desintegra.
Isso é exatamente o que aconteceu durante o Império Romano,
cuja religião se tornou vazia e estereotipada. Um movimento espiritual
puritano começou entre os pobres e despossuídos no Mediterrâneo Oriental
e se espalhou lentamente até varrer o paganismo romano. Chamava-se
Cristianismo, e ainda está prosperando dois milênios depois – mesmo
enquanto continuamos desenterrando restos quebrados da grandeza que era
Roma.
Daí minha convicção de que aqueles que veem a história,
seguindo Rousseau e Marx, em termos utópicos, como uma marcha linear de
progresso ascendente, têm feito um estudo insuficiente do registro
sombrio da humanidade. Cada civilização acabou caindo, até mesmo o
antigo Egito, que durou três milênios. Os esquerdistas parecem supor que
a “tolerância” é incremental e cumulativa e que a supressão agressiva
de crenças contrárias é útil e benéfica – quando, na verdade, a censura
da liberdade de expressão apenas força as principais ideias
subterrâneas, que se espalham sem serem detectadas até que seja tarde
demais.
Repetidas vezes desde o nascimento do esquerdismo na
França, no final do século 18, os líderes esquerdistas mergulharam em um
elitismo arrogante, afirmando que sabem o que é melhor para “o povo”,
que eles definem como infantilmente incapazes de pensar por si mesmos. O
que “o povo” realmente quer e acredita torna-se irrelevante para os
estrategistas de esquerda, que reduzem a liberdade de expressão para sua
própria agenda, criam burocracias intrusivas e ineficientes e começam a
se ligar mutuamente, assassinando dissidentes em um novo reino do
terror.
Foi assim que os franceses conseguiram Napoleão. Os
revolucionários derrubaram e executaram um rei, mas depois, perseguindo e
assassinando uns aos outros, eles reduziram a França à anarquia. Então a
população que derrubou um rei conseguiu um imperador – Napoleão,
coroado em Notre Dame pelo Papa! E a França já estava embarcando em uma
grandiosa missão de ambição imperial que traria morte e destruição a
milhões na Europa e na Rússia.
Ao longo da sua carreira, você enfatizou fortemente a importância
das Humanidades – especialmente a história da arte, a religião comparada
e a história militar – para a construção de um novo ambiente mental
para os cidadãos no mundo democrático. No entanto, você critica
repetidamente os estudos de gênero pós-estruturalistas. Por quê?
Camille Paglia –
Sim, sou uma crente apaixonada no poder da arte de revelar as verdades
últimas sobre a experiência humana. Uma educação sobre as artes, que
deveria começar nos primeiros anos de escolaridade, introduziria os
jovens à grande poesia, música e arte visual de todo o mundo. As artes
envolvem e desenvolvem diferentes partes do cérebro, algumas das quais
estão enraizadas em nossa vida primitiva na natureza, antes do
nascimento da civilização. Tanto a criação quanto a apreciação da arte
estão profundamente ligadas ao processo do sonho, um estado visionário
para o qual todos descem à noite, embora muitas vezes as nossas viagens
sejam apagadas ao amanhecer.
Eu venho atacando o cinismo venenoso e
o ignorante filistinismo do pós-estruturalismo há três décadas. Minha
declaração mais extensa foi Junk Bonds and Corporate Raiders: Academe in the Hour of the Wolf, um extenso artigo publicado em Arion, em 1991, que foi reimpresso em minha primeira coletânea de ensaios, Sex, Art, and American Culture
(1992). Ali demonstrei em detalhes exaustivos como os
pós-estruturalistas acadêmicos usam o jargão opaco e labiríntico para
esconder suas próprias enormes lacunas no conhecimento histórico e
cultural básico. Por exemplo, eles ingenuamente atribuem a Michel
Foucault ideias que ele tomou emprestado, sem a referência pertinente,
de sociólogos anteriores, como Emile Durkheim, Max Weber e Erving
Goffman. Além disso, critiquei fortemente como o esquerdismo acadêmico
havia se tornado um grande negócio, um caminho mercenário para o avanço
na carreira. A maioria das pessoas fora dos EUA não percebe que os
principais esquerdistas acadêmicos neste país são operadores muito
perspicazes que se tornaram multimilionários nas universidades de elite.
Duas décadas depois de Junk Bonds, fiz outra avaliação do estado do pós-estruturalismo quando o Chronicle of Higher Education
pediu que eu revisasse três novos livros de jovens acadêmicos sobre
sujeição e dominação, um novo campo chique nos estudos de gênero. O
ensaio, Scholars in Bondage, foi reimpresso em meu livro Free Women, Free Men.
Fiquei horrorizada com o quão desajeitada, repetitiva e superficial a
análise pós-estruturalista se tornou. Essas três mulheres inteligentes e
bem-intencionadas estavam lutando para encontrar suas vozes em meio ao
feio lixo da terminologia pós-estruturalista, que lhes fora imposta
pelos mais velhos para a sobrevivência na carreira. Enquanto isso, seu
conhecimento factual da história da sexualidade, mesmo nos tempos
modernos, foi lamentavelmente limitado e truncado.
Nunca deveria ter sido deixado para
os agitadores da direita ou evangélicos cristãos dizer o óbvio: que os
estudos de gênero, como estão atualmente constituídos, são um culto
monolítico que prega uma ideologia fortemente politizada, da qual o
estudo da biologia foi ilogicamente banido desde o início. Os estudos de
gênero, embebidos nas premissas paranóicas e friamente desensualizadas
do pós-estruturalismo, não se basearam em princípios acadêmicos e não
mostram nenhum desejo de adquiri-los.
Os jovens, naturalmente interessados
em sexo e gênero como temas vitais em suas vidas, estão sendo
doutrinados de maneira não ética por esses programas, que se espalharam
internacionalmente desde suas origens nos EUA e no Reino Unido. Para
entender sexo e gênero, você deve estudar uma ampla gama de história,
antropologia e biologia. Mas os estudos de gênero, que raramente
permitem visões divergentes, tornaram-se um feudo autoritário,
divorciado da realidade social.
O Brasil tem sua própria civilização,
um casamento brilhante de arte e natureza. As imitações fantásticas e o
deslumbrante artifício do Carnaval são contrapostos à sublime grandeza
da montanha, do mar, do rio e do céu. Por qual pretensioso vazio os
acadêmicos brasileiros se afastaram daquela beleza e majestade para
importar os exaustos clichês do pós-estruturalismo?
[1] Título IX é uma lei federal de direitos civis aprovada como parte
das Emendas de Educação de 1972. Esta lei protege as pessoas de
discriminação sexual em programas ou atividades educacionais que recebem
assistência governamental. O Título IX estabelece que: “Nenhuma pessoa
nos Estados Unidos poderá, com base no sexo, ser excluída da
participação, ser impedida de usufruir dos benefícios ou ser sujeita a
discriminação sob qualquer programa de educação ou atividade que receba
assistência financeira federal.” O Título IX aplica-se a qualquer
instituição que receba assistência financeira federal do Departamento de
Educação, incluindo agências educacionais estaduais e locais.
Gunter Axt é historiador e doutor em
História Social pela USP. Foi professor visitante na Université Denis
Diderot, Paris VII, junto ao Institut de la Pensée Contemporaine.
Camille Paglia ficou famosa nos anos 1990, com sua obra Personas Sexuais.
O livro, de 700 páginas, era baseado em uma consistente perspectiva
histórica, apoiada em noções de arquétipos, lendas e mitos, e traçou um
caminho interdisciplinar através da cultura ocidental, recontando o que
ela viu como uma batalha sem fim entre a natureza (violenta, irracional,
indomável e feminina) e a cultura (estética, lógica, sempre tentando e
falhando em domesticar a natureza e, sim, masculina).
Uma autodeclarada libertária defensora da liberdade sexual e de
expressão, em meio às guerras culturais do início dos anos 1990, ela
afirmava que a segunda onda feminista havia se tornado uma força
homogeneizada e repressiva. Ela questionava se a civilização ocidental e
os homens que a construíram não mereciam algum crédito e se as
feministas não estavam ignorando tudo de importante a respeito não
somente da arte, mas também do sexo e até da felicidade das mulheres.
Apesar de Paglia escrever, de tempos em tempos, sobre política e
cultura, ela se retirou, em grande parte, do centro do debate feminista.
Mas, não antes de publicar Free women, free men.
Lançado em 2017, o livro reúne material produzido ao longo de sua
carreira abordando sexo, gênero e feminismo – seus temas mais
recorrentes e favoritos. Nesta mesma época, veio ao Fronteiras do Pensamento e esclareceu, de uma vez por todas, sua posição sobre a questão, que você confere agora:
Chamo minha visão de feminismo de “feminismo da igualdade”. Meu foco é
igualdade de oportunidades para as mulheres. Acredito que a missão do
feminismo seja remover obstáculos para o avanço das mulheres nos âmbitos
político e profissional. Mas, e afirmei isso constantemente em meus
escritos, jamais poderemos resolver plenamente os problemas entre os
homens e as mulheres no âmbito pessoal, onde existem questões como a
atração sexual, o romance e o irracional.
Esse foi o erro do feminismo contemporâneo: imaginar que as
estratégias de emancipação feminina no âmbito público poderiam ser
transferidas para o âmbito privado e impostas através de regulações
oriundas de autoridades.
Sou uma libertária, ou seja, quero defender os direitos do indivíduo
de ser livre, de pensar livremente, de falar livremente, de viver
livremente. Acredito, por exemplo, que as pessoas deveriam parar de se
identificar com seus trabalhos. Sinto que aquilo que as pessoas são mais
aquilo que fazem em suas vidas privada do que a função que desempenham
em seus trabalhos.
Acho que há muitos, muitos problemas na sociedade contemporânea. O
capitalismo moderno criou um dilema da libertação para as mulheres. Pela
primeira vez na história, as mulheres podem conquistar sua
independência financeira e já não dependem mais de um marido, pai ou
irmão para sustentá-las. Foi uma enorme quebra de paradigma, esse novo
sistema moderno de empregos, mas há todos os tipos de doenças e males
psicológicos neste novo mundo. As pessoas vão a escritórios onde homens e
mulheres trabalham lado a lado, de uma forma que homens e mulheres
jamais trabalharam juntos ao longo de toda a história humana. Podemos
voltar cem mil anos no tempo, e veremos que jamais houve esse tipo de
proximidade física e ainda exercendo os mesmos trabalhos, como ocorre
hoje.
Então, acredito que, por um lado, as mulheres têm muitas opções para
si mesmas, porque podem se sustentar e ser livres. Mas, ao mesmo tempo,
ainda estamos procurando nosso caminho, ainda estamos tentando descobrir
como homens e mulheres podem viver juntos e trabalhar juntos em um
mesmo ambiente.
Sempre tento chamar a atenção das pessoas para o fato de que, na era
agrária, que antecedeu a atual era, de tecnologia e do ambiente de
trabalho da classe média, havia uma divisão natural do trabalho. Havia o
mundo dos homens e o mundo das mulheres. Era raro que os dois fizessem
algo juntos, o contato em si era raro. Então, as mulheres de muitas
gerações tiveram muito mais poder em relação às suas próprias
habilidades específicas: cozinhar, trabalhar com cerâmica, costurar e
assim por diante. As mulheres encontravam um tipo de felicidade dentro
do mundo das mulheres.
Lembro disso, porque minha família veio da Itália. Meus quatro avós e
minha mãe nasceram lá. Minhas mais antigas memórias são de um vilarejo
inteiro de italianos que foram aos EUA para trabalhar em fábricas de
sapatos em Nova York. Lembro das diversas gerações, da felicidade de
todas estarem cozinhando juntas, das conversas, da energia do ambiente
etc. Os homens estavam nas fábricas! Então, eles chegavam em casa, todos
os homens sentavam, tomavam seus cafés com licor de anis e conversavam
entre si. Havia muito pouco contato entre eles e as mulheres. De modo
que grande parte do descontentamento atual vem do fato de que existe
muito mais contato do que jamais tiveram ao longo de muitos séculos.
Em qualquer lugar que eu vá, seja na Itália, na Inglaterra ou no
Brasil, vejo que as mulheres da alta classe média, com seus trabalhos
especializados, são infelizes. Elas são muito infelizes e não sabem por
quê. Na minha visão, elas estão infelizes porque elas perderam algo
extremamente importante: na transição da era agrária, elas perderam a
solidariedade das outras mulheres.
A segunda onda do feminismo, quando reapareceu nos anos 1960, se
focou bastante em abrir oportunidades de carreira para as mulheres nas
áreas profissionais e políticas – e foi incrivelmente bem-sucedida
nisso. Mas, neste processo, esse movimento de segunda onda também tendeu
a denegrir o papel da esposa e da mãe e desvalorizar a forte inclinação
que a mulher tem de gerar filhos, já que carrega as crianças em seus
ventres. Penso que estamos testemunhando um processo correto de
recuperação das coisas que a maioria das mulheres valoriza na vida.
Creio que não podemos mais idolatrar a mulher profissional, este
modelo ideal de ambição da classe média alta, impiedosa, indo para o
trabalho com sua maleta. Ela não é o produto derradeiro da história
humana. Ao contrário, ela é, de muitas formas, uma versão limitada da
felicidade humana. Portanto, acredito que as feministas devem escutar
mais as mulheres reais e não tentar ditar o que é importante para elas e
o que não é.