Entrevista – Camille Paglia

Reconhecida intelectual norte-americana, Camille Paglia fala à CULT de feminismo, homossexualidade, política e cultura pop
Gunter Axt
De seu grande livro de estreia, Personas sexuais, publicado no Brasil em 1990, ao recente Break, Blow, Burn, antologia
 comentada de 43 poemas, ainda inédito por aqui, a historiadora da arte e
 da cultura Camille Paglia tornou-se conhecida pela importância de sua 
obra e pela sua combatividade em muitas controvérsias nas quais se 
envolveu. Formada pela Universidade de Yale e professora no Philadelphia
 College of the Performing Arts, na Pennsylvania, a nova-iorquina de 
ascendência italiana é considerada uma das principais teóricas do assim 
chamado pós-feminismo, sendo reconhecida no ranking da revista Foreign policy como uma das intelectuais mais influentes do planeta.
Seu método acadêmico é erudito, comparativo e descritivo. É, 
portanto, a partir de sólida base – a reflexão sobre a religião 
comparada, sobre a apropriação simbólica das artes ou sobre a maneira 
pela qual uma obra artística foi produzida – que Camille produz ensaios 
de grande repercussão midiática. Apesar da elaborada formação clássica, 
Camille interessou-se pela cultura popular, valorizando o tema da 
cultura de massas no ambiente acadêmico.
Camille visitou quatro vezes o Brasil. Em 1996, promovendo o lançamento de seu Vampes e vadias,
 foi ao Rio de Janeiro e a São Paulo, em companhia de sua então 
companheira Alison Maddex. Em 2007, conferenciou em Porto Alegre e, em 
2008, em Salvador. Retornou a Salvador em fevereiro de 2009 para curtir o
 carnaval baiano. Declara-se apaixonada pelo Brasil.
Na entrevista a seguir, Camille Paglia fala de Madonna, de Michael 
Jackson e de Daniela Mercury. Discute a política norte-americana e 
comenta seu mais recente trabalho publicado nos Estados Unidos. Fala 
ainda de casamento gay, da adoção de crianças por casais gays e de 
religião. 
CULT – Seu último livro, Break, blow, burn, é um comentário de 43 poemas. Como foi que você selecionou esses poemas e que método usou para analisá-los? 
Camille Paglia – O livro é uma mistura de poemas 
ingleses famosos e obscuros. Ele vai de Shakespeare a Joni Mitchell, 
cuja canção “Woodstock” abordo como uma ode à natureza durante os 
revolucionários anos 1960. Eu queria alcançar as massas que já não leem 
poesia e que agora são absorvidas pela TV, pelos videogames e pela 
internet. O livro tornou-se, surpreendentemente, um best seller nos EUA –
 o que demonstra que de fato há um anseio por beleza e por sentido que 
não tem sido satisfeito pela nova tecnologia.
CULT – Como você analisa os primeiros meses do presidente Barack Obama?
Camille – Eu apoiei Obama nas eleições primárias do 
Partido Democrata e doei dinheiro para a sua campanha. Acho que ele está
 ocupando seu cargo com autoridade e dignidade e que sua esposa, 
Michelle, se tornou uma vigorosa e elegante primeira-dama. Infelizmente,
 a crise econômica mundial que o presidente herdou fez com que seus 
primeiros meses fossem muito turbulentos. Eu não acho que suas 
nomeações, em especial na área da economia, tenham sido tão boas quanto 
deveriam. O resultado foi uma primeira semana desastrosa, em que Obama 
permitiu passivamente que o Congresso aprovasse um pacote de incentivo 
econômico tão grotesco e extravagante que fez com que o desmoralizado 
Partido Republicano ressuscitasse. Num piscar de olhos, Obama perdeu 
toda a esperança de governar de maneira unificadora na estrutura 
bipartidária.
Fiquei satisfeita com seu discurso no Cairo, que tratou de curar as 
divisões entre o Ocidente e o mundo muçulmano, mesmo que alguns detalhes
 tenham me parecido ingenuamente otimistas ou historicamente imprecisos.
 A atmosfera política nos Estados Unidos voltou ao partidarismo amargo e
 feroz.
CULT – E quanto a Hillary Clinton, cuja campanha presidencial você criticou? 
Camille – Eu era uma fã de Hillary quando ela 
apareceu na cena nacional durante a primeira campanha presidencial de 
Bill Clinton, em 1992. Achei que ela era uma mulher forte e franca. Mas 
depois me decepcionei com sua megalomania à Evita, com seus sigilos 
paranoicos e seu gerenciamento amador da reforma da saúde em 1993. As 
duas administrações de Clinton foram uma cadeia de escândalos 
autoinduzidos. Quais eram as qualificações de Hillary para a 
presidência, além de ter sido casada com Bill? As feministas a adoravam,
 mas ela nunca conseguiu nada por si própria.
CULT – Na sua opinião, o que Michael Jackson representa para a cultura pop? 
Camille – Como a Madonna, Michael Jackson decaiu 
lentamente do ofuscante cume de seu brilho artístico. Historiadores da 
música estudarão quanto os álbuns mais importantes de Michael deveram à 
sua colaboração com o produtor virtuoso Quincy Jones. Michael fez muito 
pouco de grande música depois que a parceria com Jones acabou. Michael é
 uma de muitas estrelas infantis admiráveis, como Judy Garland, que 
tiveram problemas na transição para a vida adulta e acabaram se tornando
 viciadas em drogas.
Michael era muito talentoso e, apesar disso,  deleitava-se com 
produções exageradas em que se apresentava arrogante como um mártir 
semelhante a Cristo. um gângster pomposo ou um líder de esquadrão 
fascista. Ele era um dançarino maravilhoso, mas nunca evoluiu para além 
de um conjunto nuclear de passos de marionete e aquele ilusório “moon 
walk”. Seu repertório vocal também cessou de se desenvolver – a emoção 
sincera era truncada por grunhidos e soluços sufocados. Todos nós 
intuíamos as agonias acerca de sua raça e de seu gênero sinalizadas 
pelas cirurgias plásticas que ele fazia compulsivamente. Menos perdoável
 era a maneira com a qual ele tratava seus filhos, mentindo sobre sua 
paternidade e forçando-os a usar máscaras em público. A ironia é que, 
agora que Michael morreu, nós podemos rever todo o corpus de 
sua obra e aproveitar e celebrar o que nele há de soberbo e de melhor. 
Não há dúvida de que a vida mais autêntica de Michael se deu no palco. 
Todo o resto foi um caos.
CULT – Você já criticou o casamento gay. Por quê? 
Camille – Por 20 anos, tenho clamado pela 
substituição de todo casamento, homossexual ou heterossexual, pela união
 civil. O Estado, que governa os direitos de propriedade, deve ser 
estritamente separado da religião e não deve jamais sancionar 
sacramentos religiosos. Pessoas que querem a bênção de uma igreja devem 
se sentir livres para ter uma segunda cerimônia na igreja que 
escolherem. Eu acredito que os ativistas gays dos Estados Unidos 
cometeram um sério erro estratégico ao reivindicar o casamento, porque a
 palavra “casamento” é muito associada à tradição religiosa e gera uma 
revolta entre os conservadores. Em vez disso, os ativistas deveriam se 
concentrar nos benefícios específicos injustamente negados às uniões 
gays. Por exemplo, nos Estados Unidos, se um gay morre, seu parceiro não
 recebe os benefícios do seguro social, que, no caso das uniões 
heterossexuais, vai automaticamente para o parceiro. Isso é uma afronta!
 Mas esse ponto tem sido deixado de lado pelos ativistas gays por conta 
do seu entusiasmo pela quimera reacionária do “casamento”. Uma visão de 
esquerda autêntica (como nos anos 1960) iria desafiar todo o conceito de
 casamento.
CULT – Você terminou recentemente um relacionamento de 15 anos com sua parceira Alison Maddex. Vocês foram casadas formalmente? 
Camille – Na realidade, nós terminamos há um ano e 
meio, mas a notícia surgiu na mídia somente agora. Não, nós não fomos 
casadas. Um dos pontos altos do nosso relacionamento foi a repercussão 
na mídia de nossa visita ao Brasil em 1996. Nós amamos os brasileiros. 
Na verdade, o mais importante relacionamento da Alison, antes do nosso, 
foi com uma brasileira.
CULT – Como você avalia a possibilidade de um relacionamento amoroso de longa duração entre duas mulheres?
Camille – Para ser franca, sou pessimista quanto a 
eles do ponto de vista erótico. As lésbicas formam laços de lealdade 
muito profundos – compromissos vitalícios que têm sido observados desde o
 famoso caso das “senhoritas de Llangollen”, que aconteceu há dois 
séculos no País de Gales. Mas sou cética sobre quanto “fervor” sexual 
ainda pode haver entre duas mulheres depois de dez ou 20 anos. Existem, 
entre escritores gays, casos muito famosos de casais de homens que 
ficaram juntos por toda a vida — W.H. Auden, Allen Ginsberg, Gore Vidal.
 Mas eles jamais exigiram de seus parceiros a exclusividade sexual. 
Ambos os amantes tinham divertidas aventuras alhures com jovens 
atraentes. Isso não parece possível com as lésbicas. A aventura externa 
acaba representando uma traição do laço emocional. Eu mesma fui, de modo
 entediante, monogâmica em minha conduta. Olhando em retrospecto (dado o
 número de assédios que recebi tanto de homens quanto de mulheres nos 
últimos 20 anos), acho que foi um erro!
CULT – Você e Alison têm um filho. O que pensa sobre a adoção e a criação de crianças por casais gays? 
Camille – Meu filho, que adotei legalmente depois 
que nasceu, sete anos atrás, é filho biológico de Alison e está sendo 
criado por nós duas de modo amigável. Usamos uma clínica de fertilidade 
da Filadélfia e um banco de esperma da Califórnia para escolher um 
doador anônimo. Tivemos a sorte de a adoção gay ser permitida no estado 
da Pensilvânia – o que não ocorre em algumas partes dos Estados Unidos. 
Não gosto da ideia de “duas mamães” ou de “dois papais” para os filhos 
de casais gays. Acho que isso pesa muito sobre a criança na forma de 
aborrecimentos desnecessários durante a adolescência. Meu filho tem 
apenas uma mãe – Alison – e é por isso que ele tem o sobrenome dela. Não
 gosto dos nomes longos nem das combinações hifenizadas construídas por 
muitos pais gays. Essas são estratégias desenvolvidas para proteger o 
amor-próprio de adultos, e não o bem da criança. De forma geral, a 
criação de uma criança por um casal gay é um enorme experimento social 
tornado possível por um clima liberal na cultura ocidental. Tenho muita 
esperança de que os resultados gerais serão positivos – mas a essa 
altura ninguém pode ter certeza.
CULT – Em recente entrevista a uma emissora de televisão de 
Toronto, você declarou que estava “loucamente apaixonada” por Daniela 
Mercury, que você conheceu no último carnaval de Salvador. Alguns sites 
brasileiros especularam que vocês estavam tendo um caso amoroso. Como é a
 sua relação com ela?
Camille – Tendo Vênus por minha testemunha, afirmo 
ser uma simples devota no culto a Daniela, que tem inúmeros seguidores 
ao redor do mundo. Tudo começou há um ano, muito antes de conhecê-la 
pessoalmente, quando fui presenteada com um pacote com seus DVDs depois 
de uma palestra que proferi em Salvador. Eu estava absolutamente 
eletrizada pelo brilho artístico de Daniela e me tornei uma estudiosa de
 seu trabalho, sobre o qual escrevi no site Salon.com. Depois de anos de
 desilusão com o declínio da qualidade dos filmes de Hollywood e da 
música popular nos Estados Unidos, fiquei estonteada com o samba-reggae 
da Bahia, que Daniela reinterpretou de forma explosiva. Além disso, 
Daniela era a encarnação viva de muitas de minhas ideias — como as 
desenvolvidas em Personas sexuais, que ela representa em seus maravilhosos figurinos teatrais e coreografias.
Quando conheci Daniela no carnaval, fiquei encantada pelo seu calor 
despretensioso e humano. Mas esse também foi um momento de grande 
revelação, porque nunca na minha vida eu tinha conhecido alguém, homem 
ou mulher, em quem tivesse reconhecido uma corajosa imaginação 
sincrética como a minha. Talvez seja por nossa ascendência italiana! O 
barroco Bernini floresce em Daniela. Além disso, Daniela casou-se com um
 homem que eu adoro. Desde o momento em que conheci Marco Scabia na casa
 de Daniela, fiquei profundamente impressionada com ele, como pessoa e 
como pensador. Ele é tão bonito espiritualmente quanto fisicamente. Toda
 foto tirada de Daniela e Marco juntos resplandece com a luz da química 
mútua que eles têm. Eles merecem toda a felicidade na vida!
CULT – Vampes e vadias finalmente está sendo 
publicado na França. É seu primeiro livro publicado naquele país. Você 
acredita que a sua crítica ao pós-estruturalismo francês pode ter 
contribuído para o eventual desafeto encontrado por sua obra ali? O que 
mudou? 
Camille – Duvido que tenha sido minha campanha 
militante contra Jacques Derrida, Jacques Lacan e Michel Foucault o que 
causou esse atraso, pois esses autores já estavam obsoletos na França na
 época em que os professores norte-americanos os promoviam servilmente. 
Foi pelo fato de eu ter absorvido tanto as ideias francesas desde a 
minha infância (meu pai ensinava francês) que os franceses não 
precisavam de mim. Fiquei famosa por atacar o puritanismo 
anglo-americano no feminismo e na academia. Eu estava simplesmente pondo
 em prática as lições que aprendi de Sade, Gautier e Balzac, assim como 
de Jeanne Moreau e de Catherine Deneuve! As feministas francesas eram 
muito chiques e nunca atacaram a arte ou a indústria da moda, como 
fizeram as feministas anglo-americanas. Mas algo estranho pode estar 
acontecendo na França; por exemplo, um documentário francês sobre 
pornografia para o qual fui entrevistada há vários anos teve seu 
lançamento proibido em um julgamento. Assim, o meu trabalho, com sua 
defesa da liberdade de expressão e da fantasia sexual, pode parecer 
especialmente relevante neste momento.
CULT – Você está trabalhando em algum novo projeto neste momento? 
Camille – Estou escrevendo um novo livro na linha de Break, blow, burn. É sobre a história das artes visuais e também visa o grande público.
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