Dostoievski e o "direito ao crime"
Um dos mais famosos dos seus anti-heróis foi Rodion Raskólhnikov, que defendia a tese de que o homem extraordinário tinha direito ao crime
10 mar 2016
                            
                            14h27
                        
Praticamente nenhuma das obras maiores do romancista russo Fédor 
Dostoievski, falecido em 1881, visava apenas o entretenimento do seu 
público leitor. Ao contrário. Seus livros, densos, estão repletos com 
personagens-ideia, tipos humanos dos mais diversos escalões sociais que 
exprimem não somente sentimentos, como as teorias sócio-políticas e 
culturais que sacudiam a Rússia do século XIX. Um dos mais famosos dos 
seus anti-heróis foi Rodion Raskólhnikov, figura central da novela Crime e Castigo, publicada em 1866, que defendia a estranha tese de que o homem extraordinário tinha "direito ao crime".
O assassino intelectual Raskolhnikov 
    
Foto: Reprodução
Os embates ideológicos da Rússia Czarista
Um dos mais intensos debates em que a inteligência russa do século XIX 
se engajou tratava de definir qual destino estava reservado ao grande 
império dos czares. De um lado alinharam-se junto a Alexander Herzen, um
 aristocrata liberal que emigrara para a Europa em auto-exílio, os que 
defendiam o princípio de que a Rússia devia seguir as pegadas dos países
 europeus mais avançados, importando deles não somente os direitos de 
liberdade de pensamento e expressão (inexistentes no regime russo), como
 também suas instituições políticas (fosse a monarquia constitucional de
 modelo britânico ou a da republica francesa). O programa deles – 
denominados por isto mesmo de zadponiki, Ocidentalistas, – de certo modo
 era dar continuidade a política adotada muito tempo antes pelo czar 
Pedro o Grande, que reinou de 1682 a 1725 e via o porvir da Rússia 
ligado à Europa e não à Ásia.
Este posicionamento os conduziu de algum modo a menosprezar as 
tradições e as instituições russas, tais como o Czarado e a Igreja 
Russo-Ortodoxa, baluartes do atraso e da miséria russa frente aos demais
 europeus.
Os Ocidentalistas foram desafiados pelos Eslavófilos (particularmente 
Aksakov, Samarine, Khomyakov, Kireievski, Piotr Tchaadaev e Nikolai 
Danilevski), intelectuais politicamente ultraconservadores que negavam 
haver grandes virtudes nas culturas não-russa e que acreditavam ser a 
nação dos czares portadora de um mensagem messiânica-cristã que não 
deveria ser contaminada por idéias ou doutrina importadas do 
estrangeiro.  
Ao contrário, as virtudes russas - consolidadas pela existência da 
autocracia e pelo Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa - deviam ser exaltadas
 e não espezinhadas como faziam os Ocidentalistas, (para eles, 
intelectuais alienados distantes do povo russo).   
Uniam-se ainda os Eslavófilos no seu desprezo pelo direito como 
contrato, o desprezo pelo liberalismo, o desprezo pelo ocidente, o 
horror pelo capitalismo. Sentiam-se os escudos da cultura eslava contra o
 mundo latino-germano que imperava nas fronteiras européias da 
Rússia.                                        
O povo russo
Até a percepção que tinham dos habitantes das vastas estepes os 
separava. Os Ocidentalistas, em geral, viam-nos como ‘violentos e 
selvagens’, uma massa de gente bronca e de poucas luzes, isolada há 
séculos numa redoma medieval, apartada de seus vizinhos da Europa e que 
deveria ser integrada nos benefícios da civilização.
Para seus rivais, mesmo que o povo russo não fosse um poço de virtudes,
 mantinha traços de pureza ainda não contaminada pelos efeitos mais 
nocivos da modernidade. A aldeia camponesa composta pela izba, a morada 
do mujique russo, era o exemplo da vida coletiva e fraterna exaltada 
pelo cristianismo. Em cada vilarejo ou aldeia russa ‘havia tesouros a 
serem protegidos’.
Permitir que o capitalismo avançasse sobre eles ou que os 
revolucionários do movimento Narodnaia Volia ( A Vontade do Povo) 
instigassem os camponeses na implantação de uma sociedade socialista, 
causaria a destruição da natureza russa. Daquilo que fazia a Rússia ser 
diferente das demais. Para evitar isso, era fundamental a manutenção da 
aliança entre o Kremlin, a morada do czar, e a Sobor, a  Catedral(*)
(*) Longe de se encerrar com o fim do século XIX ou a queda do regime 
czarista em 1917, o confronto entre Ocidentalistas e Eslavófilos 
prosseguiu no regime comunista, sendo que os primeiros se fizeram 
representar por Leon Trotski e os segundo por Joseph Stalin, no embate 
que se deu por ocasião daqueles que defendiam ‘a revolução permanente’ e
 os que se alinharam a Stalin na política do ‘socialismo num só país’.
Cristianismo contra o egoísmo utilitário
Dostoievski que, quando escritor iniciante, manifestara simpatias pela 
causa - o que o levou, em 1849, a uma pesada condenação de dez anos na 
Sibéria, a kátorga - mudara de posição com os anos. Na prisão, 
experiência que relatou no livro Recordações da casa dos mortos, percebera o enorme abismo que separava a gente miúda delinquente da pequena classe dos instruídos.
Tornou-se um defensor do eslavismo e da Doutrina do Pótchvenitchetsvo, 
da necessidade dos intelectuais de se reaproximarem do povo, de sentir 
de perto os dramas que lhe afligiam, entendendo que as ideias trazidas 
de fora nada de bom faziam pela paz social da Rússia.  
O niilismo, então em moda entre os estudantes e os raznochinets 
(intelectuais radicais da década de 1860), era algo extremamente nocivo,
 visto que injetava o veneno da subversão em veias exaltadas.
O resultado da adesão às teorias estrangeiras, particularmente às 
socialistas, é que os jovens instruídos passavam a devotar um ódio cego 
ao Czarado e à cultura russa, tida como inferior. Somente uma retomada 
da fé nos valores do cristianismo ortodoxo e da originalidade do povo 
russo, assegurava o escritor, poderia deter os efeitos nefastos das 
novas teorias que não cessavam de penetrar clandestinamente no império 
do autocrata.
O alvo crítico dele eram as teses de Chernichevski, um pensador 
socialista utópico que era ídolo dos contestadores. O romancista se 
opunha firmemente ao conceito de Egoísmo Racional ou utilitário, 
absorvido de Jeremy Bentham e J.S.Mill,  defendido pelo filósofo russo, 
que assegurava haver uma reação socialmente positiva, proveitosa e 
humanitária, quando um indivíduo pensasse somente em si ( pois 
assim, aquele que se sentisse pessoalmente injustiçado e lutasse por uma
 reparação, terminaria por alargar o espaço da liberdade coletiva).  
Para Dostoievski a aceitação disto poderia redundar na mais ‘negra 
iniquidade’, como ocorre com o seu personagem Raskólhnikov que, para 
satisfazer um anseio egoísta, se converte num assassino.     
Raskólhnikov e o ‘direito ao crime’
É em meio à novela Crime e Castigo (Terceira Parte, cap. V) 
que o personagem central, o estudante  Raskólhnikov expõe, ainda que 
resumidamente, um artigo dele que fora publicado numa revista de 
S.Petersburgo, intitulado Acerca do crime.
Nele defendeu a existência na sociedade, em qualquer uma, de uma Lei da
 Natureza que determina a existência de dois tipos humanos: os homens 
comuns e os homens excepcionais. Sendo que estes últimos são 
limitadíssimos em número: "homens de ideias novas... nascem 
pouquíssimos, são de uma escassez verdadeiramente estranha".
Para os extraordinários, não valeriam as regras que regem o todo 
social. Esta grande personalidade, ainda que não encontre a absolvição 
de seus atos mais nocivos entre a maioria da sociedade, pessoalmente, 
frente a sua própria consciência, não se sente culpada caso os cometa.
No dizer de Raskolhnikov: "em minha opinião, concedem a si próprio a 
autorização para saltarem por cima do sangue, atendendo unicamente a 
teoria e ao seu conteúdo, repare bem".
Este ser fantástico se sente psicológica e moralmente imunizado frente a
 qualquer dano que possa vir a causar – guerras ou assassinatos - em 
vista de que seus atos não podem ser julgados ou entendidos pela gente 
comum ou enquadrados pelas leis costumeiras. Somente a história é quem 
poderá algum dia absolvê-lo.
Por conseguinte, este soberbo egocêntrico, se coloca acima do bem e do 
mal. Um Napoleão, por exemplo, não hesitou em sacrificar milhares de 
vidas para afirmar o seu poder. O que o movia era a certeza de ser 
alguém excepcional, um ungido pelo destino a lançar-se em feitos e 
obrigar-se a tarefas espetaculares. Missão que nenhum mortal ordinário 
poderia sequer imaginar ou sonhar.
Idêntico se aplicaria aos notáveis cientistas. Não teria Kepler ou 
Newton, por exemplo, o direito – e até o dever - de eliminar aqueles que
 criariam obstáculos a que o mundo conhecesse suas valiosas descobertas?
A maioria das personalidades históricas de vulto (Licurgo, Sólon, 
Maomé, Napoleão, etc.), argumentou Raskólhnikov, na verdade, "tinham 
sido criminosos" por terem abolido as leis antigas outrora sagradas, e 
certamente não se detiveram frente ao sangue derramado sempre que isto 
lhes fora útil ou necessário.
O artigo fazia eco, ciente ou não, de uma conhecida passagem existente 
nas famosas Lições da Filosofia da História Universal de Hegel, onde 
trás que: "Estes indivíduos históricos, atentos aos seus grandes 
interesses, trataram sem dúvida de maneira frívola, atropeladamente e 
sem consideração outros interesses e direitos sagrados, que são por si 
mesmo dignos de consideração. Sua conduta esta exposta por isso à 
censura moral. Mas há um outro modo de entender estes homens. Uma grande
 figura quando caminha, esmaga muitas flores, destrói por força muitas 
coisas no seu passo.”
Os perigos do abandono do cristianismo
Por ter participado quando jovem do círculo Petrachevski – grupo 
subversivo que se reunia, entre 1848-9, para fazer leituras de 
socialistas franceses -, o escritor tinha experiência pessoal de como 
poderia facilmente, partindo da defesa de uma causa justa, envolver-se 
numa operação que demandaria violência.  
Ele mesmo percebera a facilidade com a pureza do "genuíno idealismo 
moral da juventude russa" poderia se perverter, terminando por servir a 
fins monstruosos. O abandono da ética herdada da Bíblia, que não fazia 
qualquer concessão a seres humanos extraordinários, para Dostoievski 
estimulava o desatino e o crime. Ao "rejeitar Cristo, o coração humano 
pode chegar à incríveis alturas..." nada positivas.
Deste modo, o escritor concluía a sua trajetória ideológica que saltara
 de um anticzarismo libertário a um messianismo nacionalista, 
anti-católico, anti-judaico e anti-socialista que acabou por servir de 
inspiração doutrinária para o situacionismo dos Romanov (Dostoievski 
chegou a trocar ativa correspondência com o Procurado do Santo Sínodo, o
 ultra-reacionário Konstantin Pobedonóstsev, que foi, por igual, tutor 
do czar Alexandre III). (*)
(*) Tal como o escritor, o ministro czarista considerava que a natureza
 humana é pecaminosa, rejeitar os ideais ocidentais de liberdade e 
independência como "perigosas ilusões da juventude niilista".
O temor a um novo cisma
De certo modo, as teses de Raskólhnikov, defendidas no artigo Acerca do crime...,
 viriam embasar tanto a lógica dos regimes fascistas (o mais forte faz a
 lei e submete os mais fracos a ela) como a do regime stalinista (a 
implantação de um regime novo implica necessariamente no esmagamento 
daqueles que se lhe opõe).   
O que Dostoiévski temia, e nisto foi profético, é que as ideologias 
importadas (o liberalismo, o darwinismo, o utilitarismo, o ateísmo e o 
socialismo) provocariam fatalmente um imenso cisma na história nacional.
 O que tinha em mente era evitar algo que ocorrera no passado, na época 
do czar Alexei Mikhailovich, ocasião em que o Cristianismo Ortodoxo 
viu-se abalado por uma Reforma Religiosa imposta pelo Patriarca Nikon, 
inspirada na liturgia grega, em 1653.  
Em reação a ela, deu-se o surgimento o Movimento Raskol, o dos Velhos 
Crentes (raskolniki, provocadores do cisma), cristãos fundamentalistas, 
que dividiram de modo inapelável a estrutura religiosa da nação.
Concluiu o escritor que se nada fosse feito para evitar o novo cisma 
que ganhava forças no país ao longo do século XIX, o Partido Ateu, 
composto por niilistas, populistas e comunistas, após por abaixo os 
valores básicos da Velha Rússia (a obediência ao czar e a fé na igreja 
ortodoxa) tomaria o poder com conseqüências assombrosas e impensáveis.
E, se por acaso, escreveu ele no Diário de um Escritor, os 
russos aplicassem os ensinamentos daqueles professores ocidentais – 
ainda que seus objetivos fossem ‘filantrópicos e grandiosos’ – no afã 
"de destruir a velha sociedade e construí-la de novo, o resultado seria 
uma tamanha escuridão, tamanho caos, cego e inumano, que toda a 
estrutura ruiria ao som das maldições da humanidade antes que pudesse 
ser concluída a tarefa". 
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