A aposta na “imunidade de rebanho” contra a covid-19 no Brasil expõe a risco milhões de vidas
Não há consenso científico sobre taxa de infecção da população para alcançar imunidade coletiva nem sobre quanto dura a proteção. Estratégia é 'roleta russa' apontada contra vulneráveis
São Paulo - 16 jul 2020 - 21:43 BRT
Na semana em que o Brasil alcança a marca de dois milhões de pessoas infectadas
pelo novo coronavírus (exatamente, 2.012.151, de acordo com o
Ministério da Saúde) e 76.668 mortes pela covid-19, não se fala em outra
coisa a não ser a imunidade coletiva, também chamada de “imunidade de rebanho”,
expressão que remete à dinâmica natural de transmissão de doenças
infecciosas. De acordo com os cientistas, essa imunidade coletiva
acontece quando o número de pessoas resistentes ao vírus atinge uma
fração da população suficientemente alta para que ele não encontre mais
indivíduos suscetíveis à infecção. As primeiras estimativas científicas
apontavam um percentual entre 60% e 70% de infectados para frear a propagação do Sars-CoV-2,
mas novos estudos trouxeram otimismo ao apresentar modelos matemáticos
que reduzem essa taxa para 43% ou 20%. Os especialistas ponderam, no
entanto, que apenas esperar a “imunidade de rebanho”, sem adotar
políticas de controle da pandemia, tem um alto custo humano —até milhões
de mortes— e não é (ou não deveria ser) estratégia de política pública.
“Eu comecei a achar há algum tempo que a estratégia do Brasil é a imunidade de rebanho por incompetência. Como o país não testa a população nem adota medidas eficazes de isolamento social, só resta saída default,
que é o que acontece quando não se faz nada: a imunidade coletiva”,
comenta o biólogo Fernando Reinach. A estratégia de esperar a progressão
natural do novo coronavírus até alcançar-se a imunidade coletiva foi
adotada por países como Reino Unido e Suécia, que, devido ao aumento de mortes, voltaram atrás.
Por aqui, ainda que o Governo de Jair Bolsonaro não tenha assumido
claramente essa política, o presidente sempre mostrou-se contra o
distanciamento social e a favor da reabertura do comércio a qualquer
custo. “Todos dizem que pelo menos 70% da população será contaminada.
Tem que tomar cuidado com os idosos, mas, em algum momento, esses também
serão contaminados”, insistia Bolsonaro em seu canal no YouTube nesta
quinta-feira. “Desse jeito, quem chegar antes, a vacina ou a imunidade de rebanho, resolve o problema”, acrescenta Reinach.
Os
primeiros estudos sobre a covid-19 estimavam 60% de contaminados para
que se chegasse à imunidade coletiva, considerando uma população
homogênea. Um estudo publicado na revista Science no
final de junho, considerando uma população heterogênea, com diferentes
graus de isolamento e interação social, reduziu esse percentual para
43%. Um outro modelo matemático, publicado em maio e
de coautoria de pesquisadores brasileiros, aponta que é possível chegar
à “imunidade de rebanho” com entre 10% e 20% da população contaminada.
Utilizando como exemplo uma cidade como Manaus (AM), onde o elevado número de casos e óbitos por covid-19 provocou o colapso dos sistemas sanitário e funerário, mas que agora vê uma redução das infecções,
Reinach considera que essa imunidade coletiva pode estar perto de
tornar-se realidade em pelo menos alguns locais do Brasil. O biólogo
salienta, no entanto, que, sem testes para confirmar o número real de
pessoas infectadas, tudo não passa de hipótese. “Estudos feitos em São
Paulo demonstram que o número de infectados é até 10 vezes maior do que o
número oficial do Governo do estado, por exemplo. Se esse trabalho
estiver certo, existe a possibilidade de que, em algumas cidades,
estejamos chegando perto da “imunidade de rebanho”, mas é impossível
afirmar isso com certeza sem saber o número real das pessoas
infectadas”, explica. No caso de São Paulo, foi feita uma pesquisa por
amostragem da população, que fez teste para o novo coronavírus. É com
base nela que a Prefeitura da cidade estima que 10% da população já
contraiu a doença.
O diretor para doenças infecciosas da
Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Marcos Espinal, afirmou, na
terça-feira (14/07), que não há evidências de que qualquer cidade
brasileira tenha atingido a imunidade coletiva contra a covid-19.
Segundo ele, “é estimado que entre 50% e 80% da população de
determinado local precisa ter sido imunizada ou infectada pelo vírus”.
Apesar de discordar das estimativas dos cientistas, Espinal também
destacou que apostar proteção coletiva como estratégia de combate à
pandemia é um equívoco. “O custo em vidas humanas, na economia, na saúde
e na sociedade seria altíssimo”, disse ele, que mencionou ainda a falta
de consenso científico sobre o tempo de imunidade contra o novo
coronavírus. De acordo com uma pesquisa da King’s College de Londres, os anticorpos decaem após três meses do paciente adquirir a doença.
Além
disso, atingir a imunidade coletiva não significa o fim da pandemia,
conforme explica Rodrigo Corder, coautor do trabalho que estima essa
imunidade entre 10% e 20% e doutorando do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP. Ele diz que, no modelo matemático, considera-se que a
“imunidade de rebanho” é alcançada quando um infectado transmite o
vírus, em média, para menos de uma pessoa, de forma que a doença não
tenha mais potencial para crescer e desapareça ao longo do tempo. “Ainda
assim, cada indivíduo pode transmitir a doença para 0,9 pessoa, por
exemplo, se não existirem medidas de controle, como o isolamento”.
Dado o atual cenário brasileiro, com medidas conflitantes em relação à
maior flexibilização ou restrição do distanciamento social, o cientista
considera a possibilidade de surtos concentrados em algumas cidades ou
mesmo em diferentes bairros de uma mesma metrópole, como São Paulo, onde
16% da população periférica já se contaminou com a covid-19, média
maior que a da cidade.
Até que o país atinja a tão
esperada imunidade coletiva, as mortes em decorrência da doença podem
chegar a milhões e atingiriam, principalmente, os mais vulneráveis —a
taxa de mortalidade por covid-19 é de 80% entre pretos e pardos sem
escolaridade e de 19% entre brancos com ensino superior, de acordo com
uma pesquisa da PUC-Rio—.
Mas mesmo com a possibilidade
de novos pequenos surtos concentrados em determinados lugares ou entre
determinada parcela da população, Corder evita falar em uma “segunda
onda” do novo coronavírus no Brasil.
“Como o país tem uma dimensão continental, com muitas heterogeneidades e
sem uma política centralizada de combate à pandemia, em que cada Estado
toma suas próprias medidas, é difícil prever”, diz.
Para
Fernando Reinach, a estratégia ideal para mitigar a propagação da
doença e salvar vidas é aquela que alguns países europeus que já
superaram o auge da pandemia, como Suíça e Alemanha, vêm adotando: o
controle por rastreamento de contato. A estratégia que utiliza testagem
massiva faz com que, a qualquer sinal de gripe, o cidadão compareça ao
posto de saúde, onde é testado e orientado a ficar em casa, em
isolamento. Se o resultado foi negativo, avisam à pessoa que ela pode
sair. Se for positivo, ela permanece em isolamento e é questionada sobre
com quem se encontrou nos últimos dias. Esses contatos são localizados,
avisados que devem permanecer em isolamento durante 14 dias e, se
manifestarem sintomas, são testados, repetindo todo o processo. “Esse é o
único modo de reabrir a sociedade e manter o número de casos baixo”,
afirma o biólogo.
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