sábado, 1 de agosto de 2020

Heráclito e o Rio












João Bugalho

A busca do saber e a forma como se pretende integrar os diferentes conhecimentos, na procura de uma mais global compreensão das coisas, tem muitos pontos surpreendentemente (?) comuns entre pensadores distantes milhares de anos entre si.
Heráclito, filósofo pré-socrático originário de Éfeso, viveu - aproximadamente – entre 540 e 480 anos A.C.. É curioso notar que parte do que se encontra hoje em diversas vertentes do pensamento científico já, na essência, se espelhava no centro do pensamento de Heráclito.

O pensador grego considerou pela primeira vez que a mais típica característica da Natureza era a constante mudança, que tudo flui e nada dura infinitamente.
É dele a famosa frase “ninguém pode tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio”, porque o rio está em constante mudança, mas mais ainda, porque também o está quem nele mergulha.
Heráclito entrosou com esta uma outra ideia então original: a de que a diversidade no mundo resulta do conflito dos contrários e da permanente presença destes. Sem guerra não haveria paz, sem saúde não existiria a doença, sem a fome não teríamos prazer em comer.
Assim, a harmonia do Universo resultaria das dissemelhanças, o nascimento e a conservação dos seres dever-se-ia a um conflito de contrários.
Desse conflito, porém, resultaria a unidade, uma razão universal para as coisas, como que uma divindade. O filósofo porém recusou-se a chamar-lhe Deus, mas chamou-lhe antes: “logos”- a razão. A razão universal, uma razão espiritual imanente a tudo, dando aos seres a harmonia nas suas diferenças e regendo o mundo segundo uma ordem. É porém bem evidente que é muito difícil para nós compreender plenamente e justificar o que foram estes conceitos para aqueles pensadores tão distantes, enquadrados num meio bem diferente do nosso, se bem que, numa outra escala, dois milénios sejam um período de tempo tão curto.

Para Heráclito a verdadeira sabedoria, a qual conduzirá à ligação inteligível de todos os fenómenos, consiste em fundir o pensamento individual num pensamento universal.
É interessante reconhecer que Hegel (1770-1831), que defendeu que o desenvolvimento histórico derivava da tensão entre os opostos, procurou a existência de um saber absoluto, de uma realidade global em que natureza e espírito, pensar e ser, Deus e o Homem, constituissem um sistema grandioso reconciliando para sempre a Realidade com a Ideia, visão esta que veio a ser contestada e demolida pelos seus discípulos ou seguidores.
Entre estes, Marx (1818-1883) veio substituir a teoria pela praxis afirmando que: “Até agora a filosofia não fez mais do que interpretar o mundo; o que importa é transformá-lo” e assim Marx colocou a matéria e o trabalho onde Hegel colocara a idea e o espírito.

Em Engels (1820-1895) cuja raíz filosófica é considerada por muitos como mais profunda que a de Marx, vamos encontrar um sistema dialéctico para a natureza que contém as três leis da dialéctica materialista. A segunda lei designou-a por lei da compenetração dos contrários, segundo a qual a contradição é a origem do movimento.
É precisamente baseado em Engels que Stalin (1879-1953) - segundo Klimke-Colomer em Historia da Filosofia – esboça as seguintes teses:
“O cosmos não pode ser considerado como uma acumulação de casos e acontecimentos, independentes entre si, mas sim como uma totalidade unitária em que as coisas e os acontecimentos estão orgânicamente enlaçados, dependendo e condicionando-se uns aos outros; a natureza não deve entender-se num estado de repouso ou imobilidade mas sim num movimento incessante e numa mudança constante de renovação e evolução; a dialéctica considera o processo evolutivo como um desenvolvimento que passa de mudanças quantitativas insignificantes e ocultas a mudanças visíveis, fundamentais, qualitativos e isto como que em saltos repentinos e não graduais; este processo evolutivo é determinado pela lei da unidade e da luta dos opostos segundo a qual a luta entre o velho e o novo, o que perece e o que nasce, constitui o núcleo interno da evolução e do seu salto de quantitativo a qualitativo; a natureza do cosmos é material , os diversos fenómenos que nele se dão representam somente diferentes formas de matéria e o desenvolvimento inteiro do cosmos rege-se por leis do movimento da matéria sem que seja necessário recorrer à hipótese de um Espírito Cósmico; a matéria, a natureza e o ser constituem a realidade objectiva que existe fora da consciência e independente dela; o pensamento é um produto da matéria, mais em concreto, um produto do cérebro e não pode separar-se dela sem que se caia num erro crasso; o universo e as suas leis são cognoscíveis, no cosmos não se dão coisas incognoscíveis mas apenas coisas que ainda não são conhecidas e que o serão pelo esforço da ciência e da praxis.”
Recentemente, num polo quase diametralmente oposto, bem diferente destes na sua essência e nalguns aspectos específicos, nomeadamente na compreensão das teorias evolucionistas, deparamos com as teorias bem recentes de Edward O. Wilson – seguramente um dos mais importantes pensadores e cientistas actuais e pioneiro dos mais modernos e profundos estudos sobre a biodiversidade, bem no cerne do pensamento científico contemporâneo.
Wilson intitulou o seu último livro de Conscilience. Esta palavra, que construiu repescando da etimologia e buscando nos significados mais antigos, pretende significar a fusão, a integração dos conhecimentos parciais num todo, a fusão das ciências, a fusão mesmo das artes e da ciências para o conhecimento integrado, sem a qual não será possível a mais profunda e mais global compreensão de todas as coisas!
Parece que dois mil e quinhentos anos depois, a corrente do rio em que mergulhou Heráclito chegou assim, fresca, torrencial, aos nosso tempo...
Talvez que, apesar de tudo, o que tenha mudado menos, tenha sido a incessante sede de descoberta como uma das mais profundas preocupações dos pensadores de todos os tempos.

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