sábado, 27 de julho de 2013

Vozes D'Africa (Antônio Frederico de Castro Alves)

VOZES D’ÁFRICA

Deus! ó Deus onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Ha dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia,
— Infinito: galé!...
Por abutre — me deste o Sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino,
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos harens do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c’rôa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela — doudo amante —
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
Talvez... p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra na floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às pirâmides do Egito,
Embalde aos quatro céus chorando grito:
“Abriga-me, Senhor!...”

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal, que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: “Lá vai África embuçada
No seu branco Albornoz...”

Nem vêem que o deserto é meu sudário
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja o Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim
Onde branqueja a caravana errante
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efrain...

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!...

Foi depois do Diluvio... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
“Cão!... serás meu esposo bem amado...
— Serei tua Eloá...”

Deste este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O Anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas
E o nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — judeu maldito —
Trilho da perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão!...

Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou da minha fonte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
— Condor que transforma-se em abutre
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vi irmãos outrora
Venderam seu irmão.

Basta, senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!...
Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito
Meu Deus! Senhor, meu Deus!...

S. Paulo, 11 de junho de 1868.

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