domingo, 28 de junho de 2020

Entrevista – Camille Paglia

Entrevista – Camille Paglia
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Reconhecida intelectual norte-americana, Camille Paglia fala à CULT de feminismo, homossexualidade, política e cultura pop

Gunter Axt

De seu grande livro de estreia, Personas sexuais, publicado no Brasil em 1990, ao recente Break, Blow, Burn, antologia comentada de 43 poemas, ainda inédito por aqui, a historiadora da arte e da cultura Camille Paglia tornou-se conhecida pela importância de sua obra e pela sua combatividade em muitas controvérsias nas quais se envolveu. Formada pela Universidade de Yale e professora no Philadelphia College of the Performing Arts, na Pennsylvania, a nova-iorquina de ascendência italiana é considerada uma das principais teóricas do assim chamado pós-feminismo, sendo reconhecida no ranking da revista Foreign policy como uma das intelectuais mais influentes do planeta.
Seu método acadêmico é erudito, comparativo e descritivo. É, portanto, a partir de sólida base – a reflexão sobre a religião comparada, sobre a apropriação simbólica das artes ou sobre a maneira pela qual uma obra artística foi produzida – que Camille produz ensaios de grande repercussão midiática. Apesar da elaborada formação clássica, Camille interessou-se pela cultura popular, valorizando o tema da cultura de massas no ambiente acadêmico.
Camille visitou quatro vezes o Brasil. Em 1996, promovendo o lançamento de seu Vampes e vadias, foi ao Rio de Janeiro e a São Paulo, em companhia de sua então companheira Alison Maddex. Em 2007, conferenciou em Porto Alegre e, em 2008, em Salvador. Retornou a Salvador em fevereiro de 2009 para curtir o carnaval baiano. Declara-se apaixonada pelo Brasil.
Na entrevista a seguir, Camille Paglia fala de Madonna, de Michael Jackson e de Daniela Mercury. Discute a política norte-americana e comenta seu mais recente trabalho publicado nos Estados Unidos. Fala ainda de casamento gay, da adoção de crianças por casais gays e de religião.
CULT – Seu último livro, Break, blow, burn, é um comentário de 43 poemas. Como foi que você selecionou esses poemas e que método usou para analisá-los?
Camille Paglia – O livro é uma mistura de poemas ingleses famosos e obscuros. Ele vai de Shakespeare a Joni Mitchell, cuja canção “Woodstock” abordo como uma ode à natureza durante os revolucionários anos 1960. Eu queria alcançar as massas que já não leem poesia e que agora são absorvidas pela TV, pelos videogames e pela internet. O livro tornou-se, surpreendentemente, um best seller nos EUA – o que demonstra que de fato há um anseio por beleza e por sentido que não tem sido satisfeito pela nova tecnologia.
CULT – Como você analisa os primeiros meses do presidente Barack Obama?
Camille – Eu apoiei Obama nas eleições primárias do Partido Democrata e doei dinheiro para a sua campanha. Acho que ele está ocupando seu cargo com autoridade e dignidade e que sua esposa, Michelle, se tornou uma vigorosa e elegante primeira-dama. Infelizmente, a crise econômica mundial que o presidente herdou fez com que seus primeiros meses fossem muito turbulentos. Eu não acho que suas nomeações, em especial na área da economia, tenham sido tão boas quanto deveriam. O resultado foi uma primeira semana desastrosa, em que Obama permitiu passivamente que o Congresso aprovasse um pacote de incentivo econômico tão grotesco e extravagante que fez com que o desmoralizado Partido Republicano ressuscitasse. Num piscar de olhos, Obama perdeu toda a esperança de governar de maneira unificadora na estrutura bipartidária.
Fiquei satisfeita com seu discurso no Cairo, que tratou de curar as divisões entre o Ocidente e o mundo muçulmano, mesmo que alguns detalhes tenham me parecido ingenuamente otimistas ou historicamente imprecisos. A atmosfera política nos Estados Unidos voltou ao partidarismo amargo e feroz.
CULT – E quanto a Hillary Clinton, cuja campanha presidencial você criticou?
Camille – Eu era uma fã de Hillary quando ela apareceu na cena nacional durante a primeira campanha presidencial de Bill Clinton, em 1992. Achei que ela era uma mulher forte e franca. Mas depois me decepcionei com sua megalomania à Evita, com seus sigilos paranoicos e seu gerenciamento amador da reforma da saúde em 1993. As duas administrações de Clinton foram uma cadeia de escândalos autoinduzidos. Quais eram as qualificações de Hillary para a presidência, além de ter sido casada com Bill? As feministas a adoravam, mas ela nunca conseguiu nada por si própria.
CULT – Na sua opinião, o que Michael Jackson representa para a cultura pop?
Camille – Como a Madonna, Michael Jackson decaiu lentamente do ofuscante cume de seu brilho artístico. Historiadores da música estudarão quanto os álbuns mais importantes de Michael deveram à sua colaboração com o produtor virtuoso Quincy Jones. Michael fez muito pouco de grande música depois que a parceria com Jones acabou. Michael é uma de muitas estrelas infantis admiráveis, como Judy Garland, que tiveram problemas na transição para a vida adulta e acabaram se tornando viciadas em drogas.
Michael era muito talentoso e, apesar disso,  deleitava-se com produções exageradas em que se apresentava arrogante como um mártir semelhante a Cristo. um gângster pomposo ou um líder de esquadrão fascista. Ele era um dançarino maravilhoso, mas nunca evoluiu para além de um conjunto nuclear de passos de marionete e aquele ilusório “moon walk”. Seu repertório vocal também cessou de se desenvolver – a emoção sincera era truncada por grunhidos e soluços sufocados. Todos nós intuíamos as agonias acerca de sua raça e de seu gênero sinalizadas pelas cirurgias plásticas que ele fazia compulsivamente. Menos perdoável era a maneira com a qual ele tratava seus filhos, mentindo sobre sua paternidade e forçando-os a usar máscaras em público. A ironia é que, agora que Michael morreu, nós podemos rever todo o corpus de sua obra e aproveitar e celebrar o que nele há de soberbo e de melhor. Não há dúvida de que a vida mais autêntica de Michael se deu no palco. Todo o resto foi um caos.
CULT – Você já criticou o casamento gay. Por quê?
Camille – Por 20 anos, tenho clamado pela substituição de todo casamento, homossexual ou heterossexual, pela união civil. O Estado, que governa os direitos de propriedade, deve ser estritamente separado da religião e não deve jamais sancionar sacramentos religiosos. Pessoas que querem a bênção de uma igreja devem se sentir livres para ter uma segunda cerimônia na igreja que escolherem. Eu acredito que os ativistas gays dos Estados Unidos cometeram um sério erro estratégico ao reivindicar o casamento, porque a palavra “casamento” é muito associada à tradição religiosa e gera uma revolta entre os conservadores. Em vez disso, os ativistas deveriam se concentrar nos benefícios específicos injustamente negados às uniões gays. Por exemplo, nos Estados Unidos, se um gay morre, seu parceiro não recebe os benefícios do seguro social, que, no caso das uniões heterossexuais, vai automaticamente para o parceiro. Isso é uma afronta! Mas esse ponto tem sido deixado de lado pelos ativistas gays por conta do seu entusiasmo pela quimera reacionária do “casamento”. Uma visão de esquerda autêntica (como nos anos 1960) iria desafiar todo o conceito de casamento.
CULT – Você terminou recentemente um relacionamento de 15 anos com sua parceira Alison Maddex. Vocês foram casadas formalmente?
Camille – Na realidade, nós terminamos há um ano e meio, mas a notícia surgiu na mídia somente agora. Não, nós não fomos casadas. Um dos pontos altos do nosso relacionamento foi a repercussão na mídia de nossa visita ao Brasil em 1996. Nós amamos os brasileiros. Na verdade, o mais importante relacionamento da Alison, antes do nosso, foi com uma brasileira.
CULT – Como você avalia a possibilidade de um relacionamento amoroso de longa duração entre duas mulheres?
Camille – Para ser franca, sou pessimista quanto a eles do ponto de vista erótico. As lésbicas formam laços de lealdade muito profundos – compromissos vitalícios que têm sido observados desde o famoso caso das “senhoritas de Llangollen”, que aconteceu há dois séculos no País de Gales. Mas sou cética sobre quanto “fervor” sexual ainda pode haver entre duas mulheres depois de dez ou 20 anos. Existem, entre escritores gays, casos muito famosos de casais de homens que ficaram juntos por toda a vida — W.H. Auden, Allen Ginsberg, Gore Vidal. Mas eles jamais exigiram de seus parceiros a exclusividade sexual. Ambos os amantes tinham divertidas aventuras alhures com jovens atraentes. Isso não parece possível com as lésbicas. A aventura externa acaba representando uma traição do laço emocional. Eu mesma fui, de modo entediante, monogâmica em minha conduta. Olhando em retrospecto (dado o número de assédios que recebi tanto de homens quanto de mulheres nos últimos 20 anos), acho que foi um erro!
CULT – Você e Alison têm um filho. O que pensa sobre a adoção e a criação de crianças por casais gays?
Camille – Meu filho, que adotei legalmente depois que nasceu, sete anos atrás, é filho biológico de Alison e está sendo criado por nós duas de modo amigável. Usamos uma clínica de fertilidade da Filadélfia e um banco de esperma da Califórnia para escolher um doador anônimo. Tivemos a sorte de a adoção gay ser permitida no estado da Pensilvânia – o que não ocorre em algumas partes dos Estados Unidos. Não gosto da ideia de “duas mamães” ou de “dois papais” para os filhos de casais gays. Acho que isso pesa muito sobre a criança na forma de aborrecimentos desnecessários durante a adolescência. Meu filho tem apenas uma mãe – Alison – e é por isso que ele tem o sobrenome dela. Não gosto dos nomes longos nem das combinações hifenizadas construídas por muitos pais gays. Essas são estratégias desenvolvidas para proteger o amor-próprio de adultos, e não o bem da criança. De forma geral, a criação de uma criança por um casal gay é um enorme experimento social tornado possível por um clima liberal na cultura ocidental. Tenho muita esperança de que os resultados gerais serão positivos – mas a essa altura ninguém pode ter certeza.
CULT – Em recente entrevista a uma emissora de televisão de Toronto, você declarou que estava “loucamente apaixonada” por Daniela Mercury, que você conheceu no último carnaval de Salvador. Alguns sites brasileiros especularam que vocês estavam tendo um caso amoroso. Como é a sua relação com ela?
Camille – Tendo Vênus por minha testemunha, afirmo ser uma simples devota no culto a Daniela, que tem inúmeros seguidores ao redor do mundo. Tudo começou há um ano, muito antes de conhecê-la pessoalmente, quando fui presenteada com um pacote com seus DVDs depois de uma palestra que proferi em Salvador. Eu estava absolutamente eletrizada pelo brilho artístico de Daniela e me tornei uma estudiosa de seu trabalho, sobre o qual escrevi no site Salon.com. Depois de anos de desilusão com o declínio da qualidade dos filmes de Hollywood e da música popular nos Estados Unidos, fiquei estonteada com o samba-reggae da Bahia, que Daniela reinterpretou de forma explosiva. Além disso, Daniela era a encarnação viva de muitas de minhas ideias — como as desenvolvidas em Personas sexuais, que ela representa em seus maravilhosos figurinos teatrais e coreografias.
Quando conheci Daniela no carnaval, fiquei encantada pelo seu calor despretensioso e humano. Mas esse também foi um momento de grande revelação, porque nunca na minha vida eu tinha conhecido alguém, homem ou mulher, em quem tivesse reconhecido uma corajosa imaginação sincrética como a minha. Talvez seja por nossa ascendência italiana! O barroco Bernini floresce em Daniela. Além disso, Daniela casou-se com um homem que eu adoro. Desde o momento em que conheci Marco Scabia na casa de Daniela, fiquei profundamente impressionada com ele, como pessoa e como pensador. Ele é tão bonito espiritualmente quanto fisicamente. Toda foto tirada de Daniela e Marco juntos resplandece com a luz da química mútua que eles têm. Eles merecem toda a felicidade na vida!
CULT – Vampes e vadias finalmente está sendo publicado na França. É seu primeiro livro publicado naquele país. Você acredita que a sua crítica ao pós-estruturalismo francês pode ter contribuído para o eventual desafeto encontrado por sua obra ali? O que mudou?
Camille – Duvido que tenha sido minha campanha militante contra Jacques Derrida, Jacques Lacan e Michel Foucault o que causou esse atraso, pois esses autores já estavam obsoletos na França na época em que os professores norte-americanos os promoviam servilmente. Foi pelo fato de eu ter absorvido tanto as ideias francesas desde a minha infância (meu pai ensinava francês) que os franceses não precisavam de mim. Fiquei famosa por atacar o puritanismo anglo-americano no feminismo e na academia. Eu estava simplesmente pondo em prática as lições que aprendi de Sade, Gautier e Balzac, assim como de Jeanne Moreau e de Catherine Deneuve! As feministas francesas eram muito chiques e nunca atacaram a arte ou a indústria da moda, como fizeram as feministas anglo-americanas. Mas algo estranho pode estar acontecendo na França; por exemplo, um documentário francês sobre pornografia para o qual fui entrevistada há vários anos teve seu lançamento proibido em um julgamento. Assim, o meu trabalho, com sua defesa da liberdade de expressão e da fantasia sexual, pode parecer especialmente relevante neste momento.
CULT – Você está trabalhando em algum novo projeto neste momento?
Camille – Estou escrevendo um novo livro na linha de Break, blow, burn. É sobre a história das artes visuais e também visa o grande público.

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