terça-feira, 19 de setembro de 2017

Tratamento médico e educação são saída para Cracolândia, diz Carl Hart

Carl Hart estuda há mais de 20 anos o efeito de drogas no cérebro
Carl Hart estuda há mais de 20 anos o efeito de drogas no cérebroGustavo Basso/13.09.2017/R7

Para neurocientista americano, foco nas drogas ofusca reais problemas 

    Considerado uma das maiores autoridades sobre os efeitos de drogas lícitas e ilícitas no cérebro, o neurocientista americano Carl Hart criticou a proposta de internação compulsória de usuários que frequentam a Cracolândia, em São Paulo. Para ele, a internação compulsória afronta direitos humanos.
    Professor da universidade de Columbia (Nova York) pesquisando o assunto há mais de 20 anos, Hart já visitou seis vezes a Cracolândia. Ele diz que na sua última visita à região, nesta quarta-feira (13), o mau cheiro estava pior do que em outras ocasiões, problema que ele atribui ao fim do programa municipal que oferecia vagas em hotéis para usuários.
    O pesquisador criticou ainda o uso do termo Cracolândia, que para ele, cria um estigma sobre a região e tira o foco sobre os reais problemas do usuários, que são sociais, e não a droga.
    Questionada sobre as críticas do neurocientista, a Prefeitura afirmou que "o secretario [municipal de Assitência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará] tem certeza que se Carl Hart for bem informado, vai aprovar e apoiar o programa atual, que é muito superior ao anterior e bem alinhado com as propostas do professor". A pasta não respondeu diretamente sobre a posição de Hart a respeito da internação compulsória, mas, em relação às condições de higiene da região, afirmou que neste ano foram inaugurados 3 unidades 'Atende', que contribuem tanto com a redução de danos como com a higiene na região (leia a resposta na íntegra).
    O professor conversou com jornalistas antes de um evento promovido pelo coletivo Movimentos, que une jovens de favelas brasileiras para discutir política de drogas a partir de quem sofre com a violência, em uma casa de cultura no centro de São Paulo. Quando o professor de Columbia se posicionou para sua palestra, foi ovacionado pelas mais de cem pessoas que se aglomeravam no pequeno espaço para ouvi-lo.
    Criado em um bairro pobre de Miami, Hart se envolveu com drogas na juventude, até obter o PhD em neurociências pela universidade de Wyoming e passar a pesquisar, há mais de 20 anos, os efeitos do uso de drogas lícitas e ilícitas no cérebro de ratos de laboratório, e mais recentemente, em seres humanos. Em uma pesquisa, ele oferecia crack e metanfetamina a usuários cotidianos de drogas, que podiam escolher entre uma dose ou U$ 20 após uma primeira dose. O resultado, exposto em seu livro Um preço muito alto mostrou que todos optavam pelo dinheiro, que só seria entregue ao final do estudo.
    Leia a entrevista:
    R7 — Você foi para a Cracolândia hoje. Quais foram suas impressões?
    Carl Hart: Eu tive muitas impressões. Primeiro, eu odeio esse termo, é um termo horrível. Lá não é a terra do crack. Quando as pessoas usam esse termo, ele é usado como desculpa para nada ser feito, porque crack não é o problema lá. Pobreza é o problema, doença mental é o problema, racismo é o problema. Quando as pessoas usam o termo Cracolândia, o que estão me dizendo é que são estúpidos, ou que não dão a mínima para as pessoas. É um termo horrível.
    Outra impressão foi… eu estive lá muitas vezes. E agora que De Braços Abertos [Programa de redução de danos criado em 2014 pela gestão Fernando Haddad que oferecia emprego em varrição de ruas e aluguel em hotéis da região a usuários, e encerrado na gestão Doria] não existe mais, o cheiro está realmente terrível, por causa da falta de habitação! As pessoas não têm mais os hotéis, então têm que ir ao banheiro na rua, que acaba ficando com o cheiro de um grande vaso sanitário. O cheiro não estava tão ruim na última vez [Hart visitou a região em 2016].
    R7 — Como um bode expiatório?
    Hart — Sim, é um bode expiatório, está certo.
    R7 — Meses atrás, falamos com o Secretário Municipal de Assistência Social de São Paulo, Filipe Sabará. Na opinião dele, em casos extremos, a internação compulsória não é apenas uma opção, mas um dever do governo. O que você acha disso?
    Hart — Vamos refletir sobre isso: como um adulto, você, eu, nós temos autonomia. Podemos decidir, desde que não machuquemos outras pessoas, o que gostaríamos de fazer. Somos responsáveis como adultos, pagamos o preço por nossas decisões. Quando alguém viola sua autonomia, chamamos isso de violação de direitos humanos. Desse modo, a pessoa com quem você falou está defendendo violar os direitos humanos de certas pessoas. Isso é horrível. Não há nenhuma maneira de olhar para isso de modo razoável, racional, que nossa sociedade deva fazer. Se as pessoas não estão prejudicando os outros, não há nenhuma razão para esta internação compulsória. Isso não está certo. Mesmo para seu próprio bem, não é certo.
    R7 — Mesmo que essa pessoa possa morrer por causa do seu comportamento?
    Hart — Sim... por exemplo, quando você pensa em doença mental, quando alguém é uma ameaça para si mesmo, talvez vir a cometer suicídio, temos procedimentos e locais para avaliar se essa pessoa precisa ou não de tratamento. No entanto, isso é uma raridade. Não é o caso quando tratamos de drogas, quando é ainda mais raro. Se eu escolher me matar, também é a minha decisão.
    Hart veio ao Brasil a convite do coletivo Movimentos, criado por moradores da favela da Maré
    Hart veio ao Brasil a convite do coletivo Movimentos, criado por moradores da favela da MaréGustavo Basso/13.09.2017/R7
    R7 — Que tipo de trabalho poderia ser feito na Cracolândia?
    Hart — Por favor, não use esse termo. É um ponto importante, porque o que você faz é simplesmente ignorar todos os problemas reais e resumi-los ao crack. O problema não é o crack, o problema é que essas pessoas são pobres, não foram educadas, e tem a discriminação racial na sociedade. Em um lugar como São Paulo, você tem tanta riqueza, e tanta pobreza. As pessoas passam a entender que algo está muito errado na nossa sociedade. Pode até mesmo fazer algumas pessoas quererem ferir outras. Essa é uma resposta razoável. Porque algo está muito errado, e a sociedade está agindo como se nada estivesse errado. Eu não defendo que pessoas ataquem outras, mas certamente consigo compreendê-lo.
    R7 — Sua pesquisa fala muito sobre dar alternativas. Que tipo de alternativas podem ser dadas para aquelas pessoas com problemas de dependência de drogas na Cracolândia?
    Hart — Uma coisa que você deve saber é que a maioria das pessoas que usam drogas não são viciadas. Apenas uma pequena percentagem é viciada. Há muitas pessoas que usam drogas e trabalham, cuidam de suas famílias. Agora, quando estamos falando de pessoas que são viciadas, como as que vimos onde atuava o De Braços Abertos, é preciso pensar em alternativas. Muitas dessas pessoas estão tão doentes que precisam de tratamento em primeiro lugar. Tratamento para a saúde mental, para a saúde física. Eles precisam estar saudáveis para poder tirar proveito das alternativas.
    Uma vez feito isso, você tem que ter certeza que eles são educados, para que compreendam como lidar com o mundo em torno deles, como serem incluidos no sistema. Depois disso, você tem que ter certeza que eles têm oportunidades: oportunidades econômicas, de emprego, como você, como eu... Hoje à noite neste lugar, deve haver um monte de usuários de drogas, e essas pessoas vão ao trabalho amanhã, porque elas têm essas alternativas. Elas têm os seus entes queridos, bons empregos, todo este tipo de coisas. Portanto, temos que fornecer o mesmo a outras pessoas que estão tendo problemas em nossa sociedade. Não é tão complicado, é bastante simples.
    R7 — Por que você acha que existem tantos mitos e senso comum sobre as políticas de drogas que estão erradas, de acordo com suas pesquisas?
    Hart — Não há mitos sobre a política de drogas, há mitos sobre drogas. Existem muitos mitos sobre as drogas porque muitas pessoas não têm experiência com drogas. Eu posso te dizer alguma besteira, você vai acreditar em mim, e o mito vai continuar, porque você não tem experiência. E uma grande quantidade de pessoas em nossa sociedade não sabe o que as drogas causam ou não causam. Se pensarmos sobre o lugar onde o De Braços Abertos costumava atuar, e olharmos para as pessoas que estão lá, são pessoas pobres, em grande parte negros. Podemos inventar histórias incríveis sobre esse lugar, porque a maioria das pessoas na cidade não vai lá, não sabe o que está acontecendo por lá, não conhece essas pessoas. Se você não conhece, fica suscetível a acreditar em besteiras.
    R7 — Você é a favor da legalização ou descriminalização das drogas?
    Hart — Eu sou a favor da regulação das drogas, assim como fazemos com álcool e tabaco. Acho que podemos fazer isso com outras drogas, como cocaína. Sou favorável a isso por uma ampla série de motivos:
    Primeiro, parariamos de prender pessoas por simplesmente usar drogas para curtir. Quando pensamos no uso de drogas por diversão, uma boa analogia seria o orgasmo. Quando as pessoas fazem sexo, estão buscando o orgasmo. Você pode imaginar o governo controlando a quantidade de orgasmos que você pode ter? Isso seria um absurdo! Bem, isso é o que eles estão fazendo com drogas, basicamente.
    Outra razão para eu ser favorável é que melhoraria a qualidade das drogas que as pessoas usam.Eu me preocupo com as impurezas ou adulterantes que muitas destas drogas contêm quando compradas no mercado ilícito. Quando você compra álcool, o governo garante que ele é álcool puro e que não existem impurezas, o que aumenta a segurança [do consumidor]. No entanto, antes de alcançarmos isso, é preciso informação, que é essencial para as pessoas. E é por isso que escrevi meu livro: para tentar ajudar as pessoas a obter esta informação.
    Seu livro, Um Preço Muito Alto, recebeu o prêmio da associação PEN America de literatura científica
    Seu livro, Um Preço Muito Alto, recebeu o prêmio da associação PEN America de literatura científicaGustavo Basso/13.09.2017/R7
    R7 — Qual é a principal relação que você vê entre a política de drogas e racismo, tanto no Brasil e nos EUA?
    Hart — Bem, aí temos que voltar à escravidão. Ambos os países tinham escravidão, certo? Como resultado, tínhamos pessoas negras excluídas da sociedade. O que a política de drogas faz é permitir ignorar o impacto da escravidão. Nós fingimos que o problema é a droga, e as políticas de drogas perpetuam a disparidade entre os grupos, porque as pessoas que são presas por drogas, no Brasil e nos EUA, são principalmente negros. Políticas de drogas funcionam como outra forma de escravidão. Os problemas nunca são sobre drogas. São sempre sobre a subjugação das pessoas.
    Temos de falar sobre o fato de não darmos educação a certas pessoas em nossa sociedade. Há um grande número de negros que não recebem educação, que não conseguem participar do mercado. Enquanto falamos de drogas, deixamos de falar sobre empregos, educação ou moradia. As políticas de drogas funcionam para ofuscar o verdadeiro problema.
    R7 — Três anos atrás, você disse que nossa política de drogas parece um apartheid. Você ainda acha isso?
    Hart — Eu disse que o que está acontecendo no Brasil é apartheid. Não apenas com a política de drogas. A política de drogas é apenas uma das ferramentas utilizadas para garantir que o apartheid continue. Há outros tipos de políticas, como discriminação racial, e outras. Simplesmente quero dizer que 50% da população é africana, mas quando você pensa sobre quem está incluído na sociedade, quem está trabalhando, quem está na classe média, você não vê esses africanos. Assim é que parece apartheid.

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