A psicologia de massas do fascismo ontem e hoje: por que as massas caminham sob a direção de seus algozes?
Mauro Iasi revisita as teses de Wilhelm Reich sobre a psicologia de massas do fascismo para compreender os impasses políticos do presente.
Por Mauro Luis Iasi.
“o fascismo, na sua forma mais pura, é o somatório
de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”
W. Reich
de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”
W. Reich
“queriam que eu falasse do agora
mas, o presente que procuro
está preso em um passado
que insiste em ser futuro”
M. Iasi
mas, o presente que procuro
está preso em um passado
que insiste em ser futuro”
M. Iasi
O psicólogo marxista Wilhelm Reich (1897-1957) escreveu o livro Psicologia de massas do fascismo
em 1933 (o estudo se estendeu de 1930 até 1933), no contexto da
ascensão do nazismo na Alemanha. O autor se refugiou em Viena, depois
Copenhagen e Oslo, onde iniciou seus estudos sobre as couraças e depois
do que denominou de “energia vital”, levando-o a teoria do “orgon”.
Desde 1926 acumulava divergências com Freud, com o qual trabalhou como
assistente clínico, e em 1934 seria expulso da Sociedade Freudiana e da
Associação Psicanalítica Internacional, sairia da Noruega em direção aos
EUA, onde seria também perseguido com a acusação de “subversão”. Acabou
preso em 1957 e morreu no mesmo ano na prisão. Toda sua obra, incluindo
livros e material de pesquisa, foram queimados por ordem judicial nos
EUA em 1960.
Ainda que possamos questionar as teorias reichianas fundadas na teoria do “orgon”
e a relação que esperava estabelecer entre “soma e psiquismo”, temos
que ter muito cuidado ao tratar as considerações que esse importante
autor tece sobre o fascismo e o caráter das massas analisados na obra
citada. Em vários aspectos, considero que as reflexões de Reich sobre o
tema podem ser extremamente úteis em nossos tumultuados dias,
principalmente pelas questões que levanta, mais do que pelas respostas
que encontra.
O autor coloca da seguinte maneira o
problema. Se assumirmos que a compreensão da sociedade realizada por
Marx esteja correta – isto é, que o desenvolvimento da sociedade
capitalista e suas contradições leva à possibilidade de sua superação
revolucionária (o que implica a conformação do proletariado como um
sujeito consciente de sua tarefa histórica) –, a questão que se coloca é
como compreender o comportamento político de amplos setores da classe
trabalhadora que efetivamente estão servindo de base para a reação
política que emergia com o fascismo.
Chamar atenção aos efeitos da exploração
capitalista, como a miséria, a fome e o conjunto das injustiças próprias
do sistema capitalista para ativar o “ímpeto revolucionário”, dizia
Reich, já não era suficiente. Tampouco acusar o comportamento
conservador das massas de “irracional”, de constituir uma “psicose de
massas” ou uma “histeria coletiva” – algo que em nada contribui para
jogar luz sobre a raiz do problema, a saber, compreender a razão pela
qual a classe trabalhadora respaldava o discurso fascista que em última
instância atacava exatamente seus próprios interesses.
Na base dessa incompreensão se encontrava
um sentimento de espanto. Os marxistas acreditavam que a crise
econômica de 1923-1933 era de tal forma brutal que produziria
“necessariamente uma orientação ideológica de esquerda nas massas por
ela atingidas”. Entretanto o que se presenciou foi, nas palavras do
autor, uma “clivagem entre a base econômica, que pendeu para a esquerda,
e a ideologia de largas camadas da sociedade que pendeu para a
direita”. O autor conclui com a constatação de que a “situação econômica
e a situação ideológica das massas não coincidem necessariamente”.
(Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 7).
Nesse ponto, Reich afirmará que – e a
observação dele aqui me parece profundamente pertinente hoje – essa não
correspondência não deveria surpreender aos marxistas, uma vez que o
materialismo dialético de Marx não compreende a relação entre a situação
econômica e a consciência de classe como sendo algo mecânico, ou seja,
como se a situação material determinasse esquematicamente sua expressão
ideal na consciência dos membros de uma classe social. Somente um
“marxismo vulgar” concebe uma antítese na relação entre economia e
ideologia, assim como entre a “estrutura” e a “superestrutura”, uma
perspectiva precária que não leva em conta o chamado “efeito de volta”
da ideologia, isto é, as formas pelas quais a ideologia incide sobre a
própria base material que a determina. Presa a essa visão esquemática e
pouco dialética, resta a essa modalidade de marxismo vulgar apenas
recorrer ao chamamento moral para que os trabalhadores correspondam em
sua ação às condições objetivas em que se inserem, clamando pela
“consciência revolucionária”, às “necessidades das massas” ou ao
“impulso natural” para as greves e a luta (p. 14). Melancolicamente,
Reich conclui então que essa versão esquemática do marxismo:
“Tentará, por exemplo,
explicar uma situação histórica com base na ‘psicose hitleriana’ ou
tentará consolar as massas, persuadindo-as a não perder a fé no
marxismo, assegurando-lhes que, apesar de tudo, o processo avança, que a
revolução não pode ser esmagada, etc. O marxista comum acaba por descer
ao ponto de incutir no povo uma coragem ilusória, sem, no entanto,
analisar objetivamente a situação em sem compreender sequer o que se
passou. Jamais compreenderá que uma situação difícil nunca é
desesperadora para a reação política ou que uma grave crise econômica
tanto pode conduzir à barbárie como a liberdade social. Em vez de
deixar seus pensamentos e atos partirem da realidade, ele transporta
essa realidade para a sua fantasia de modo que ela corresponda aos seus
desejos.” (pp. 14-5)
A miséria econômica causada pela crise
atualiza a disjuntiva “socialismo ou barbárie”, mas o que faria com que
os trabalhadores optem pela alternativa socialista? Reich está
convencido de que em uma situação como essas os trabalhadores escolhem
em primeiro lugar a barbárie. O marxismo vulgar compreende a ideologia
como um conjunto de ideias que se impõe à sociedade e, portanto, aos
trabalhadores. Dessa maneira, os partidários desse tipo de perspectiva
acreditam que as ideais marxistas ganham força na crise porque desmentem
na prática as ideias conservadoras. O que foge à compreensão dessa
análise é exatamente o modo de operação da ideologia, muito mais do que a
definição escolástica do “que é” ideologia.
Assim, o psicólogo comunista fará a
pergunta decisiva: se uma ideologia se transforma em força material
quando se apodera das massas, como afirmava Marx, a pergunta é “como é
possível que um fator ideológico produza resultado material”, seja na
direção de uma política revolucionária ou na direção de uma “psicologia
de massas reacionária”? (p. 17)
Se compreendermos a ideologia na chave de
ideias dominantes em uma sociedade – isto é, as ideias das classes
dominantes que expressam as relações sociais que fazem de uma classe a
classe dominante (Marx e Engels, A ideologia alemã,
Boitempo, p. 47) –, a pergunta se formula da seguinte maneira: como é
que relações sociais se convertem em expressões ideais, valores, juízos e
representações interiorizadas pelas pessoas que constituem uma
determinada sociedade? A resposta é que isto se dá na vivência de
instituições no interior das quais as pessoas formam seu próprio
psiquismo, neste caso, fundamentalmente, na família.
É aqui que as relações sociais dadas são
apresentadas pela pessoa em formação como “realidade”, onde se
desenvolve a transição do “princípio do prazer” para o “princípio da
realidade” e se produz um complexo processo de identificação com aquele
que representa o limite, a ordem e a norma social a ser imposta, mas, o
que é essencial ao nosso tema, que é incorporada pela pessoa como se
fosse sua (autocontrole) e não uma imposição oriunda de uma ordem
social. O fundamento desse processo de interiorização, na formação
daquilo que Freud denominou de “superego”, está a repressão à
sexualidade infantil, o seu recalque e a volta como sintoma nos termos
de Reich (Materialismo Dialético e Psicanálise. Lisboa: Presença/São Paulo: Martins Fontes, 1977).
É mister lembrar neste momento que o
resultado desse processo de interiorização das relações sociais na forma
de valores e normas de comportamento implica na identidade com o agende
da imposição das normas externas, no caso do complexo de Édipo descrito
por Freud na formação de uma identidade com o pai.
Dessa maneira, Reich localizará a base de
uma determinada expressão de uma psicologia de massas (a do fascismo)
em dois pilares: uma certa forma de família tendo no centro a repressão à
sexualidade infantil; e o caráter da “classe média baixa”. Para ele, a
repressão à satisfação das necessidades materiais difere da repressão
aos impulsos sexuais pelo fato que a primeira leva à revolta enquanto a
segunda impede a rebelião, uma vez que o retira do domínio consciente
“fixando-o como defesa moral”, fazendo com que o próprio recalque do
impulso seja inconsciente, seja visto pela pessoa como uma
característica de seu caráter. O resultado disso, segundo Reich, “é o
conservadorismo, o medo a liberdade, em resumo, a mentalidade
reacionária” (Psicologia de Massas do Fascismo, p. 29).
Os setores médios não são os únicos a
viverem esse processo (que é de fato universal para nossa sociedade) mas
o vivem de maneira singular. Trata-se de uma classe ou segmento de
classe espremido entre o antagonismo das classes fundamentais da
sociabilidade burguesa (a burguesia e o proletariado), desenvolvendo o
curioso senso de que estão acima das classes e representam a nação. Seus
impulsos jogam os setores médios ora para a radicalidade proletária (a
luta contra as barreiras da realidade que se levantam contra os
impulsos), ora para o apelo à ordem da reação burguesa (a defesa das
barreiras sociais impostas como garantia da sobrevivência). Como o
indivíduo teme seus impulsos e clama por controle, os segmentos médios
temem a quebra da ordem na qual se equilibram precariamente e pedem
controle e repressão.
Não é acidente ou casualidade que no
campo dos valores reacionários vejamos alinhados à defesa abstrata da
“nação” características como o “moralismo” quanto aos costumes (que vem
inseparavelmente ligado a preconceitos, a homofobia, etc.) e a defesa da
“família”, assim como o chamado “irracionalismo”, a “violência”, o mito
da xenofobia e do racismo como constituintes da nação, e o clamor pela
“ordem”. A recente cena dantesca de “manifestantes” enrolados na
bandeira do Brasil, de joelhos e mãos na cabeça, pedindo uma intervenção
militar é a imagem que condensa todos esses elementos. Por incrível que
pareça, essa não é uma sociedade “doente”, mas a sociedade “normal”
exposta sem os filtros que rotineiramente a oculta.
Os argumentos de Reich estão longe de dar
conta da totalidade do fenômeno do fascismo. Ainda que justificada, sua
crítica aos marxistas oficiais (em 1931 Reich criou a Sexpol Verlag que
aglutina mais de 40 mil membros discutindo uma política sexual e suas
relações com a luta revolucionária, o que causou preocupações no Partido
Comunista austríaco e redundou na sua expulsão do partido em 1933) não
pode dar conta de todos os elementos históricos, políticos, sociais e
culturais do tema que foram abordados em inúmeras obras de competentes
marxistas (de Gramsci a Adorno e Benjamin, passando por Togliatti,
Polantzas e tantos outros). Ele apenas aponta para um aspecto que
normalmente é desconsiderado. O que nos parece pertinente é que o
comportamento fascista não pode ser reduzido a manipulação e engodo, mas
encontra profunda raízes na consciência imediata das massas e seus
fundamentos afetivos, seja nos segmentos médios, seja na classe
trabalhadora.
O fascismo é, na sua essência, uma
expressão política da crise capitalismo em sua fase imperialista e na
etapa do domínio dos monopólios, como define Leandro Konder (Introdução ao fascismo,
São Paulo, Expressão Popular, 2009). Ele disfarça sob uma máscara
modernizadora seu conteúdo conservador, sendo antiliberal,
antissocialista, antioperário e, principalmente, antidemocrático. A
dificuldade do fascismo reside exatamente em juntar esses dois aspectos
contrários em sua síntese – isto é, uma intencionalidade à serviço do
grande capital (imperialista, monopolista e financeiro) e uma base de
massas que permita apresentar seu programa reacionário como alternativa
para a “nação”. Creio que o estudo de Reich nos dá aqui uma pista
valiosa. A ideologia fascista conclama à revolta dos impulsos reprimidos
(seja das necessidades materiais, seja aqueles relativos à repressão da
sexualidade) e depois oferece a ordem como alternativa, dialogando
assim diretamente com o fundamental da estrutura do caráter
universalizado pela sociabilidade burguesa, principalmente das chamadas
classes médias. É, portanto, uma política da pequena burguesia que
mobiliza massas trabalhadoras para defender os interesses do grande
capital monopolista. Acreditem, realizou-se esta façanha com eficiência e
sucesso naquilo que conhecemos por nazifascismo.
Na luta contra o fascismo, a burguesia
democrática é sempre a primeira derrotada e junto a ela a pequena
burguesia que acredita no seu próprio mito de um Estado acima dos
interesses de classe. A única força social capaz de enfrentar o fascismo
é a revolução proletária, por isso são os trabalhadores o alvo duplo do
fascismo, seja no sentido da cooptação, seja na repressão brutal e
direta. Quando a luta de classes se acirra e qualquer conciliação é
impossível, a burguesia se inquieta, os segmentos médios entram em
pânico e os fascistas vendem seu remédio amargo para a doença que
ajudaram a criar. Se nesse momento os trabalhadores se movimentarem com
autonomia em direção ao seu projeto societário – o socialismo –,
impelidos inicialmente pelos impulsos mais elementares e ainda não
conscientes, eles podem colocar toda a sociedade em torno de sua luta e
se constituir como alternativa à barbárie do capitalismo em crise. Se,
por razões várias, esse segmento não se movimentar com a força
necessária, uma longa noite de terror se impõe com seus cadáveres e
cortejos fúnebres.
Ainda que tenham particularidades em seu
processo de consciência, os trabalhadores não podem escapar ao fato de
que são socializados nas instituições de uma ordem burguesa, portanto,
que os valores, princípios, representações ideais desta ordem constituam
o fundamento de sua consciência imediata. Diante do caos que emerge da
crise do capital vive uma contradição entre os impulsos materiais que os
impulsionam à luta e à identidade com os opressores que os mantêm
presos às correntes da ideologia. Na ausência de uma política
revolucionária se somam às “classes médias” conclamando pela ordem e se
prestam a ser a base de massas para as aventuras fascistas.
Toda a esperança da psicanálise é tornar
possível que o inconsciente emerja, em parte, para que seja compreendido
o sintoma. Guardadas as mediações necessárias, a luta de classes torna
possível que as determinações ocultas pelos mecanismos da ordem se façam
visíveis e que o sintoma se torne exposto. No primeiro assim como no
segundo caso isto não significa a resolução do sintoma, mas o início de
uma longa luta para enfrentá-lo. O novo que pulsa vigoroso nas entranhas
do cadáver moribundo do velho mundo, não pode ser detido a não ser pela
violência. Não pode se libertar sem quebrar violentamente a ordem que o
aprisiona.
“Veintiuno veintiuno
firmamento del dos mil
en el cielo la paloma
va en la mira del fusil”
Silvio Rodriguez
firmamento del dos mil
en el cielo la paloma
va en la mira del fusil”
Silvio Rodriguez
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário