sexta-feira, 17 de julho de 2020

O medo, a vida, a morte - Gilberto Gil e o Conflito


O medo, a vida, a morte

Gilberto Gil passou a maior parte do ano de 2016 com insuficiência renal e hipertensão, problemas relacionados. Precisou ser internado seguidas vezes para exames e tratamento, e ao se apresentar com Caetano Veloso e Anitta na abertura das Olimpíadas do Rio, tinha o rosto inchado das medicações.
Foi a primeira vez em que vieram a público problemas de saúde de Gil. Ele tinha à época 74 anos. Mas a questão da finitude da vida se apresentou a ele bem mais cedo. O jovem Gil já cantava: A morte é rainha que reina sozinha / Não precisa do nosso chamado / Recado / Pra chegar. E na repetição final, a palavra recado é trocada por medo. Nada que de que se espantar, o medo da morte, mesmo que na juventude nos sintamos imortais. Porém, décadas depois, Gil afirmou categoricamente: Não tenho medo da morte.

A primeira gravação de Não tenho medo da morte é a do álbum Banda Larga Cordel, de 2008, ano em que Gil completou 66 anos. Seu mote é a diferenciação conceitual entre a morte como um estado, posterior ao ato individual de morrer, o acontecimento em si.
A persona pública de Gil não dá a impressão de ser vulnerável ao medo. Ao contrário, ele foi intrépido ao longo de suas carreira, gerando com Caetano um movimento inovador na música brasileira, portando-se dignamente diante da prisão e do exílio pela Ditadura Militar, passando do fazer artístico ao político, aceitando o poder e realizando boas coisas com ele, e acima de tudo mantendo sua obra e sua vida sempre em íntima relação. Tudo leva a enxergar um destemido, um intimorato. Porém, esta impressão é desmanchada candidamente pelo próprio Gil. Pois ele não tem medo da morte, mas sim de morrer. Gil, como tudo que é humano, tem medo. Pois o medo também é constituinte indispensável do humano.
Na medicina tradicional chinesa, sete emoções são ligadas a sete órgãos do corpo. O medo particularmente está relacionado às funções renais. Segundo ela, crianças inseguras fazem xixi na cama, pessoas apavoradas perdem o controle da bexiga e se urinam. E o medo constante de toda uma vida, não aceito, mal resolvido ou não digerido psiquicamente, somatiza-se em falhas no funcionamento renal. Exatamente o que aconteceu com Gil.
O arranjo de cordas de Jacques Morelenbaum para Não tenho medo da morte me deixou intrigado desde a primeira vez que ouvi, por me lembrar o de alguma outra canção de Gil, que demorei para identificar. Vasculhei sua discografia de cima a baixo até topar com ela bem debaixo do nariz: um de seus maiores sucessos, Não chore mais. Embora a frase da introdução de Morelembaum seja bem diferente da de Lincoln Olivetti nos anos 1980, algo na sonoridade, os glissandos de ambas, remeteram meus ouvidos imediatamente de uma à outra. Esta relação, por sutil que seja, não deixa de ser carregada de significado. Não chore mais é uma canção de otimismo diante dos anos de chumbo da Ditadura, de boas lembranças sendo o que traz forças para enfrentar a dura realidade. A leveza com que enfrenta o assunto contamina a gravação de Não tenho medo da morte e lhe empresta um pouco de seu otimismo, mesmo diante do inevitável, da iniludível.
Mas este otimismo pode ser algo exagerado, ou mesmo inapropriado. Pois o otimismo diz respeito ao futuro, e trata-se aqui exatamente do fim de todos os futuros. A primeira gravação de Não tenho medo da morte é talvez leve demais, suave demais, não dá à finitude o peso que indubitávelmente tem. Gil teve a chance de mudar o enfoque sobre o assunto no álbum Concerto de cordas & máquinas de ritmo, de 2012. E o fez de forma surpreendente.

Para esta gravação, Gil despojou sua canção de quase tudo. Toda a instrumentação é reduzida a uma percussão esparsa no próprio violão e uma nota – só um bordão, uma vez a cada fim de estrofe. E é só. A própria harmonia se vai. Nudez absoluta. Para falar do momento da morte, aqui Gil literaliza na interpretação o próprio momento em que se está inteiramente só e todo e qualquer assessório é inútil. Do mundo nada se leva, e morrer não tem companhia. O canto soturno das duas primeiras estrofes contribui para a sensação de desolação, mas para as duas seguintes, ele passa à oitava superior. O movimento ascendente deixa escapar, afinal, uma visão positiva, mas que aqui não soa gratuita e sim respaldada pelo movimento anterior. Depois de encarar (esteticamente, oitava abaixo) o aspecto terrível da questão, Gil permite-se, apenas na própria voz, a sugestão de um possível consolo ou esperança.
A letra de Não tenho medo da morte é cristalina, uma pequena dissertação sobre o tema da morte e seu enfrentamento que dispensa maiores explicações. Mas o tema complementar do medo parece ter ficado ainda pendente de desenvolvimento por Gil. E o resultado foi, dois anos depois da primeira gravação de Não tenho medo da morte, o surgimento de seu espelho.

Não tenho medo da vida está no álbum Fé na festa, o que pode ser um bocado enganoso, pois a canção não tem nada de festiva, muito embora seja um xote (sua irmã espelhada também, embora menos evidente no arranjo). As estruturas são idênticas: os versos de abertura da primeira e terceira estrofe são os mesmos, apenas com a óbvia troca da palavra morte por vida. E a temática a princípio é também similar: assim como diferencia a morte do ato de morrer, agora distingue vida em si do viver e seus alfazeres, Porém, ao colocar a questão no espelho, Gil acaba em boa medida também invertendo a abordagem. E se na primeira canção o sentimento resultante era de uma certa serenidade apesar da morte não ser uma escolha, mas uma imposição, aqui, ao tratar a vida igualmente como algo compulsório e o viver com sua carga de sofrimento inerente, o resultado ironicamente acaba sendo bem menos otimista que sua em antecessora. Das quatro estrofes, três terminam retratando o sofrimento como inerente ao ato de viver.
Na época do lançamento do álbum conceitual Quanta, que trata das relações entre religião e ciência, Gil comentou numa entrevista que cuidara de compensar nas composições a aridez dos temas escolhidos. Que, diante da complexidade dos assuntos, preferira canções de estrutura mais direta, mais simples, a ponto de privilegiar rimas em ão, permitindo ao ouvinte focar no que ele tinha a dizer. A dupla de canções Não tenho medo da morte/vida parecem seguir este preceito. A primeira é o desenvolvimento de um raciocínio perfeitamente articulado, a segunda mais disperso, mas em ambos os casos o foco no discurso prevalece sobre a estrutura harmônico-melódica, a prioridade desta é conquistar o ouvido rapidamente, abrindo caminho para o outro. E efetivamente ambas permanecem dentro da tonalidade mais estrita entre primeiro, sexto e quarto graus, e têm melodias sem grandes saltos e repetidas a cada estrofe, sem sequer refrões para interromper o raciocínio que se desenvolve. É como se Gil, capaz de enormes complexidades e já tendo mostrado isto em tantos anos e tantas canções, seguisse agora o exemplo de seu mestre Dorival Caymmi, retratado por ele em Buda Nagô, no sentido da simplicidade – que de certa forma corresponde também a a um estado natural de tranquilidade diante da vida e da morte, de transcendência a elas, que é o que ele busca nestas duas canções, como na vida.
E como o processo se dá paralelamente na vida e na obra, ao trazer Gil sua vida integrada a sua música, o processo prossegue em sua doença e influencia diretamente o que ele canta. Já quase recuperado dos problemas renais e de hipertensão associados, Gil divulgou a gravação caseira (aqui a de um programa de entrevistas) de uma canção feita por ele em homenagem à médica que o tratou fazendo-lhe uma biópsia no coração.
Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração
Depois mandou examinar os quatro pedacinhos
Um para saber se eu sinto medo
Um para saber se eu sinto dor
Um para saber os meus segredos
Um para saber se eu sinto amor

É de se notar que o primeiro dos exames poéticos listados por Gil é justamente o medo. Gil assume abertamente a psicossoma, toma o medo que de sua mente passou a seu corpo e o expurga em verso, invertendo o trajeto do sentimento à matéria e tornando-o em novamente sentimento – mas outro, resultante de uma canção de gratidão. A estrofe que se inicia com medo termina com amor.
Mas a ação mais direta e frontal de Gil contra o medo, não da vida e da morte, mas de viver e morrer, é também a mais singela, para além das considerações filosóficas de suas duas canções-espelho: O ato puro e simples de fazer uma canção para sua bisneta recém-nascida. E Gil, assim como o medo passou ao corpo e depois ao verso, passa da palavra ao ato, mas este ato é também palavra.

Em um antigo anúncio de Natal da Unicef, Gil contava a a história de um rei que conversava com seu filho e herdeiro à janela do castelo, e mostrava a imensidão do reino, até onde a vista alcançava. O príncipe então perguntou: Pai, um dia tudo isto será meu? E a resposta foi: Não, filho. Você, assim como eu, estará apenas tomando emprestado tudo isto a seus filhos.
A decisão de Gil em fazer esta canção em específico neste momento de sua vida, a atitude prática de, próximo da morte, apontar para a vida que se perpetua em seus herdeiros, apostar na renovação da vida como razão para enfrentar abertamente seus medos, viver e morrer, quer dizer algo por si. E a alegria com que Gil faz os últimos acordes da canção, saboreando a cadência harmônica e o acorde final suavemente em suspensão, recusando-se a um final definitivo, dizem ainda mais, sem a necessidade de outras considerações.

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