Camille Paglia e o feminismo de uma vez por todas
07.06.2018
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Camille Paglia
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Camille Paglia ficou famosa nos anos 1990, com sua obra Personas Sexuais.
O livro, de 700 páginas, era baseado em uma consistente perspectiva
histórica, apoiada em noções de arquétipos, lendas e mitos, e traçou um
caminho interdisciplinar através da cultura ocidental, recontando o que
ela viu como uma batalha sem fim entre a natureza (violenta, irracional,
indomável e feminina) e a cultura (estética, lógica, sempre tentando e
falhando em domesticar a natureza e, sim, masculina).
Uma autodeclarada libertária defensora da liberdade sexual e de
expressão, em meio às guerras culturais do início dos anos 1990, ela
afirmava que a segunda onda feminista havia se tornado uma força
homogeneizada e repressiva. Ela questionava se a civilização ocidental e
os homens que a construíram não mereciam algum crédito e se as
feministas não estavam ignorando tudo de importante a respeito não
somente da arte, mas também do sexo e até da felicidade das mulheres.
Apesar de Paglia escrever, de tempos em tempos, sobre política e
cultura, ela se retirou, em grande parte, do centro do debate feminista.
Mas, não antes de publicar Free women, free men.
Lançado em 2017, o livro reúne material produzido ao longo de sua
carreira abordando sexo, gênero e feminismo – seus temas mais
recorrentes e favoritos. Nesta mesma época, veio ao Fronteiras do Pensamento e esclareceu, de uma vez por todas, sua posição sobre a questão, que você confere agora:
Chamo minha visão de feminismo de “feminismo da igualdade”. Meu foco é
igualdade de oportunidades para as mulheres. Acredito que a missão do
feminismo seja remover obstáculos para o avanço das mulheres nos âmbitos
político e profissional. Mas, e afirmei isso constantemente em meus
escritos, jamais poderemos resolver plenamente os problemas entre os
homens e as mulheres no âmbito pessoal, onde existem questões como a
atração sexual, o romance e o irracional.
Esse foi o erro do feminismo contemporâneo: imaginar que as
estratégias de emancipação feminina no âmbito público poderiam ser
transferidas para o âmbito privado e impostas através de regulações
oriundas de autoridades.
Sou uma libertária, ou seja, quero defender os direitos do indivíduo
de ser livre, de pensar livremente, de falar livremente, de viver
livremente. Acredito, por exemplo, que as pessoas deveriam parar de se
identificar com seus trabalhos. Sinto que aquilo que as pessoas são mais
aquilo que fazem em suas vidas privada do que a função que desempenham
em seus trabalhos.
Acho que há muitos, muitos problemas na sociedade contemporânea. O
capitalismo moderno criou um dilema da libertação para as mulheres. Pela
primeira vez na história, as mulheres podem conquistar sua
independência financeira e já não dependem mais de um marido, pai ou
irmão para sustentá-las. Foi uma enorme quebra de paradigma, esse novo
sistema moderno de empregos, mas há todos os tipos de doenças e males
psicológicos neste novo mundo. As pessoas vão a escritórios onde homens e
mulheres trabalham lado a lado, de uma forma que homens e mulheres
jamais trabalharam juntos ao longo de toda a história humana. Podemos
voltar cem mil anos no tempo, e veremos que jamais houve esse tipo de
proximidade física e ainda exercendo os mesmos trabalhos, como ocorre
hoje.
Então, acredito que, por um lado, as mulheres têm muitas opções para
si mesmas, porque podem se sustentar e ser livres. Mas, ao mesmo tempo,
ainda estamos procurando nosso caminho, ainda estamos tentando descobrir
como homens e mulheres podem viver juntos e trabalhar juntos em um
mesmo ambiente.
Sempre tento chamar a atenção das pessoas para o fato de que, na era
agrária, que antecedeu a atual era, de tecnologia e do ambiente de
trabalho da classe média, havia uma divisão natural do trabalho. Havia o
mundo dos homens e o mundo das mulheres. Era raro que os dois fizessem
algo juntos, o contato em si era raro. Então, as mulheres de muitas
gerações tiveram muito mais poder em relação às suas próprias
habilidades específicas: cozinhar, trabalhar com cerâmica, costurar e
assim por diante. As mulheres encontravam um tipo de felicidade dentro
do mundo das mulheres.
Lembro disso, porque minha família veio da Itália. Meus quatro avós e
minha mãe nasceram lá. Minhas mais antigas memórias são de um vilarejo
inteiro de italianos que foram aos EUA para trabalhar em fábricas de
sapatos em Nova York. Lembro das diversas gerações, da felicidade de
todas estarem cozinhando juntas, das conversas, da energia do ambiente
etc. Os homens estavam nas fábricas! Então, eles chegavam em casa, todos
os homens sentavam, tomavam seus cafés com licor de anis e conversavam
entre si. Havia muito pouco contato entre eles e as mulheres. De modo
que grande parte do descontentamento atual vem do fato de que existe
muito mais contato do que jamais tiveram ao longo de muitos séculos.
Em qualquer lugar que eu vá, seja na Itália, na Inglaterra ou no
Brasil, vejo que as mulheres da alta classe média, com seus trabalhos
especializados, são infelizes. Elas são muito infelizes e não sabem por
quê. Na minha visão, elas estão infelizes porque elas perderam algo
extremamente importante: na transição da era agrária, elas perderam a
solidariedade das outras mulheres.
A segunda onda do feminismo, quando reapareceu nos anos 1960, se
focou bastante em abrir oportunidades de carreira para as mulheres nas
áreas profissionais e políticas – e foi incrivelmente bem-sucedida
nisso. Mas, neste processo, esse movimento de segunda onda também tendeu
a denegrir o papel da esposa e da mãe e desvalorizar a forte inclinação
que a mulher tem de gerar filhos, já que carrega as crianças em seus
ventres. Penso que estamos testemunhando um processo correto de
recuperação das coisas que a maioria das mulheres valoriza na vida.
Creio que não podemos mais idolatrar a mulher profissional, este
modelo ideal de ambição da classe média alta, impiedosa, indo para o
trabalho com sua maleta. Ela não é o produto derradeiro da história
humana. Ao contrário, ela é, de muitas formas, uma versão limitada da
felicidade humana. Portanto, acredito que as feministas devem escutar
mais as mulheres reais e não tentar ditar o que é importante para elas e
o que não é.
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