Sobre a Canção
E seu entorno e o que ela pode se tornar
O medo, a vida, a morte
Foi a primeira vez em que vieram a público problemas de saúde de Gil.
Ele tinha à época 74 anos. Mas a questão da finitude da vida se
apresentou a ele bem mais cedo. O jovem Gil já cantava: A morte é rainha que reina sozinha / Não precisa do nosso chamado / Recado / Pra chegar. E na repetição final, a palavra recado é trocada por medo.
Nada que de que se espantar, o medo da morte, mesmo que na juventude
nos sintamos imortais. Porém, décadas depois, Gil afirmou
categoricamente: Não tenho medo da morte.
A primeira gravação de Não tenho medo da morte é a do álbum Banda Larga Cordel,
de 2008, ano em que Gil completou 66 anos. Seu mote é a diferenciação
conceitual entre a morte como um estado, posterior ao ato individual de
morrer, o acontecimento em si.
A persona pública de Gil não dá a impressão de ser vulnerável ao
medo. Ao contrário, ele foi intrépido ao longo de suas carreira, gerando
com Caetano um movimento inovador na música brasileira, portando-se
dignamente diante da prisão e do exílio pela Ditadura Militar, passando
do fazer artístico ao político, aceitando o poder e realizando boas
coisas com ele, e acima de tudo mantendo sua obra e sua vida sempre em
íntima relação. Tudo leva a enxergar um destemido, um intimorato. Porém,
esta impressão é desmanchada candidamente pelo próprio Gil. Pois ele
não tem medo da morte, mas sim de morrer. Gil, como tudo que é humano,
tem medo. Pois o medo também é constituinte indispensável do humano.
Na medicina tradicional chinesa, sete emoções são ligadas a sete
órgãos do corpo. O medo particularmente está relacionado às funções
renais. Segundo ela, crianças inseguras fazem xixi na cama, pessoas
apavoradas perdem o controle da bexiga e se urinam. E o medo constante
de toda uma vida, não aceito, mal resolvido ou não digerido
psiquicamente, somatiza-se em falhas no funcionamento renal. Exatamente o
que aconteceu com Gil.
O arranjo de cordas de Jacques Morelenbaum para Não tenho medo da morte
me deixou intrigado desde a primeira vez que ouvi, por me lembrar o de
alguma outra canção de Gil, que demorei para identificar. Vasculhei sua
discografia de cima a baixo até topar com ela bem debaixo do nariz: um
de seus maiores sucessos, Não chore mais. Embora a frase da
introdução de Morelembaum seja bem diferente da de Lincoln Olivetti nos
anos 1980, algo na sonoridade, os glissandos de ambas, remeteram meus
ouvidos imediatamente de uma à outra. Esta relação, por sutil que seja,
não deixa de ser carregada de significado. Não chore mais é uma
canção de otimismo diante dos anos de chumbo da Ditadura, de boas
lembranças sendo o que traz forças para enfrentar a dura realidade. A
leveza com que enfrenta o assunto contamina a gravação de Não tenho medo da morte e lhe empresta um pouco de seu otimismo, mesmo diante do inevitável, da iniludível.
Mas este otimismo pode ser algo exagerado, ou mesmo inapropriado.
Pois o otimismo diz respeito ao futuro, e trata-se aqui exatamente do
fim de todos os futuros. A primeira gravação de Não tenho medo da morte
é talvez leve demais, suave demais, não dá à finitude o peso que
indubitávelmente tem. Gil teve a chance de mudar o enfoque sobre o
assunto no álbum Concerto de cordas & máquinas de ritmo, de 2012. E o fez de forma surpreendente.
Para esta gravação, Gil despojou sua canção de quase tudo. Toda a
instrumentação é reduzida a uma percussão esparsa no próprio violão e
uma nota – só um bordão, uma vez a cada fim de estrofe. E é só. A
própria harmonia se vai. Nudez absoluta. Para falar do momento da morte,
aqui Gil literaliza na interpretação o próprio momento em que se está
inteiramente só e todo e qualquer assessório é inútil. Do mundo nada se
leva, e morrer não tem companhia. O canto soturno das duas primeiras
estrofes contribui para a sensação de desolação, mas para as duas
seguintes, ele passa à oitava superior. O movimento ascendente deixa
escapar, afinal, uma visão positiva, mas que aqui não soa gratuita e sim
respaldada pelo movimento anterior. Depois de encarar (esteticamente,
oitava abaixo) o aspecto terrível da questão, Gil permite-se, apenas na
própria voz, a sugestão de um possível consolo ou esperança.
A letra de Não tenho medo da morte é cristalina, uma pequena
dissertação sobre o tema da morte e seu enfrentamento que dispensa
maiores explicações. Mas o tema complementar do medo parece ter ficado
ainda pendente de desenvolvimento por Gil. E o resultado foi, dois anos
depois da primeira gravação de Não tenho medo da morte, o surgimento de seu espelho.
Não tenho medo da vida está no álbum Fé na festa, o
que pode ser um bocado enganoso, pois a canção não tem nada de festiva,
muito embora seja um xote (sua irmã espelhada também, embora menos
evidente no arranjo). As estruturas são idênticas: os versos de abertura
da primeira e terceira estrofe são os mesmos, apenas com a óbvia troca
da palavra morte por vida. E a temática a princípio é
também similar: assim como diferencia a morte do ato de morrer, agora
distingue vida em si do viver e seus alfazeres, Porém, ao colocar a
questão no espelho, Gil acaba em boa medida também invertendo a
abordagem. E se na primeira canção o sentimento resultante era de uma
certa serenidade apesar da morte não ser uma escolha, mas uma imposição,
aqui, ao tratar a vida igualmente como algo compulsório e o viver com
sua carga de sofrimento inerente, o resultado ironicamente acaba sendo
bem menos otimista que sua em antecessora. Das quatro estrofes, três
terminam retratando o sofrimento como inerente ao ato de viver.
Na época do lançamento do álbum conceitual Quanta, que trata
das relações entre religião e ciência, Gil comentou numa entrevista que
cuidara de compensar nas composições a aridez dos temas escolhidos.
Que, diante da complexidade dos assuntos, preferira canções de estrutura
mais direta, mais simples, a ponto de privilegiar rimas em ão, permitindo ao ouvinte focar no que ele tinha a dizer. A dupla de canções Não tenho medo da morte/vida
parecem seguir este preceito. A primeira é o desenvolvimento de um
raciocínio perfeitamente articulado, a segunda mais disperso, mas em
ambos os casos o foco no discurso prevalece sobre a estrutura
harmônico-melódica, a prioridade desta é conquistar o ouvido
rapidamente, abrindo caminho para o outro. E efetivamente ambas
permanecem dentro da tonalidade mais estrita entre primeiro, sexto e
quarto graus, e têm melodias sem grandes saltos e repetidas a cada
estrofe, sem sequer refrões para interromper o raciocínio que se
desenvolve. É como se Gil, capaz de enormes complexidades e já tendo
mostrado isto em tantos anos e tantas canções, seguisse agora o exemplo
de seu mestre Dorival Caymmi, retratado por ele em Buda Nagô,
no sentido da simplicidade – que de certa forma corresponde também a a
um estado natural de tranquilidade diante da vida e da morte, de
transcendência a elas, que é o que ele busca nestas duas canções, como
na vida.
E como o processo se dá paralelamente na vida e na obra, ao trazer
Gil sua vida integrada a sua música, o processo prossegue em sua doença e
influencia diretamente o que ele canta. Já quase recuperado dos
problemas renais e de hipertensão associados, Gil divulgou a gravação
caseira (aqui a de um programa de entrevistas) de uma canção feita por
ele em homenagem à médica que o tratou fazendo-lhe uma biópsia no
coração.
Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração
Depois mandou examinar os quatro pedacinhos
Um para saber se eu sinto medo
Um para saber se eu sinto dor
Um para saber os meus segredos
Um para saber se eu sinto amor
É de se notar que o primeiro dos exames poéticos listados
por Gil é justamente o medo. Gil assume abertamente a psicossoma, toma o
medo que de sua mente passou a seu corpo e o expurga em verso,
invertendo o trajeto do sentimento à matéria e tornando-o em novamente
sentimento – mas outro, resultante de uma canção de gratidão. A estrofe
que se inicia com medo termina com amor.
Mas a ação mais direta e frontal de Gil contra o medo, não da vida e
da morte, mas de viver e morrer, é também a mais singela, para além das
considerações filosóficas de suas duas canções-espelho: O ato puro e
simples de fazer uma canção para sua bisneta recém-nascida. E Gil, assim
como o medo passou ao corpo e depois ao verso, passa da palavra ao ato,
mas este ato é também palavra.
Em um antigo anúncio de Natal da Unicef, Gil contava a a história de
um rei que conversava com seu filho e herdeiro à janela do castelo, e
mostrava a imensidão do reino, até onde a vista alcançava. O príncipe
então perguntou: Pai, um dia tudo isto será meu? E a resposta foi: Não,
filho. Você, assim como eu, estará apenas tomando emprestado tudo isto a
seus filhos.
A decisão de Gil em fazer esta canção em específico neste momento de
sua vida, a atitude prática de, próximo da morte, apontar para a vida
que se perpetua em seus herdeiros, apostar na renovação da vida como
razão para enfrentar abertamente seus medos, viver e morrer, quer dizer
algo por si. E a alegria com que Gil faz os últimos acordes da canção,
saboreando a cadência harmônica e o acorde final suavemente em
suspensão, recusando-se a um final definitivo, dizem ainda mais, sem a
necessidade de outras considerações.
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