Covid-19: Pandemia expõe vulnerabilidade dos povos indígenas do Brasil
Crise sanitária provocada pelo coronavírus expõe a vulnerabilidade das populações originais do país, que veem os casos de mortes e infecções aumentarem, sem o devido acesso à assistência que as proteja do risco de extermínio. Ao todo, 117 indígenas morreram até agora, segundo dados oficiais
postado em 22/06/2020 06:00 / atualizado em 22/06/2020 09:01
Segundo a
Articulação de Povos Indígenas do Brasil (Apib), até o último sábado,
332 indígenas foram vítimas da doença, enquanto 7.208 estavam
infectados. Para o coordenador de Apib, Dinamam Tuxá, 32 anos, os
números podem ser maiores. “A subnotificação é bem maior. Temos relatos
de indígenas morrendo com sintomas da covid-19 sem serem testados. Não
dá para discutir uma política mais eficaz e específica, pois a própria
Sesai se nega a catalogar os casos de indígenas em contexto urbano”,
afirmou.
O
secretário da Sesai, Robson Santos da Silva, explica que o órgão não a
atende quem esteja fora das terras indígenas por uma questão legal.
Conforme dispõe a Lei Arouca nº 11.794/99, a população indígena,
especificamente residente em aldeia, deve ter atendimento local de
atenção básica à saúde ofertada pela secretaria. “Todos os casos de
covid-19, independentemente de especificidade de população, confirmados
por teste, no Brasil, são notificados ao SUS pelos municípios, estados e
União. Os casos confirmados em aldeias são notificados pela Sesai e
entram na contagem geral de casos confirmados no país pelo Ministério da
Saúde”, informou a secretaria por meio de nota.
Criada
em 2010, a Sesai tem, atualmente, 751.819 indígenas cadastrados e cuida
de 5.852 aldeias. De acordo com Robson Santos, 62% da população
indígena estão aldeadas. Apesar de garantir presença em todo o Brasil, o
secretário afirma que não consegue contabilizar os infectados pela
covid-19 que vivem nas cidades, porque a base da secretaria são os 34
distritos sanitários especiais indígenas dentro das aldeias. “Uma pessoa
nasce e morre indígena. Isso é um direito que a pessoa adquire ao
nascer, mas como há possibilidade da autodeclaração, é uma tarefa
hercúlea reconhecer uma pessoa fora da terra indígena como indígena”,
justificou.
Letalidade
Ao
analisar os dados divulgados pela Apib, é possível notar que a taxa de
letalidade do vírus entre os povos indígenas é igual à da população em
geral: 4,6%. No entanto, as taxas já chegaram a ter uma diferença de
3,4%, quando a dos indígenas chegou a ser de 8,4%, enquanto a da
população geral era de 5%.
O coordenador da
Apib relata que dois fatores podem influenciar na letalidade do vírus
nos povos indígenas. “O primeiro é biológico, pois alguns indígenas têm a
imunidade mais baixa, porque não tiveram acesso às campanhas de
vacinação. Por isso, eles estão mais sujeitos ao vírus”, explica. Além
disso, o coordenador da Apib indica o fator político como outra
influência. “Há ausência do Estado em aplicação de políticas públicas
estruturantes que garantam a integridade das comunidades indígenas”,
critica.
Luta solitária pela sobrevivência
A
precariedade do atendimento governamental e o medo do novo coronavírus
têm forçado os povos indígenas do Brasil a pensar em soluções autônomas.
À margem do conflito entre o presidente da República, governadores e
prefeitos, que fazem cabo de guerra sobre a questão do lockdown, as
comunidades indígenas contam, basicamente, com as próprias lideranças,
ONGs e profissionais da saúde para se manterem protegidos. É uma luta
quase solitária contra o avanço da doença.
Desde
o início de março, os índios seguem um protocolo rígido de
confinamento. Idas à cidade são controladas, turistas estão proibidos de
acessar a praia que fica dentro da TI e o uso de máscaras é obrigatório
em todas a área. Ao todo, são 32 aldeias do povo Potiguara.
Com
o surgimento dos primeiros casos da doença entre os índios, as
lideranças decidiram constituir um comitê de crise para os assuntos da
pandemia. “Hoje, o melhor remédio que temos é o isolamento social. É o
que a gente passa para o nosso povo. Paramos tudo na aldeia: os jogos de
futebol, as danças, tudo. Estamos dentro de casa, é estressante, mas,
se não tivéssemos fechado o acesso às aldeias, a situação estaria muito
pior”, relata o cacique.
Segundo o último
boletim epidemiológico divulgado pela Secretaria de Saúde Especial
Indígena (Sesai), a terra indígena do cacique Sandro tem 56 casos
confirmados do novo coronavírus e nenhuma morte. Em todo o estado da
Paraíba, são 36.784 casos e 766 mortes. (HL, LC e MEC)
Morte dos anciãos e cultura em risco
A
doença, que atinge de forma mais letal os mais idosos ,coloca em risco
parte considerável da cultura e dos princípios das 305 etnias do país.
Os anciãos são os guardiões e propagadores da história desses povos. De
acordo com o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, em todo o país morreram
cerca de 200 indígenas. E, assim como ocorre nas estatísticas nacionais
do Ministério da Saúde, a maioria das vítimas tem mais idade.
Angela
Kaxuyana, da etnia Kaxuyana, membro executiva da Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), compara as mortes
ao incêndio de bibliotecas e do Museu Nacional no Rio de Janeiro,
devido ao impacto cultural que a morte dos anciãos está causando aos
povos originários. “São duas perdas. Primeiro, é uma parte de você que
se vai quando se perde o avô, o pai, o idoso. A dor é imensurável. Além
de perder pessoas importantes, estamos perdendo nossas bibliotecas,
nossas memórias, nosso ser enquanto povo indígena”, explica. “É como o
incêndio no Museu Nacional, em que tudo que estava registrado está
pegando fogo, virando cinza. É isso que nos preocupa”, diz.
Durante
a entrevista ao Correio, Angela Kaxuyana recebeu a informação da morte
da liderança dos Munduruku, do Pará. “Acabou de falecer mais uma
liderança Munduruku. São 11 mortos em cinco dias”, avisou. Entre os
povos da Amazônia, segundo ela, diariamente morrem de quatro a cinco
anciãos. “É um número muito grande, considerando que somos apenas 1% da
população do Brasil. É absurdo, alarmante. A maioria tem sido de
mulheres e homens mais velhos. Estamos ficando órfãos. Está indo com
eles a sabedoria, nossa história, memória e resistência. Também perdemos
lideranças que tiveram papel importante na luta da resistência do
movimento indígena. Uma parte do movimento também se vai com a perda dos
anciãos. É uma perda irreparável para um povo”, alerta.
A
indígena afirma, ainda, que muitos desses povos foram infectados por
funcionários da Secretaria Especial de Saúde Indígena e que há
subregistro de infectados nos levantamentos feitos pelo governo federal.
“É uma outra violência do Estado. Deixar-nos no anonimato é uma
tentativa de esconder a situação real e alarmante em que a população se
encontra. É uma forma de colaborar para o genocídio dos povos
indígenas”, denuncia.
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