sábado, 18 de janeiro de 2020

Dostoievski e o "direito ao crime"

Dostoievski e o "direito ao crime"

 

Um dos mais famosos dos seus anti-heróis foi Rodion Raskólhnikov, que defendia a tese de que o homem extraordinário tinha direito ao crime

10 mar 2016 14h27

Praticamente nenhuma das obras maiores do romancista russo Fédor Dostoievski, falecido em 1881, visava apenas o entretenimento do seu público leitor. Ao contrário. Seus livros, densos, estão repletos com personagens-ideia, tipos humanos dos mais diversos escalões sociais que exprimem não somente sentimentos, como as teorias sócio-políticas e culturais que sacudiam a Rússia do século XIX. Um dos mais famosos dos seus anti-heróis foi Rodion Raskólhnikov, figura central da novela Crime e Castigo, publicada em 1866, que defendia a estranha tese de que o homem extraordinário tinha "direito ao crime".

O assassino intelectual Raskolhnikov
O assassino intelectual Raskolhnikov
Foto: Reprodução
Os embates ideológicos da Rússia Czarista
Um dos mais intensos debates em que a inteligência russa do século XIX se engajou tratava de definir qual destino estava reservado ao grande império dos czares. De um lado alinharam-se junto a Alexander Herzen, um aristocrata liberal que emigrara para a Europa em auto-exílio, os que defendiam o princípio de que a Rússia devia seguir as pegadas dos países europeus mais avançados, importando deles não somente os direitos de liberdade de pensamento e expressão (inexistentes no regime russo), como também suas instituições políticas (fosse a monarquia constitucional de modelo britânico ou a da republica francesa). O programa deles – denominados por isto mesmo de zadponiki, Ocidentalistas, – de certo modo era dar continuidade a política adotada muito tempo antes pelo czar Pedro o Grande, que reinou de 1682 a 1725 e via o porvir da Rússia ligado à Europa e não à Ásia.
Este posicionamento os conduziu de algum modo a menosprezar as tradições e as instituições russas, tais como o Czarado e a Igreja Russo-Ortodoxa, baluartes do atraso e da miséria russa frente aos demais europeus.
Os Ocidentalistas foram desafiados pelos Eslavófilos (particularmente Aksakov, Samarine, Khomyakov, Kireievski, Piotr Tchaadaev e Nikolai Danilevski), intelectuais politicamente ultraconservadores que negavam haver grandes virtudes nas culturas não-russa e que acreditavam ser a nação dos czares portadora de um mensagem messiânica-cristã que não deveria ser contaminada por idéias ou doutrina importadas do estrangeiro.  
Ao contrário, as virtudes russas - consolidadas pela existência da autocracia e pelo Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa - deviam ser exaltadas e não espezinhadas como faziam os Ocidentalistas, (para eles, intelectuais alienados distantes do povo russo).   
Uniam-se ainda os Eslavófilos no seu desprezo pelo direito como contrato, o desprezo pelo liberalismo, o desprezo pelo ocidente, o horror pelo capitalismo. Sentiam-se os escudos da cultura eslava contra o mundo latino-germano que imperava nas fronteiras européias da Rússia.                                        
O povo russo
Até a percepção que tinham dos habitantes das vastas estepes os separava. Os Ocidentalistas, em geral, viam-nos como ‘violentos e selvagens’, uma massa de gente bronca e de poucas luzes, isolada há séculos numa redoma medieval, apartada de seus vizinhos da Europa e que deveria ser integrada nos benefícios da civilização.
Para seus rivais, mesmo que o povo russo não fosse um poço de virtudes, mantinha traços de pureza ainda não contaminada pelos efeitos mais nocivos da modernidade. A aldeia camponesa composta pela izba, a morada do mujique russo, era o exemplo da vida coletiva e fraterna exaltada pelo cristianismo. Em cada vilarejo ou aldeia russa ‘havia tesouros a serem protegidos’.
Permitir que o capitalismo avançasse sobre eles ou que os revolucionários do movimento Narodnaia Volia ( A Vontade do Povo) instigassem os camponeses na implantação de uma sociedade socialista, causaria a destruição da natureza russa. Daquilo que fazia a Rússia ser diferente das demais. Para evitar isso, era fundamental a manutenção da aliança entre o Kremlin, a morada do czar, e a Sobor, a  Catedral(*)
(*) Longe de se encerrar com o fim do século XIX ou a queda do regime czarista em 1917, o confronto entre Ocidentalistas e Eslavófilos prosseguiu no regime comunista, sendo que os primeiros se fizeram representar por Leon Trotski e os segundo por Joseph Stalin, no embate que se deu por ocasião daqueles que defendiam ‘a revolução permanente’ e os que se alinharam a Stalin na política do ‘socialismo num só país’.
Cristianismo contra o egoísmo utilitário
Dostoievski que, quando escritor iniciante, manifestara simpatias pela causa - o que o levou, em 1849, a uma pesada condenação de dez anos na Sibéria, a kátorga - mudara de posição com os anos. Na prisão, experiência que relatou no livro Recordações da casa dos mortos, percebera o enorme abismo que separava a gente miúda delinquente da pequena classe dos instruídos.
Tornou-se um defensor do eslavismo e da Doutrina do Pótchvenitchetsvo, da necessidade dos intelectuais de se reaproximarem do povo, de sentir de perto os dramas que lhe afligiam, entendendo que as ideias trazidas de fora nada de bom faziam pela paz social da Rússia.  
O niilismo, então em moda entre os estudantes e os raznochinets (intelectuais radicais da década de 1860), era algo extremamente nocivo, visto que injetava o veneno da subversão em veias exaltadas.
O resultado da adesão às teorias estrangeiras, particularmente às socialistas, é que os jovens instruídos passavam a devotar um ódio cego ao Czarado e à cultura russa, tida como inferior. Somente uma retomada da fé nos valores do cristianismo ortodoxo e da originalidade do povo russo, assegurava o escritor, poderia deter os efeitos nefastos das novas teorias que não cessavam de penetrar clandestinamente no império do autocrata.
O alvo crítico dele eram as teses de Chernichevski, um pensador socialista utópico que era ídolo dos contestadores. O romancista se opunha firmemente ao conceito de Egoísmo Racional ou utilitário, absorvido de Jeremy Bentham e J.S.Mill,  defendido pelo filósofo russo, que assegurava haver uma reação socialmente positiva, proveitosa e humanitária, quando um indivíduo pensasse somente em si ( pois assim, aquele que se sentisse pessoalmente injustiçado e lutasse por uma reparação, terminaria por alargar o espaço da liberdade coletiva).  
Para Dostoievski a aceitação disto poderia redundar na mais ‘negra iniquidade’, como ocorre com o seu personagem Raskólhnikov que, para satisfazer um anseio egoísta, se converte num assassino.     
Raskólhnikov e o ‘direito ao crime’
É em meio à novela Crime e Castigo (Terceira Parte, cap. V) que o personagem central, o estudante  Raskólhnikov expõe, ainda que resumidamente, um artigo dele que fora publicado numa revista de S.Petersburgo, intitulado Acerca do crime.
Nele defendeu a existência na sociedade, em qualquer uma, de uma Lei da Natureza que determina a existência de dois tipos humanos: os homens comuns e os homens excepcionais. Sendo que estes últimos são limitadíssimos em número: "homens de ideias novas... nascem pouquíssimos, são de uma escassez verdadeiramente estranha".
Para os extraordinários, não valeriam as regras que regem o todo social. Esta grande personalidade, ainda que não encontre a absolvição de seus atos mais nocivos entre a maioria da sociedade, pessoalmente, frente a sua própria consciência, não se sente culpada caso os cometa.
No dizer de Raskolhnikov: "em minha opinião, concedem a si próprio a autorização para saltarem por cima do sangue, atendendo unicamente a teoria e ao seu conteúdo, repare bem".
Este ser fantástico se sente psicológica e moralmente imunizado frente a qualquer dano que possa vir a causar – guerras ou assassinatos - em vista de que seus atos não podem ser julgados ou entendidos pela gente comum ou enquadrados pelas leis costumeiras. Somente a história é quem poderá algum dia absolvê-lo.
Por conseguinte, este soberbo egocêntrico, se coloca acima do bem e do mal. Um Napoleão, por exemplo, não hesitou em sacrificar milhares de vidas para afirmar o seu poder. O que o movia era a certeza de ser alguém excepcional, um ungido pelo destino a lançar-se em feitos e obrigar-se a tarefas espetaculares. Missão que nenhum mortal ordinário poderia sequer imaginar ou sonhar.
Idêntico se aplicaria aos notáveis cientistas. Não teria Kepler ou Newton, por exemplo, o direito – e até o dever - de eliminar aqueles que criariam obstáculos a que o mundo conhecesse suas valiosas descobertas?
A maioria das personalidades históricas de vulto (Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão, etc.), argumentou Raskólhnikov, na verdade, "tinham sido criminosos" por terem abolido as leis antigas outrora sagradas, e certamente não se detiveram frente ao sangue derramado sempre que isto lhes fora útil ou necessário.
O artigo fazia eco, ciente ou não, de uma conhecida passagem existente nas famosas Lições da Filosofia da História Universal de Hegel, onde trás que: "Estes indivíduos históricos, atentos aos seus grandes interesses, trataram sem dúvida de maneira frívola, atropeladamente e sem consideração outros interesses e direitos sagrados, que são por si mesmo dignos de consideração. Sua conduta esta exposta por isso à censura moral. Mas há um outro modo de entender estes homens. Uma grande figura quando caminha, esmaga muitas flores, destrói por força muitas coisas no seu passo.”
Os perigos do abandono do cristianismo
Por ter participado quando jovem do círculo Petrachevski – grupo subversivo que se reunia, entre 1848-9, para fazer leituras de socialistas franceses -, o escritor tinha experiência pessoal de como poderia facilmente, partindo da defesa de uma causa justa, envolver-se numa operação que demandaria violência.  
Ele mesmo percebera a facilidade com a pureza do "genuíno idealismo moral da juventude russa" poderia se perverter, terminando por servir a fins monstruosos. O abandono da ética herdada da Bíblia, que não fazia qualquer concessão a seres humanos extraordinários, para Dostoievski estimulava o desatino e o crime. Ao "rejeitar Cristo, o coração humano pode chegar à incríveis alturas..." nada positivas.
Deste modo, o escritor concluía a sua trajetória ideológica que saltara de um anticzarismo libertário a um messianismo nacionalista, anti-católico, anti-judaico e anti-socialista que acabou por servir de inspiração doutrinária para o situacionismo dos Romanov (Dostoievski chegou a trocar ativa correspondência com o Procurado do Santo Sínodo, o ultra-reacionário Konstantin Pobedonóstsev, que foi, por igual, tutor do czar Alexandre III). (*)
(*) Tal como o escritor, o ministro czarista considerava que a natureza humana é pecaminosa, rejeitar os ideais ocidentais de liberdade e independência como "perigosas ilusões da juventude niilista".
O temor a um novo cisma
De certo modo, as teses de Raskólhnikov, defendidas no artigo Acerca do crime..., viriam embasar tanto a lógica dos regimes fascistas (o mais forte faz a lei e submete os mais fracos a ela) como a do regime stalinista (a implantação de um regime novo implica necessariamente no esmagamento daqueles que se lhe opõe).   
O que Dostoiévski temia, e nisto foi profético, é que as ideologias importadas (o liberalismo, o darwinismo, o utilitarismo, o ateísmo e o socialismo) provocariam fatalmente um imenso cisma na história nacional. O que tinha em mente era evitar algo que ocorrera no passado, na época do czar Alexei Mikhailovich, ocasião em que o Cristianismo Ortodoxo viu-se abalado por uma Reforma Religiosa imposta pelo Patriarca Nikon, inspirada na liturgia grega, em 1653.  
Em reação a ela, deu-se o surgimento o Movimento Raskol, o dos Velhos Crentes (raskolniki, provocadores do cisma), cristãos fundamentalistas, que dividiram de modo inapelável a estrutura religiosa da nação.
Concluiu o escritor que se nada fosse feito para evitar o novo cisma que ganhava forças no país ao longo do século XIX, o Partido Ateu, composto por niilistas, populistas e comunistas, após por abaixo os valores básicos da Velha Rússia (a obediência ao czar e a fé na igreja ortodoxa) tomaria o poder com conseqüências assombrosas e impensáveis.
E, se por acaso, escreveu ele no Diário de um Escritor, os russos aplicassem os ensinamentos daqueles professores ocidentais – ainda que seus objetivos fossem ‘filantrópicos e grandiosos’ – no afã "de destruir a velha sociedade e construí-la de novo, o resultado seria uma tamanha escuridão, tamanho caos, cego e inumano, que toda a estrutura ruiria ao som das maldições da humanidade antes que pudesse ser concluída a tarefa". 

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