O grande número de mortes causadas pela Covid-19 tem gerado angústia e incerteza em muita gente. E os protocolos necessários para evitar contaminações em funerais tornam as despedidas ainda mais difíceis. Diante deste cenário, especialistas apontam a urgência em se refletir sobre a morte e de humanizar as histórias daqueles que estão partindo
Foto: Agência Brasil
Por: Isabela Alves
De acordo com a Universidade Johns Hopkings, dos Estados Unidos, o novo coronavírus, causador da Covid-19, já infectou mais de 6,5 milhões de pessoas ao redor do mundo e causou a morte de mais de 386 mil pessoas. 
No Brasil, já são 584 mil pessoas infectadas e mais de 32,5 mil mortes, e esses números têm aumentado rapidamente. O país já é o segundo com mais casos de coronavírus no mundo. 
A morte de tantas pessoas no Brasil e no mundo em um espaço tão curto de tempo tem gerado um tipo diferente de luto. “Estamos vivendo o luto de maneira coletiva pela humanidade e pelas pessoas próximas a nós que estão morrendo. O sentimento é de desconforto, angústia e incerteza por não sabermos como vamos sair dessa”, diz a psicóloga Beatriz Sant’Anna, graduada pela Universidade de São Paulo (USP).  
A psicóloga explica que existem 5 fases no luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Ainda, é válido ressaltar que essas fases não são lineares. Sant’Anna conta que é possível relacionar tais fases com a recepção da população com a notícia do novo coronavírus. 
“De primeira, negamos a situação e achávamos que a vida iria seguir normal. Depois vem o sentimento de que não é justo passar por isso e tentamos acreditar que é algo passageiro. Quando a ficha cai, começam a surgir as reflexões a respeito da crise econômica e por todas as vidas que foram perdidas. Por fim, é preciso encarar a nova realidade e reformular o estilo de vida”, conta.
A psicóloga Ana Gabriela Andriani, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), diz que a pandemia de Covid-19 está fazendo a humanidade refletir constantemente sobre o tema da morte, pois, além das vidas que se foram, também existe a morte de planos, sonhos e empregos. 
Ela também ressalta que os profissionais da saúde são os que mais sofrem o impacto da pandemia, já que estão arriscando as suas vidas todos os dias e estão vendo colegas de trabalho falecerem por conta da doença. Apesar de lidarem com a morte todos os dias, agora os médicos e enfermeiros não têm um controle da situação e a cada dia são inventados novos protocolos para salvar vidas. 

Um memorial para as vítimas da Covid-19

O artista visual Edson Pavoni, em colaboração com Rogério Oliveira, criou o ‘Memorial Inumeráveis’, plataforma dedicada a lembrar das vidas perdidas para a Covid-19. A iniciativa busca traçar um perfil das pessoas que se foram para humanizar a história das vítimas e mostrar que elas não são apenas estatísticas.
Sob o lema “Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”, o memorial traz diversos relatos poéticos sobre essas vidas e é possível ver a relação da vítima com os seus familiares, suas paixões e sonhos. 
“Estamos enfrentando uma das maiores crises humanitárias do mundo. Apesar de ser uma situação desoladora, as pessoas encontram conforto com essa forma de homenagem. Não queremos que seja um número frio, então quanto mais as mortes aumentam, mais devemos lembrar destas vidas, porque elas importam”, diz Laura Capanema, jornalista e voluntária do projeto.
Lançado em 30 de abril, o memorial já conta com diversas histórias. Para homenagear um ente querido, é possível enviar a história através de um formulário no site e pelo WhatsApp. Os jornalistas voluntários irão revisar o texto e fazer a publicação. “Não pensamos em números e sim, quantidade de histórias”, conta Laura.

Sobre a finitude e os rituais de despedida 

Criado por Renan Sukevicius e apresentado por Juliana Kunc Dantas, o podcast Finitude foi feito com o objetivo de falar sobre diversos fins. Na primeira temporada, o podcast tratou de fins de livros, filmes ou de carreira. 
Juliana se juntou ao projeto em 2018 após a morte do pai, o jornalista Audálio Dantas, e da avó materna, Olga, perdas estas que ocorreram no período de 3 meses. Ela passou a falar sobre envelhecimento, terminalidade, cuidados paliativos, morte e luto na plataforma.
“Não se trata de morrer, mas como irá morrer. Morrer com dignidade é um privilégio e acredito que no meu luto eu sofri somente o necessário, porque em uma situação de terminalidade, você começa a sofrer antes”, conta. Atualmente, ela está à frente de toda a produção de conteúdo e também está falando sobre suicídio, saúde mental e, principalmente, sobre o coronavírus. 
Dantas diz que o podcast é uma canalização sobre o tema do luto, já que, quanto mais você se aproxima do assunto, mais confortável e preparado você se sente em relação a ele. Ela ainda explica que a morte também se trata de respeitar as decisões da pessoa que se foi, no sentido de que cada pessoa deve escolher se quer ser velada ou cremada, se haverá evento religioso e até quem serão os convidados para o funeral.
Com o coronavírus, a apresentadora relata que surgiu o fenômeno dos rituais de despedida online. Para ela, é um acolhimento alternativo para aqueles que perderam um ente querido e ainda é uma forma de ressignificar o evento, já que parentes de todos os lugares do mundo agora podem participar da cerimônia.
“Com o coronavírus, não se pode abraçar e nem reunir as pessoas, então é como se o nosso luto fosse roubado. Os funerais são essenciais para que a gente se lembre do quanto aquela pessoa era querida e não ter essa convivência é cruel. Nesse momento é preciso oferecer um acolhimento alternativo”. Atualmente, muitas cerimônias estão sendo transmitidas através de aplicativos como Zoom e Hangouts.
Para ela, é preciso criar uma abertura para falar sobre a morte sem tabus, já que esta é a única certeza que temos nesta vida. Dantas ainda ressalta que, quando alguém morre, pelos menos 10 pessoas são impactadas por aquela morte. Com o alto número de vítimas do novo coronavírus, é necessário humanizar as histórias e identificar os rostos destas pessoas, porque todas elas fizeram a diferença nesta vida ao seu modo. 
“Queremos sempre nos livrar da dor, mas o luto é uma dor obrigatória. Vai doer, mas está tudo bem não estar bem. Estamos sentindo muita raiva nesse momento, quando éramos para nos dedicarmos à tristeza. Com a pandemia, estamos tendo que lidar com a morte de maneira bem escancarada e não dá mais pra jogar esse assunto para debaixo do tapete”, conclui. 

O que diz a filosofia?

Ilustração medieval: Mulher carrega cadáveres de mortos pela peste negra/ Foto: Escola de Filosofia
Para Viviane Cristina Cândido, professora de humanidades na saúde da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), o fenômeno da morte deve ser visto como um farol para a vida e a ciência. Ela ressalta que pensadores como Montaigne, Franz Rosenzweig e Machado de Assis podem ajudar na melhor compreensão deste fenômeno. 
“O tabu em relação à morte existe porque é difícil encarar o medo. A condição humana vive em constante negação de morte, porém devemos reconhecer as nossas limitações. São tempos difíceis, mas precisamos olhar para dentro de nós”, diz Viviane Cândido. 
Para Montaigne, filosofar está ligado a aprender a morrer. Para este pensador, é preciso reconhecer que a morte vai acontecer, por isso é necessário viver bem e sempre olhar para a fragilidade humana. Já Franz Rosenzweig acredita que a morte e a vida são como irmãs: elas andam lado a lado, e é a morte que faz a vida ser melhor e preciosa. 
“No dia a dia, evitamos a solidão e procuramos por diversões e outras distrações para não lembrarmos das questões essenciais. Sempre tem muito trabalho ou é preciso encontrar os amigos. Na pandemia, não tem para onde fugir. De um lado temos um sistema que pede grande produtividade, mas também há uma escolha nossa. Por que sempre nos ocupamos tanto?”, reflete a professora. 
Por fim, Machado de Assis não acreditava na mudança das pessoas. Mesmo passando por algum trauma, o escritor acreditava que o ser humano volta a ser o que era antes. Viviane diz que esse pensamento pode ser aplicado neste momento da pandemia, já que muitas pessoas querem voltar aos antigos costumes.
Ela também afirma que vivemos em uma modernidade focada no individualismo. O coronavírus fez com que a humanidade deixasse esse individualismo de lado e passasse a olhar para o coletivo. Ao mesmo tempo, este tem sido um tempo de reflexão para que todos avaliem as suas prioridades.