Camille Paglia: Educação superior, gênero e liberdade de expressão

por Gunter Axt
Em 9 de abril de 2019, a reconhecida historiadora cultural 
Camille Paglia, autora de oito livros – alguns icônicos em muitos 
países, como Personas Sexuais –, estava pronta
 para falar de Mick Jagger e David Bowie em uma conferência intitulada 
“Imagens Ambíguas: Dualidade Sexual e Multiplicidade Sexual na Arte 
Ocidental”, na Universidade das Artes da Filadélfia, quando 
manifestantes a interromperam. Antes da palestra, um grupo protestava 
contra comentários sobre agressão sexual e transgenerismo, divulgados 
nas mídias sociais, que teriam sido feitos há anos por Camille em 
entrevistas diversas. Cerca de 40 minutos depois do início da palestra, 
um manifestante acionou o alarme de incêndio no corredor, causando o 
cancelamento do evento, pois todos os 17 andares do prédio da 
universidade tiveram de ser evacuados. No dia seguinte, o presidente da 
UArts, David Yager, publicou, via e-mail, uma contundente declaração em 
defesa da liberdade de expressão: “limitar o leque de vozes na sociedade
 corrói nossa democracia. As universidades, além disso, estão no centro 
da noção revolucionária de liberdade de expressão: promover a livre 
troca de ideias é parte da razão central de sua existência.” E concluiu,
 enfático: “agora não, não na UArts!”. Os ativistas, rejeitando a 
declaração como “ignorante”, promoveram uma petição online exigindo a 
demissão de Camille da universidade, onde ela leciona desde 1984, e sua 
substituição por uma “pessoa queer e de cor”.
A resposta do presidente poderia ser considerada óbvia: em 
defesa de um membro do corpo docente sênior (com relevante produção 
acadêmica, de repercussão internacional), da autonomia para decidir 
sobre o currículo e da liberdade de expressão. Mas a verdade é que 
provocou forte impressão. Porque os Estados Unidos vêm sendo sacudidos 
por episódios cujo desfecho tem sido frequentemente o oposto.
Como na Universidade de Yale, em novembro de 2015, quando 
por duas horas um grupo de estudantes cercou o respeitado sociólogo 
Nicholas Christakis, o Mestre do Silliman College, com gritos e 
explosões de choro. A fúria foi desencadeada porque sua esposa, uma 
psicóloga infantil, sugeriu em um e-mail que os alunos de graduação 
poderiam escolher seus trajes de Halloween sem a aprovação do 
“escritório de diversidade” – como se no Brasil precisássemos de um 
departamento para regular o carnaval. Alguns interpelaram Christakis: 
“Não importa se você concorda ou não. Não é um debate!” Uma garota 
gritou: “Você é nojento!” As imagens de vídeo são perturbadoras, pois 
vemos Christakis acreditando na força do diálogo, cercado por estudantes
 infantis e desesperados – representação perfeita do que é chamado de 
“geração floco de neve”: uma turma ultrassensível que explode em 
lágrimas diante de qualquer frustração. Nenhum aluno foi repreendido por
 insubordinação, e Yale até mesmo concedeu prêmios a alguns, depois que o
 presidente, Peter Salovey, agradeceu àqueles que invadiram o gramado de
 sua casa à noite, abraçando a ideia de que tinha algo a aprender com 
eles. Diante da capitulação adulta, o assédio e a intimidação aos 
Christakises continuou por meses. O casal finalmente renunciou e deixou a
 residência do Mestre, embora Christakis tenha continuado com sua 
posição na faculdade de Yale. Sua esposa, porém, não ensinaria mais lá.
Em maio de 2017, um grupo de estudantes invadiu a aula de 
biologia do popular professor Bret Weinstein, um progressista de 
esquerda de longa data, no Evergreen State College, e o chamou de 
“racista” por ter recusado o decreto do diretor de orientação 
multicultural para todos os professores brancos suspenderem seus cursos e
 permanecer fora do campus em um “Dia da Ausência”, uma forma de empatia
 por não-brancos. Weinstein chamou o banimento de brancos do campus de 
um “ato de opressão por si mesmo”, por causa de seu direcionamento da 
cor da pele. Weinstein e sua esposa bióloga, Heather Heying, finalmente 
renunciaram à Evergreen, depois de entrarem com uma ação judicial 
alegando que a faculdade “não protegeu seus funcionários de repetidas 
hostilidades verbais e escritas provocativas e corrosivas baseadas em 
raça, bem como de ameaças de violência física”.
O psicólogo canadense Jordan Peterson também teve aulas de 
pós-graduação e palestras interrompidas, como em março de 2017 na 
Universidade McMaster, e, um ano depois, na Queen’s University. Ao 
discordar de certos exageros do politicamente correto e da intervenção 
do Estado no modo como as pessoas podem falar ou escrever, Peterson foi 
acusado de “transfobia”. Recentemente, em um episódio nebuloso, a 
Universidade de Cambridge cancelou um convite a Peterson para um período
 como professor visitante, sem dar uma razão.
Em maio deste ano, a Harvard College demitiu o professor 
Ronald Sullivan e sua esposa, Stephanie Robinson, de seus cargos de dez 
anos como co-reitores residentes da Winthrop House porque Sullivan 
decidiu se juntar à equipe de defesa do controverso produtor de filmes 
Harvey Weinstein, acusado de múltiplos estupros e assédios e pivô do 
movimento #MeToo. Embora Weinstein não tenha sequer sido 
julgado e o direito a um advogado de defesa seja uma garantia 
constitucional para todo réu, os estudantes argumentaram que não se 
sentiam “seguros” na Winthrop House com Sullivan, diretor do Instituto 
de Justiça Criminal da Harvard Law – que, aliás, já havia representado 
clientes impopulares no passado, como assassinos em série e até acusados
 de terrorismo, sem nunca provocar qualquer sentimento de insegurança 
entre os estudantes. Mas Harvard capitulou, abrindo um precedente 
perigoso que coloca a presunção de inocência em segundo plano, tornando o
 advogado culpado apenas por defender um acusado impopular.
Na entrevista que segue, conversei com Camille Paglia sobre
 o recente episódio na UArts, bem como sobre o contexto de outros 
incidentes em campus na América do Norte.
Sobre o que exatamente era sua palestra, e quais 
assuntos você não conseguiu abordar por causa da interrupção? O Sunday 
Times de Londres mencionou que você estava prestes a falar sobre Mick 
Jagger e David Bowie.
Camille Paglia – No outono passado, o diretor da Escola de 
Estudos de Crítica (onde meus cursos estão listados) me pediu para dar 
uma palestra em sua nova série de conferências. Então eu escolhi o 
assunto de gênero, porque o meu curso “Imagens de Gênero na Mídia”, que 
eu ministrei pela 29ª vez na primavera passada, foi o primeiro curso 
sobre gênero já oferecido pela Universidade das Artes. Começou em 1986 
como “Mulheres e Papeis Sexuais”, dois anos depois que eu cheguei para 
ensinar aqui. Naquele primeiro semestre, iniciei uma discussão com os 
estudantes sobre o tema feminista de assédio sexual. Minha turma 
desenvolveu diretrizes moderadas apropriadas para uma faculdade de artes
 e eu apresentei a proposta completa à administração. Foi a primeira vez
 que o assédio sexual foi levantado como uma questão pública neste 
campus.
Minha palestra de 9 de abril, “Imagens Ambíguas: Dualidade 
Sexual e Multiplicidade Sexual na Arte Ocidental”, era um comentário 
sobre uma série de 50 imagens sexualmente ambíguas ou relacionadas a 
gênero tiradas de toda a história da arte, começando com a Idade da 
Pedra e se movendo cronologicamente, através do antigo Egito, da 
Mesopotâmia e da era greco-romana até a cultura popular moderna. Entre 
as imagens pop estavam Marlene Dietrich em seu smoking masculino e de 
cartola no Marrocos; Katharine Hepburn em seus terninhos e calças jeans;
 as drags e trans superstars de Andy Warhol, Jackie Curtis e Candy 
Darling; Mick Jagger e David Bowie em seus “vestidos masculinos” de 
Michael Fish; a sessão de fotos de Jim Morrison como um Antinoo de 
cabelos compridos e peito nu; e seis fotos espetaculares de Grace Jones 
vivendo personas sexuais deslumbrantemente diferentes, de femme fatal a açougueira.
As imagens terminariam com um pôster de filme de Raquel 
Welch como a transexual Myra Breckinridge de Gore Vidal no filme baseado
 em seu romance best-seller de 1968 (que vendeu mais de dois milhões de 
cópias em um mês). Myra Breckinridge foi relançado em maio, depois de 
estar fora de catálogo nos EUA por mais de 30 anos. A editora me pediu 
para escrever a introdução. Em 1991, Vidal disse à revista New York para sua reportagem de capa sobre mim (“Woman Warrior”) que meu primeiro livro, Sexual Personae,
 “soa como Myra Breckinridge em um rolo. Eu não tenho elogios maiores”. 
Vidal estava absolutamente correto: a voz do livro é uma construção 
transexual, expressando minha alienação vitalícia do sistema de gênero. 
Após sua publicação, eu chamei Sexual Personae (718 páginas) “a maior mudança de sexo na história”.
Daí o absurdo de um protesto transgênero contra um 
professor e autor que se descreve como transgênero – e que foi a única 
pessoa abertamente gay (estudante ou professor) na Pós-Graduação de Yale
 durante os anos que estive lá (1968-72). Todo mundo estava em segurança
 no armário. Minha tese de doutorado, Personas Sexuais: Categorias do Andrógino,
 foi a única dissertação sobre sexo em toda a pós-graduação – numa época
 em que essa questão não era levada a sério e tratar dela era 
profissionalmente arriscado.
Não há papa e nenhuma doutrina oficial nem no feminismo nem
 no transgenerismo. Qualquer feminista ou transexual é completamente 
livre para assumir qualquer posição sobre qualquer assunto. Nenhum 
indivíduo ou grupo de indivíduos tem o direito de impor a conformidade 
em assuntos controversos, especialmente quando um movimento ainda está 
em suas fases iniciais. Assumir que a ideologia feminista ou transgênero
 já está congelada e que o menor desvio dela é heresia é uma profunda 
estupidez. O pensamento contemporâneo progressista deve estar sempre em 
fluxo livre – e especialmente no campo do gênero, sobre cuja fluidez 
venho escrevendo há mais de meio século.
Minha palestra terminou abruptamente enquanto ainda 
estávamos na Antiguidade: minha imagem da estátua de culto estranhamente
 mumiforme de Diana de Éfeso acabara de aparecer na tela. Antecedendo, 
havia duas magníficas esculturas do amante do imperador Adriano, 
Antínoo, assim como a ambígua “Hermafrodita Adormecida” no Louvre. Era 
bastante óbvio que os manifestantes (rindo e tagarelando como crianças 
de colégio inquietas nas filas superiores) ficaram desapontados que 
minha palestra foi realmente pró-transgênero e que não havia nada sobre o
 que vaiar. Em vez de admitir para si mesmos que haviam sido 
grosseiramente mal informados sobre mim e meu trabalho, um 
co-conspirador acionou o alarme de incêndio no corredor – um testemunho 
do desespero narcisista dos manifestantes em se tornarem rebeldes. Essa 
intervenção grosseira foi um ato ilegal que colocou centenas de 
ocupantes estudantis do prédio de 17 andares em perigo, pois todos foram
 forçados a sair rapidamente pelos estreitos degraus até as movimentadas
 ruas da cidade e a aguardar até os caminhões de bombeiros chegarem. 
Somente quando os fiscais de incêndio inspecionavam todos os andares, 
foi permitido que as pessoas voltassem a entrar no prédio para retornar 
às aulas ou aos estúdios de arte. (Eu mesmo fui escoltada pelos agentes 
de segurança do campus para o camarim do auditório, onde durante uma 
hora presenciei os principais funcionários da universidade enfrentando 
heroicamente essa ameaça emergencial à segurança pública.)
Esse episódio escandaloso, que privou outros estudantes 
pagantes de seu direito de adquirir amplo conhecimento histórico, foi um
 ataque a toda a tradição ocidental universitária. Quando o alarme de 
incêndio disparou, os manifestantes nas filas superiores levantaram-se e
 gritaram como maníacos, apontando para o palco e amaldiçoando-me. Seu 
comportamento era excessivo e anormal por qualquer padrão psicológico. 
Enquanto o auditório degenerava em caos, o que me veio à mente foi uma 
cena brutal no filme Julia (estrelado por Jane
 Fonda e Vanessa Redgrave), de 1977, onde uma horda de jovens nazistas 
rindo ataca uma escola de medicina em Viena. Seja o que for aquilo que 
os manifestantes pensaram que estavam alcançando, o objetivo foi minado 
por seu comportamento e ações incivilizadas. Mostrando indiferença e 
desrespeito à exibição pública de artefatos clássicos (como o requintado
 Hermes de Praxiteles ou a majestosa estátua verde-diorita do entronado 
faraó Quéfren, de Gize), eles se alinharam com as forças da barbárie. E 
seu recurso primitivo ao reinado da turba foi um fiasco político na 
medida em que (através da cobertura da mídia nacional) já enfraqueceu a 
esquerda e inevitavelmente fortalecerá a oposição conservadora, que se 
manifestará nas próximas eleições presidenciais nos EUA.
Apenas três dias antes da minha palestra, o ex-presidente 
Barack Obama fez um discurso em Berlim, onde expressou “preocupação” 
sobre “um certo tipo de rigidez” entre os progressistas nos EUA: 
“Começamos a criar o que pode ser chamado de esquadrão circular de tiro,
 onde se começa a atirar em seus aliados, porque um deles está se 
afastando da pureza sobre os problemas”. Foi exatamente o que aconteceu 
no incidente em minha universidade: por seu extremismo auto-indulgente e
 insensível desrespeito pelos direitos dos outros, incluindo seus 
próprios pares, os manifestantes causaram danos profundos a si mesmos e à
 sua própria causa progressista.
Você se declarou transgênero. Por que você foi acusada agora de transfobia?
Camille Paglia – Em primeiro lugar, a transfobia, 
como a homofobia, é uma condição psicológica. Este termo clínico foi 
erroneamente apropriado e distorcido por ideólogos políticos, que o 
injetaram com um moralismo de cruzada. A fobia é um medo ou obsessão 
compulsiva, que tudo consome, às vezes produzida por uma atração 
inconsciente para aquilo que é temido. Simplesmente expressar uma 
crítica racional ao ativismo transgênero ou gay não torna ninguém 
transfóbico ou homofóbico.
Sim, ao longos dos últimos anos, eu tenho sido publicamente
 crítica a vários princípios do atual ativismo transgênero, e eu 
encorajo fortemente outros dissidentes gays e transexuais a se 
manifestarem. O silêncio sobre essas questões urgentes não ajuda ninguém
 além da extrema direita, para a qual grande parte dos eleitores é 
levada quando a esquerda se torna tão consumida por sua própria 
ideologia que reivindica poderes repressivos e ditatoriais sobre a vida 
pública e privada.
Em primeiro lugar, oponho-me categoricamente ao uso de 
bloqueadores da puberdade em crianças, o que considero uma violação dos 
direitos humanos. As crianças não estão equipadas para fazer uma escolha
 informada sobre questões médicas e devem confiar na sabedoria e 
prudência dos adultos. Os efeitos no longo prazo dos bloqueadores da 
puberdade são desconhecidos. Por que qualquer sociedade ética realizaria
 experimentos médicos com crianças? Eu prevejo que o futuro olhará para 
este momento que vivemos com incredulidade.
Eu me identifico fortemente com essa questão porque eu 
mesma tenho vivido com uma massiva disforia de gênero desde a infância –
 tanto quanto me lembro. É de fato a fonte primária da minha perspectiva
 e é a principal motivação do meu trabalho. Eu sempre contemplei a vida 
humana do lado de fora, como um visitante de uma galáxia alienígena. Ao 
longo das décadas, descrevi repetidamente meus extravagantes trajes 
masculinos de Halloween, algo inédito para uma menina pequena nos EUA 
conservadores e conformistas da década de 1950: Robin Hood (de uma 
revista em quadrinhos); o toureiro de Carmen (de um livro de ópera); um 
soldado romano (modelado a partir dos atormentadores de Jesus na Via 
Crucies); Napoleão Bonaparte (de um anúncio de brandy na revista Time);
 e Hamlet (de uma revista em quadrinhos ilustrada). Uma foto minha aos 
oito anos em traje completo como Napoleão aparece no meu livro mais 
recente, Provocations.
Identificar-me como lésbica na adolescência parecia 
oferecer uma solução para meu desajustamento social, mas nunca fui uma 
lésbica particularmente boa ou de sucesso. Entre outras coisas, as 
lésbicas raramente gostaram de mim ou me aprovaram – acho que 
provavelmente é porque eu lhes pareço muito um garoto adolescente rude e
 barulhento! Muitas vezes pensei que as coisas seriam muito mais simples
 se eu fosse simplesmente um homem gay, dada a frequência com que 
encontro interesses profundamente compartilhados em arte, beleza e 
filmes clássicos de Hollywood com homens gays espirituosos e cultos de 
todo o mundo.
Digo tudo isso para enfatizar o quão profundamente e 
pessoalmente tomo a questão dos bloqueadores da puberdade, porque não há
 dúvida alguma de que eu era obviamente uma excelente candidata para 
essa intervenção médica desde os meus primeiros anos. Eu tinha zero 
identificação com qualquer coisa convencionalmente feminina – começando 
com bonecas, que eram constantemente dadas a mim, mas que eu detestava. 
Eu queria espadas! (Eu comprei minha primeira espada real em uma loja de
 sucata rural quando eu tinha 12 anos.) Se eu tivesse ouvido o menor 
rumor de que existiam operações de mudança de sexo, eu teria ficado 
obcecada com a ideia de que seria realmente um menino e que a cirurgia 
poderia recuperar e restaurar meu verdadeiro eu. De fato, eu acho que 
teria permanecido vulnerável a essa ideia fixa até meus 20 e poucos 
anos, quando eu já estava dando aulas no meu primeiro emprego no 
Bennington College.
O que baniu o fascínio dessa transformação física foi a 
minha realização e externalização do meu eu verdadeiro em outra forma: o
 gigantesco manuscrito de Sexual Personae (originalmente com 
mais de 1.700 páginas), no qual projetei todas as minhas reflexões e 
insatisfações com o gênero. Nesse livro, sustento que nosso verdadeiro 
opressor não é a sociedade, mas a natureza, que em sua ecologia fascista
 nos impôs o gênero biológico no nascimento. A mudança de sexo é 
literalmente impossível: cada célula de nosso corpo, exceto o sangue, 
permanece codificada com nosso gênero biológico de nascimento para a 
vida. No entanto, eu me alio à grande tradição dissidente de Marquês de 
Sade, Baudelaire e Oscar Wilde, que exigem e celebram o desafio à 
natureza – como o Capitão Ahab de Melville agitando seu punho no céu 
tempestuoso. De encontro à natureza: esse é o argumento do meu livro, e 
continua sendo minha definição de arte.
Por isso, estou muito preocupada com a pressa de tantos 
jovens questionadores de gênero em relação aos hormônios e à cirurgia. 
Por que é necessário solidificar e literalizar a identidade mercurial e 
em constante evolução no frágil envelope da carne –  que todas as 
principais religiões do mundo descreveram corretamente como uma ilusão 
destinada a decair e a desaparecer. Ninguém está completamente 
satisfeito com seu corpo, o que inevitavelmente nos trairá de qualquer 
maneira, à medida que deslizamos em direção à morte. Por que essa 
ansiedade entre os jovens pela servidão à indústria farmacêutica voraz? 
Por que fazer mudanças irreversíveis no corpo quando não há nada no 
corpo que realmente expresse nossa identidade mais profunda e 
verdadeira?
Os jovens da minha geração rebelde dos anos 1960 libertaram
 a sexualidade da censura e do controle institucional, mas, mais 
importante, procuraram uma expansão e um refinamento da consciência. Em Provocations,
 minha mensagem para os jovens que questionam o gênero é: “Mantenha-se 
fluido! Fique livre!” Liberdade é o meu valor final. O filósofo 
pré-socrático Heráclito disse: “Todas as coisas fluem”. Uma verdadeira 
revolução no gênero começa na mente.
A imaginação é muito maior que o corpo. Um dos meus momentos favoritos no cinema ocorre em Blow-Up
 de Michelangelo Antonioni (1966), onde um fotógrafo desiludido (David 
Hemmings) encontra uma modelo glamorosa (Veruschka) em uma festa regada a
 drogas em Londres. “Eu pensei que você estava indo para Paris”, diz 
ele. Ela responde: “Estou em Paris”.
Como você se sente ao se dirigir aos alunos como eles preferem?
Camille Paglia – Dentre as mentiras 
grotescas que circularam sobre mim nas redes sociais, espalhadas por 
ativistas transgêneros sem escrúpulos no mês anterior à minha 
conferência pública, está que me recusei a usar os pronomes preferidos 
de um aluno na sala de aula e insultei essa pessoa diante de outros 
alunos declarando que o único pronome que eu usaria seria “isso” – como 
se o aluno fosse sub-humano.
Essa fabricação alucinatória expõe a amoralidade 
desavergonhada de muitos ativistas políticos de hoje, que são tão 
viciados em sua auto-imagem messiânica que usam qualquer ferramenta, 
incluindo o assassinato de personagens, para destruir seus oponentes. 
Esses ideólogos fanáticos são os inimigos da democracia.
A questão dos pronomes transgêneros nunca ocorreu em 
nenhuma das minhas aulas e certamente não no meu curso regular ” Imagens
 de Gênero na Mídia”, que é conduzido como uma grande série de palestras
 , consistindo de material puramente histórico e cultural. Minha posição
 de longa data sobre essa questão é que usar os pronomes preferidos de 
um indivíduo é uma questão básica de cortesia humana. Não o fazer seria 
desnecessariamente grosseiro e certamente inaceitável em uma situação de
 sala de aula com outros estudantes presentes.
No entanto, eu me oponho fortemente a qualquer intrusão do 
governo no controle da língua, a menos que essa linguagem envolva ameaça
 física ou perigo público. Minha posição é exatamente igual à do 
principal intelectual canadense, Jordan Peterson, que enfatiza a 
liberdade do indivíduo durante todo o seu trabalho. Peterson também 
declarou publicamente que evidentemente usaria os pronomes preferidos 
como uma simples cortesia, mas ele e eu concordamos que o governo não 
tem nenhum direito de monitorar a linguagem ou de obrigar a 
conformidade. Entregar nossa autonomia à vigilância punitiva de uma 
burocracia inchada convida e, afinal, produz o totalitarismo.
Meus princípios de gênero pertencem à minha filosofia 
libertária mais geral: eu defendo que todo indivíduo possui direitos 
totais sobre sua identidade, assim como sobre seu corpo, que podem ser 
alterados ou modificados à vontade. Eu apoio fortemente a criação de uma
 categoria “X” nos passaportes e carteiras de identidade: na minha 
opinião, o governo não tem autoridade, nem precisa sequer perguntar, 
sobre gênero, que deve permanecer completamente dentro do domínio da 
escolha pessoal.
O direito fundamental do indivíduo ao seu corpo também se 
estende ao aborto. Embora eu aceite que o feto em desenvolvimento é de 
fato uma pessoa (como sustentado por religiosos tradicionalistas), nego 
que o Estado tenha qualquer direito de intervir nas escolhas de uma 
mulher sobre as operações internas de seu próprio corpo, que foram 
formadas pela natureza e apenas por ela. Assim, na minha opinião, tanto o
 feminismo acadêmico quanto o transgenerismo atual erraram ao apagar a 
biologia de seu sistema teórico. A natureza é maior que a sociedade e é a
 fonte última do nosso poder como seres vivos. Uma mulher que termina 
sua própria gravidez está atuando como representante da própria 
natureza, impiedosa, cujo plano mestre, ao longo de muitos milênios, 
cobriu a terra com seus sacrifícios de sangue.
Também intrínseco à minha filosofia libertária é minha 
exigência de que o Estado deve tratar todos os indivíduos exatamente da 
mesma maneira. Essa é a verdadeira igualdade perante a lei. Não deve 
haver proteções especiais para nenhum grupo – nenhuma protração 
condescendente do status histórico de “vítima”. Por isso, oponho-me às 
categorias generalizadas de “discurso de ódio” e “crimes de ódio”, que 
considero totalmente reacionárias. Nunca devemos permitir que o Estado 
investigue o pensamento ou motivação de qualquer cidadão (exceto na fase
 de condenação de um julgamento, após a condenação por um crime). Tanto o
 pensamento quanto a linguagem devem ser protegidos de forma vigilante 
contra a invasão do Estado.
Eu tenho expressado minhas objeções à legislação de 
“discursos de ódio” e “crimes de ódio” há décadas, e minha sombria 
profecia sobre a desordem que eles desencadearam foi abundantemente 
confirmada. A sociedade ocidental tem sido constantemente consumida pelo
 politicamente correto, que se espalhou através de burocracias inchadas e
 parasitas em todas as áreas da vida e agora ameaça a grande tradição 
universitária em si, cujas raízes estavam na erudição medieval, tanto 
cristã quanto muçulmana.
Você também endereçou críticas ao movimento #MeToo.
 Em uma entrevista, você comentou como esse movimento foi empanado pela 
defesa organizada por Judith Butler para sua amiga Avital Ronell, uma 
professora acusada por um estudante de sexo masculino de assédio sexual.
 (A Universidade de Nova York posteriormente suspendeu Ronell por um ano
 sem pagamento.) Até que ponto suas críticas ao #MeToo ressoaram entre 
os manifestantes da UArts?
Camille Paglia – A intervenção 
manipulativa de Judith Butler no caso Avital Ronell surpreendeu e 
desanimou muitos de seus admiradores, que não haviam percebido até que 
ponto Butler é um produto e símbolo da elite acadêmica internacional. 
Butler nunca desafiou o sistema acadêmico, mas se adaptou suavemente a 
ele, desde o momento em que se transferiu da faculdade de Bennington 
(onde eu lecionava durante minha fase feminista mais inflamatória e 
conflituosa), na década de 1970, para a Universidade de Yale, onde o 
pós-estruturalismo era a nova oportunidade quente para jovens 
carreiristas ambiciosos. Butler nunca fez meus cursos em Bennington (uma
 faculdade muito pequena na zona rural de Vermont), mas eu a conhecia, 
bem como seu círculo social, e, portanto, estou bem ciente de sua 
trajetória.
Em relação aos manifestantes do UArts, sim, alguns deles (a
 julgar por cartazes no corredor que mais tarde vi nas imagens das 
notícias) pareciam ter sido focados em questões de agressão sexual. Mas 
era óbvio que os manifestantes nunca leram ou sequer viram meus livros e
 que eles foram estimulados por trechos dispersos de entrevistas 
anteriores circuladas nas mídias sociais. Eles sem dúvida desconheciam 
totalmente que eu havia sido a primeira a introduzir diretrizes de 
assédio sexual na Universidade das Artes em 1986 – o que mostra quão 
pouco eles haviam pesquisado sobre isso.
Eu realmente disse muito pouco publicamente sobre o #MeToo, exceto por um artigo no início do ano passado no The Hollywood Reporter,
 onde registrei: “A grande questão é se a presente onda de revelações, 
muitas vezes consistindo em alegações infundadas de décadas atrás, 
ajudará as ambições das mulheres no longo prazo ou se já está criando 
mais problemas ao reviver os estereótipos antigos das mulheres como 
histéricas, voláteis e vingativas”.
Uma resposta preliminar já veio de Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, que disse à CBS News,
 em maio, que, no mundo dos negócios, os gerentes masculinos estão agora
 limitando e diminuindo suas interações profissionais com mulheres, que 
estão perdendo oportunidades cruciais para mentoring (aperfeiçoamento e 
treinamento) e mesmo para reuniões individuais com seus chefes 
masculinos. Sandberg disse que houve um aumento enorme em apenas um ano 
(de 32% para 60%) no número de gerentes do sexo masculino que admitem 
que agora estão “com medo” de se encontrarem em particular com mulheres.
 Isso não é uma boa notícia para as mulheres, mas era totalmente 
previsível. Comportar-se como Fúrias uivantes ou implacáveis cães de 
caça não ajuda no avanço das mulheres em direção ao poder profissional e
 político.
Desde o primeiro artigo de opinião que escrevi sobre a controvérsia do date-rape (encontro-estupro) no campus no New York Newsday
 em 1991, opus-me fortemente ao envolvimento das administrações 
universitárias em qualquer aspecto da vida sexual dos estudantes. Se 
ocorrer um assalto ou estupro, ele deve ser prontamente denunciado à 
polícia. Os comitês universitários não são profissionalmente treinados 
ou competentes para servir como investigadores de crimes ou tribunais 
judiciais. Além disso, a menos que exista evidência concreta e objetiva,
 apresentar uma queixa sobre um incidente sexual meses ou anos após o 
evento é incompatível com a democracia moderna ou mesmo com a Justiça.
A intrusão agora universal dos escritórios administrativos 
na vida social privada dos estudantes é um retorno aterrador às regras 
estritas in loco parentis (“no lugar dos pais”) contra as quais minha 
geração de mulheres universitárias se rebelou durante a década de 1960. 
Para nossa segurança e proteção, éramos escandalosamente trancadas em 
nossos dormitórios às onze da noite, enquanto os estudantes homens 
podiam ficar livres a noite toda. Enfurecidas por esse duplo padrão, 
conquistamos a liberdade pessoal e sexual para futuras alunas – mas, 
evidentemente, muitas jovens hoje não a querem. Como órfãos nos romances
 de Charles Dickens, elas anseiam por proteções paternalistas e 
apaziguamento materno. Como donzelas vitorianas refinadas, elas se 
sentem incapazes de se expressar ou se defender no trabalho ou no lazer 
sem o apoio autoritário de superintendentes punitivos.
Meu código de feminismo amazonas é baseado no empoderamento
 pessoal: toda mulher é responsável por sua própria vida. As mulheres da
 classe trabalhadora têm dolorosamente poucas opções e são vulneráveis 
ao abuso, mas não há desculpa para as mulheres profissionais de classe 
média alta bem-educadas reivindicarem impotência no trabalho. Elas devem
 falar firme e imediatamente para defender sua própria dignidade e 
auto-respeito, que são princípios espirituais muito mais importantes do 
que qualquer vantagem na carreira material. Ninguém está aceitando ou 
inventando desculpas por comportamento criminoso. Mas a existência 
humana é repleta de perigos – também para os homens. A sexualidade é uma
 força instável e primitiva enraizada no instinto animal. Existem 
psicóticos vagando pelo mundo que todos devem temer. Nenhum conjunto de 
regras adotadas por um campus ou local de trabalho eliminará os riscos 
que todos nós incorremos apenas por estarmos vivos. A utopia segura, 
higienizada e rigidamente regulada, exigida por muitas feministas, é uma
 fantasia burguesa que impede as jovens de ver a vida como ela é. Um 
feminismo baseado na vitimização e no martírio é um desastre para as 
mulheres modernas.
Qual o papel das mídias sociais na mobilização 
desses estudantes para o evento? O Facebook tem sido usado para difundir
 mensagens difamatórias e alegações de grupos esquerdistas e de 
extrema-direita nos EUA e no Brasil. Ao mesmo tempo, os administradores 
de mídias sociais estão aplicando estratégias de censura. Eu mesmo já 
tive um post bloqueado porque continha um link para uma reportagem no 
jornal O Globo sobre uma exposição das obras do fotógrafo Otto Stupakoff
 no Museu de Arte Moderna de Nova York. Eu também vi posts bloqueados 
por causa de um link a um ensaio seu no The Hollywood Reporter, que 
continha ilustrações sensuais conhecidíssimas de Rihanna e Kim 
Kardashian.
Camille Paglia – As mídias sociais foram a
 origem e o impulso para este incidente na minha universidade. Dois 
meses antes da minha palestra, um ex-aluno me contatou para dizer que 
vários ativistas transgêneros na Filadélfia estavam visando alunos da 
UArts nas mídias sociais e pressionando-os a apresentar uma queixa 
contra mim no escritório do Título IX [1] da universidade. Ele previu 
que haveria “problemas” pela frente. Os escritórios do Título IX, cuja 
autoridade no campus vêm do governo federal, têm sido objeto de 
controvérsias há algum tempo nos EUA. Por exemplo, há dois anos, a 
escritora e professora Laura Kipnis publicou um livro amplamente 
resenhado sobre os procedimentos totalitários do Título IX na 
Northwestern University, Unwanted Advances:  Sexual Paranoia Comes to Campus
 (“Os indesejados avanços: a paranoia sexual chega ao campus”). Em 
muitos campi, os escritórios do Título IX usurparam a autoridade da 
faculdade e tornaram-se monitores e executores intrusivos de um rígido 
politicamente correto.
Eu posso ter sido o primeiro professor a alertar 
publicamente sobre o crescente abuso do Título IX, uma emenda de 1972 à 
Lei dos Direitos Civis de 1964 que tinha como objetivo eliminar a 
discriminação sexual nos campi universitários. O artigo polêmico que 
escrevi em 1996 para o USA Today (no qual protestei contra a 
eliminação do programa de luta greco-romana masculina na Universidade de
 Princeton) está reimpresso em meu livro de 2017, Free Women, Free Men (“Mulheres Livres, Homens Livres”). Lá denunciei a “corrupta master class”
 de administradores de universidades “cujas fileiras grotescamente 
aumentaram nos campi dos EUA nos últimos 30 anos e que desviaram a 
missão educacional para uma ideologia sufocante de bem-estar social”.
Quando recebi esse aviso do meu ex-aluno no início deste 
ano, não me preocupei, porque a Universidade das Artes sempre apoiou 
muito meu trabalho. Após o lançamento, em 1990, do Sexual Personae,
 houve uma enorme e prolongada controvérsia por vários anos, quando 
escrevi artigos de opinião de jornais que causaram um alvoroço entre as 
feministas da velha guarda como Gloria Steinem, que me comparou a 
Hitler. Apesar do fato de que eu claramente representava uma nova facção
 no feminismo (a ala pró-sexo para a qual Madonna era o ícone), eu era 
rotineiramente condenada e difamada na mídia nacional nos EUA, no Reino 
Unido e na Europa. Em 1991, houve uma campanha organizada por grupos 
feministas (que pareciam estar sediados no Meio-Oeste dos EUA) para 
pressionar o presidente e fundador da UArts, Peter Solmssen, a me 
demitir. No entanto, o presidente Solmssen, tal o nosso admirável 
presidente atual, David Yager, respondeu corajosamente aos queixosos que
 meu trabalho público como crítica social estava totalmente protegido 
pela liberdade acadêmica.
O que deve ser enfatizado aqui é que minha carreira docente
 na Universidade das Artes não teve nenhuma conexão com minha atividade 
profissional como escritora. Meu primeiro livro não foi publicado até 
seis anos depois que comecei a lecionar aqui. Até a recente chegada das 
mídias sociais, nunca houve a menor intrusão ou interrupção de minha 
celebridade ou notoriedade internacional. Meus alunos raramente tiveram 
alguma ideia de que eu escrevo livros. Eu não ensino “minhas” ideias na 
sala de aula, nem jamais atribuo meus livros como textos obrigatórios – 
como muitos acadêmicos narcisistas “estrelados” nos EUA. Ocasionalmente,
 um aluno pode mencionar para mim depois de nossa primeira aula que um 
de seus pais é fã meu, mas nada mais. Sempre mantive um perfil discreto 
no campus e (apesar dos constantes pedidos) nunca permiti que pessoas de
 fora visitassem minhas aulas, na condição de ouvintes. Como tenho 
repetidamente dito, sou simplesmente uma professora universitária: essa é
 a minha identidade central, inspirada na das freiras de ensino do 
catolicismo italiano e ibérico!
Daí a atroz amoralidade das mídias sociais sendo usadas 
como arma por ideólogos implacáveis para espalhar mentiras grotescas 
sobre minhas aulas e para agitar contra mim estudantes que não me 
conhecem e que não têm ideia sobre a expansividade acadêmica e 
interdisciplinar de meus prolíficos livros e ensaios publicados. 
Citações de minhas entrevistas na mídia tiradas do contexto foram 
divulgadas, mas não havia nenhuma referência à enorme quantidade de 
material em todo o meu trabalho que glorifica vividamente e celebra a 
sexualidade, fluidez de gênero, arte, beleza e individualismo radical.
A jovem atriz Selena Gomez disse recentemente em Cannes: 
“As mídias sociais têm sido terríveis para minha geração”. Esse 
incidente em minha universidade é um exemplo clássico da destrutividade 
das mídias sociais para uma geração que perdeu tragicamente o acesso aos
 livros. Por causa da concorrência da Amazon, as livrarias 
praticamente desapareceram nos EUA, mesmo em uma grande cidade como a 
Filadélfia. É incrível – eu raramente vejo uma livraria em qualquer 
lugar, enquanto elas já foram uma característica padrão dos shoppings. 
As livrarias eram centros culturais da minha geração da década de 1960: 
como estudante com pouco dinheiro, aprendi muito com as livrarias 
itinerantes e folheando livros. Mas a leitura de livros está em forte 
declínio para a geração mais jovem, que agora obtém todas as suas 
informações online. Por mais de quinze anos, tenho testemunhado a 
crescente relutância dos estudantes em ir à biblioteca pesquisar: eles 
querem tudo instantaneamente disponível na ponta dos dedos. A densa 
fisicalidade dos livros, que eu adorava como estudante, agora parece 
pesada e entediante para os jovens.
O problema com este movimento frenético e imparável é que 
somente através da leitura de livros se aprende a seguir ou construir um
 argumento sequencial com raciocínio dedutivo, em que a evidência é 
ponderada e uma conclusão, alcançada. Uma geração criada no Facebook, 
Twitter e Instagram nunca foi exposta à argumentação racional. No mundo 
online, as questões são polarizadas de maneira simplista: “gostar” ou 
“não gostar”; polegares para cima ou polegares para baixo. É um universo
 maniqueísta de anjos versus demônios, onde não são possíveis sutilezas 
ou qualificações: você está conosco ou contra nós.
Essa geração, casada com as mídias sociais, é cercada 
durante todo o dia, com fragmentos desconexos e apelos estridentes à 
emoção. Eles são varridos para ultrajes instantâneos, ondas de pânico, a
 luxúria do sangue dos julgamentos das Bruxas de Salem – que Arthur Miller invocou como um paralelo ao macarthismo vicioso dos EUA em sua peça clássica de 1953, The Crucible.
 Muitos jovens parecem incertos, nervosos e solitários, desesperados por
 afiliação e validação em grupo, e é por isso que eles se voltam tão 
rapidamente para a ação da multidão.
Os jovens de hoje tiveram pouca ou nenhuma exposição a 
escritores dissidentes que não podem ser facilmente classificados em 
termos ideológicos. Na minha juventude, havia muitos modelos de 
pensamento ousado e contrário: Simone de Beauvoir, Mary McCarthy, Allen 
Ginsberg, Marshall McLuhan, Norman O. Brown, Susan Sontag, Norman 
Mailer, Gore Vidal. Uma citação de Kafka foi amplamente divulgada quando
 eu estava na faculdade: “Um livro deveria ser o machado para o mar 
congelado dentro de nós”. Nós procuramos corretamente livros que nos 
fizeram sentir inseguros. A iluminação, não o conforto emocional, era o 
nosso objetivo.
A histeria epidêmica das mídias sociais demonstra o 
fracasso catastrófico do humanismo secular, sobre o qual venho 
advertindo há anos. Embora eu seja ateia, tenho enorme respeito pelas 
grandes religiões mundiais como vastos sistemas simbólicos que fornecem 
uma profunda perspectiva metafísica da vida. Os jovens de hoje que foram
 criados sem religião, em lares liberais progressistas, têm apenas a 
política para dar forma e significado ao mundo. Essa é uma troca muito 
triste, porque a política, importante e vital como é, ocupa um nível 
inferior na existência humana. O materialismo marxista, agora o credo 
universal da academia ocidental, não vê nada no universo além de si 
mesmo.
Eu me sinto muito feliz por ter frequentado a faculdade 
quando a contracultura dos anos 1960 foi inundada por temas espirituais 
do hinduísmo e do budismo, que podiam ser ouvidos até mesmo na música 
popular. Foi também um grande período para filmes internacionais de 
arte, que nos introduziram ao multiculturalismo mundial e nos 
presentearam com uma visão super-sofisticada da sexualidade. Minha mente
 estava saturada e transformada por esses grandes filmes, desde Orfeu Negro, de Marcel Camus; Persona, de Ingmar Bergman; Belle de Jour, de Luis Buñuel; até Rashomon, de Akira Kurosawa – que nos ensinaram sobre multiplicidade e subjetividade de perspectiva sobre eventos humanos.
Compare essas riquezas culturais com a banalidade monótona 
da atual cultura popular, fortemente comercializada e mecanicamente 
digitalizada. Não é nenhum mistério por que os jovens estão 
desesperadamente procurando por significado. Infelizmente, eles estão 
procurando nos lugares errados. As mídias sociais são uma zona de guerra
 de ilusões ansiosas, como as sombras na parede da caverna de Platão. 
Nenhuma estabilidade ou segurança jamais será encontrada lá. E injetar a
 política com o dualismo cósmico do bem contra o mal nunca trará 
verdade, sabedoria ou paz de espírito.
Algumas de suas declarações recentes foram recebidas, 
especialmente por críticos da esquerda e por setores de estudos de 
gênero (como Judith Butler, que a atacou em uma entrevista em O Globo), 
como apoio a Donald Trump e a Jair Bolsonaro. Como você responde a isso?
Camille Paglia – Aqueles que vivem em uma 
bolha ideológica fechada não podem entender nada fora dela. Tenho 
repetidamente chamado a atenção do público para a escassez de evidências
 de que Judith Butler, cuja formação acadêmica foi em filosofia e cuja 
metodologia é pós-estruturalista, empreendeu a extensa pesquisa 
histórica e científica necessária para uma professora que se apresenta 
como especialista em gênero e sexualidade.
Minha afiliação política é bem conhecida. Eu sou uma 
democrata registrada que votou no esquerdista Bernie Sanders na primária
 presidencial de 2016 e, depois, para Jill Stein, do Partido Verde, nas 
eleições gerais. Todos os anos, contribuo financeiramente para o Partido
 Verde. Eu tenho todo o direito de criticar a esquerda quando seu 
comportamento e suas táticas tolamente insultam e alienam os eleitores e
 os empurram para a direita. Isso é exatamente o que aconteceu antes da 
eleição surpresa de Trump e de Bolsonaro.
É um fato da história mundial que, quando ansiedades 
sociais e problemas urgentes não são enfrentados por uma elite 
governante egocêntrica, há um movimento para a direita por cidadãos 
comuns, que sentem que apenas um “herói” rude, vigoroso e 
ultra-masculino esmagará o impasse e finalmente fará as coisas. Essas 
figuras barulhentas, esnobes e egoístas frequentemente oferecem uma 
restauração da identidade nacional e do senso de destino – contra a 
insularidade arrogante da elite afluente, que é “cosmopolita” em suas 
suposições, associações e estilo de vida peripatético e que despreza o 
patriotismo como simplista e ingênuo.
Foi assim que Hitler e Mussolini chegaram ao poder. 
Mussolini “fez os trens rodarem a tempo”. Hitler promoveu o orgulho da 
identidade alemã medieval após a humilhação da derrota na Primeira 
Guerra Mundial e fez campanha contra a “divina decadência” (para citar 
Sally Bowles, de Christopher Isherwood, em Cabaret) da Berlim 
da República de Weimar – com sua vasta paisagem erótica de prostituição 
organizada, aberta à homossexualidade, e pródigos bailes drag.
Deve ser enfatizado que eu me identifico alegremente como 
uma criatura da decadência de Weimar que molda o gênero – o que moldou 
profundamente Marlene Dietrich, nascida em Berlim, cujas sofisticadas 
ambiguidades bissexuais e estilo blindado “hard glamour” podem ser 
traçados através da história de Hollywood até Madonna e as drag queens 
performáticas em todo o mundo hoje.
Decadência tem sido um tema central em meu trabalho – do subtítulo de Sexual Personae
 (“Arte e Decadência de Nefertiti para Emily Dickinson”) ao meu curso de
 assinatura, “Estética e Decadência”, que ministrei várias vezes durante
 os anos 1970 e os anos 1980 em Bennington, Wesleyan, Yale e na 
Universidade das Artes. No entanto, não me atrevo mais a ensinar 
“Estética e Decadência” porque o material sexual (como os romances do 
Marquês de Sade, um dos maiores e mais audazes escritores dos últimos 
250 anos) é muito intenso e problemático para os estudantes de hoje.
Na faculdade, fui fortemente influenciada pela Factory
 de Andy Warhol, uma célula decadente da Berlin de Weimar transplantada 
para Nova York e povoada por suas extravagantes estrelas de travestis e 
transgêneros. Desde que vi os primeiros curtas-metragens em 
preto-e-branco de Warhol em meados da década de 1960 (acima de tudo, Harlot, estrelado por Mario Montez em drag), eu me chamei de “Warholite”. É por isso que a imagem de capa do meu livro mais recente, Provocations,
 é minha foto alterada para imitar o estilo policromo vívido de uma 
pintura de Warhol. (A Fundação Warhol concedeu muito graciosamente 
permissão.)
No entanto, como scholar, vejo a história de forma clara e 
não sentimental, sem distorção de preferências ou lealdades pessoais. 
Foi durante minha laboriosa pesquisa para minha tese de doutorado em 
Yale naquele grande santuário gótico, a Sterling Memorial Library, que 
descobri um padrão sinistro na história: as civilizações são 
frequentemente cíclicas, com padrões recorrentes distintos registrados 
na arte. As fases “tardias” da cultura são frequentemente caracterizadas
 por estilos “irônicos” altamente elaborados, homossexualidade aberta e 
um fascínio pela androginia, subvertendo as normas sociais e religiosas 
tradicionais.
Sinais de contra-reação ou retrocesso podem ser 
perceptíveis, mas a elite sofisticada, complacente em sua refinada 
“tolerância” e seu controle das principais instituições e comunicações, 
os ignora. O tempo passa. Então, uma onda gigante parece vir do nada – 
de um estrato social marginalizado ou de estranhos saqueadores – e toda 
uma sociedade supercomplexa é subjugada e se desintegra.
Isso é exatamente o que aconteceu durante o Império Romano,
 cuja religião se tornou vazia e estereotipada. Um movimento espiritual 
puritano começou entre os pobres e despossuídos no Mediterrâneo Oriental
 e se espalhou lentamente até varrer o paganismo romano. Chamava-se 
Cristianismo, e ainda está prosperando dois milênios depois – mesmo 
enquanto continuamos desenterrando restos quebrados da grandeza que era 
Roma.
Daí minha convicção de que aqueles que veem a história, 
seguindo Rousseau e Marx, em termos utópicos, como uma marcha linear de 
progresso ascendente, têm feito um estudo insuficiente do registro 
sombrio da humanidade. Cada civilização acabou caindo, até mesmo o 
antigo Egito, que durou três milênios. Os esquerdistas parecem supor que
 a “tolerância” é incremental e cumulativa e que a supressão agressiva 
de crenças contrárias é útil e benéfica – quando, na verdade, a censura 
da liberdade de expressão apenas força as principais ideias 
subterrâneas, que se espalham sem serem detectadas até que seja tarde 
demais.
Repetidas vezes desde o nascimento do esquerdismo na 
França, no final do século 18, os líderes esquerdistas mergulharam em um
 elitismo arrogante, afirmando que sabem o que é melhor para “o povo”, 
que eles definem como infantilmente incapazes de pensar por si mesmos. O
 que “o povo” realmente quer e acredita torna-se irrelevante para os 
estrategistas de esquerda, que reduzem a liberdade de expressão para sua
 própria agenda, criam burocracias intrusivas e ineficientes e começam a
 se ligar mutuamente, assassinando dissidentes em um novo reino do 
terror.
Foi assim que os franceses conseguiram Napoleão. Os 
revolucionários derrubaram e executaram um rei, mas depois, perseguindo e
 assassinando uns aos outros, eles reduziram a França à anarquia. Então a
 população que derrubou um rei conseguiu um imperador – Napoleão, 
coroado em Notre Dame pelo Papa! E a França já estava embarcando em uma 
grandiosa missão de ambição imperial que traria morte e destruição a 
milhões na Europa e na Rússia.
Ao longo da sua carreira, você enfatizou fortemente a importância 
das Humanidades – especialmente a história da arte, a religião comparada
 e a história militar – para a construção de um novo ambiente mental 
para os cidadãos no mundo democrático. No entanto, você critica 
repetidamente os estudos de gênero pós-estruturalistas. Por quê?
Camille Paglia – 
Sim, sou uma crente apaixonada no poder da arte de revelar as verdades 
últimas sobre a experiência humana. Uma educação sobre as artes, que 
deveria começar nos primeiros anos de escolaridade, introduziria os 
jovens à grande poesia, música e arte visual de todo o mundo. As artes 
envolvem e desenvolvem diferentes partes do cérebro, algumas das quais 
estão enraizadas em nossa vida primitiva na natureza, antes do 
nascimento da civilização. Tanto a criação quanto a apreciação da arte 
estão profundamente ligadas ao processo do sonho, um estado visionário 
para o qual todos descem à noite, embora muitas vezes as nossas viagens 
sejam apagadas ao amanhecer.
Eu venho atacando o cinismo venenoso e
 o ignorante filistinismo do pós-estruturalismo há três décadas. Minha 
declaração mais extensa foi Junk Bonds and Corporate Raiders:  Academe in the Hour of the Wolf, um extenso artigo publicado em Arion, em 1991, que foi reimpresso em minha primeira coletânea de ensaios, Sex, Art, and American Culture
 (1992). Ali demonstrei em detalhes exaustivos como os 
pós-estruturalistas acadêmicos usam o jargão opaco e labiríntico para 
esconder suas próprias enormes lacunas no conhecimento histórico e 
cultural básico. Por exemplo, eles ingenuamente atribuem a Michel 
Foucault ideias que ele tomou emprestado, sem a referência pertinente, 
de sociólogos anteriores, como Emile Durkheim, Max Weber e Erving 
Goffman. Além disso, critiquei fortemente como o esquerdismo acadêmico 
havia se tornado um grande negócio, um caminho mercenário para o avanço 
na carreira. A maioria das pessoas fora dos EUA não percebe que os 
principais esquerdistas acadêmicos neste país são operadores muito 
perspicazes que se tornaram multimilionários nas universidades de elite.
Duas décadas depois de Junk Bonds, fiz outra avaliação do estado do pós-estruturalismo quando o Chronicle of Higher Education
 pediu que eu revisasse três novos livros de jovens acadêmicos sobre 
sujeição e dominação, um novo campo chique nos estudos de gênero. O 
ensaio, Scholars in Bondage, foi reimpresso em meu livro Free Women, Free Men.
 Fiquei horrorizada com o quão desajeitada, repetitiva e superficial a 
análise pós-estruturalista se tornou. Essas três mulheres inteligentes e
 bem-intencionadas estavam lutando para encontrar suas vozes em meio ao 
feio lixo da terminologia pós-estruturalista, que lhes fora imposta 
pelos mais velhos para a sobrevivência na carreira. Enquanto isso, seu 
conhecimento factual da história da sexualidade, mesmo nos tempos 
modernos, foi lamentavelmente limitado e truncado.
Nunca deveria ter sido deixado para 
os agitadores da direita ou evangélicos cristãos dizer o óbvio: que os 
estudos de gênero, como estão atualmente constituídos, são um culto 
monolítico que prega uma ideologia fortemente politizada, da qual o 
estudo da biologia foi ilogicamente banido desde o início. Os estudos de
 gênero, embebidos nas premissas paranóicas e friamente desensualizadas 
do pós-estruturalismo, não se basearam em princípios acadêmicos e não 
mostram nenhum desejo de adquiri-los.
Os jovens, naturalmente interessados 
em sexo e gênero como temas vitais em suas vidas, estão sendo 
doutrinados de maneira não ética por esses programas, que se espalharam 
internacionalmente desde suas origens nos EUA e no Reino Unido. Para 
entender sexo e gênero, você deve estudar uma ampla gama de história, 
antropologia e biologia. Mas os estudos de gênero, que raramente 
permitem visões divergentes, tornaram-se um feudo autoritário, 
divorciado da realidade social.
O Brasil tem sua própria civilização,
 um casamento brilhante de arte e natureza. As imitações fantásticas e o
 deslumbrante artifício do Carnaval são contrapostos à sublime grandeza 
da montanha, do mar, do rio e do céu. Por qual pretensioso vazio os 
acadêmicos brasileiros se afastaram daquela beleza e majestade para 
importar os exaustos clichês do pós-estruturalismo?
[1] Título IX é uma lei federal de direitos civis aprovada como parte 
das Emendas de Educação de 1972. Esta lei protege as pessoas de 
discriminação sexual em programas ou atividades educacionais que recebem
 assistência governamental. O Título IX estabelece que: “Nenhuma pessoa 
nos Estados Unidos poderá, com base no sexo, ser excluída da 
participação, ser impedida de usufruir dos benefícios ou ser sujeita a 
discriminação sob qualquer programa de educação ou atividade que receba 
assistência financeira federal.” O Título IX aplica-se a qualquer 
instituição que receba assistência financeira federal do Departamento de
 Educação, incluindo agências educacionais estaduais e locais.
Confira também: Conversando com Camille Paglia

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