Karajan: os 100 anos de um regente controverso
A indústria fonográfica celebra o centenário do regente
como se ele ainda estivesse vivo. Amado e odiado ao extremo, o
austríaco Herbert von Karajan corporificou à perfeição a figura do
maestro onipotente.
"Ele tem o poder de vida e morte sobre as vozes dos instrumentos;
alguém há muito silencioso falará novamente, sob o seu comando. O
aplauso que recebe é a antiga saudação ao vencedor, e a dimensão de sua
vitória é medida por seu volume. Fora isto, nada conta; tudo o que a
vida de outros homens contém é transformado para ele em vitória ou
derrota."
Esta citação, do livro do filósofo Elias Canetti Massa e poder, descreve a figura do regente como corporificação do poder, "o ditador na esfera estética". E – pelo menos este é o consenso entre seus detratores – a definição parece aplicar-se como uma luva a Herbert von Karajan.
Obedecer sem perguntar
Autoritário, exibicionista, tirânico, ou músico genial? Quase 20 anos após sua morte, o regente austríaco desperta debates acalorados.
Por falar em tirania: inquirido sobre por que preferia reger a Filarmônica de Berlim à de Viena, Karajan respondeu: "Se digo aos berlinenses que dêem um passo à frente, eles dão. Se digo aos vienenses para darem um passo à frente, eles dão. Mas aí perguntam por quê."
A capital alemã agradece: em comemoração póstuma dos 90 anos do músico, a rua Matthäikirchstrasse teve seu nome mudado em 1998. Desde então, o endereço da sala de concertos da Filarmônica de Berlim eterniza aquele que por mais tempo foi seu maestro titular: Herbert von Karajan Strasse 1.
Filiação vantajosa
Heribert Ritter von Karajan nasceu em uma família da alta burguesia de Salzburgo, a 5 de abril de 1908. Menino prodígio, aos 9 anos dava seu primeiro concerto como pianista, no renomado Mozarteum. Em 1929, mal saído do conservatório, já regia a Salomé de Richard Strauss na Festspielhaus da cidade.
Sua já meteórica carreira ganhou um impulso extra em 1935, com o ingresso no Partido Nacional-Socialista (NSDAP). Nesse mesmo ano, foi nomeado generalmusikdirektor – o mais jovem da Alemanha – da cidade de Aachen e fez turnês por diversas capitais européias. Enquanto outros astros do pódio orquestral, como Bruno Walter e Arturo Toscanini, abandonavam a Europa fascista, Karajan se beneficiava com a associação ao regime nazista.
Três anos mais tarde, regia a Filarmônica de Berlim pela primeira vez e fechava contrato com a companhia fonográfica Deutsche Grammophon, a que permaneceu fiel por quase toda a longa carreira. Sua primeira gravação foi a abertura de A flauta mágica, de Mozart, à frente da Staatskapelle Berlin.
Apesar de haver desagradado pessoalmente a Adolf Hitler com uma récita desastrosa de Os mestres cantores de Nurembergue, de Wagner, o favoritismo de Hermann Göring – então primeiro-ministro da Prússia e superintendente da Ópera Nacional de Berlim – o manteve em posição privilegiada. O perfeccionismo, a determinação e o rigor, a aura de gênio e até mesmo a aparência de viril galã do jovem Karajan vinham ao pleno encontro da ideologia nazista.
Carreirismo ou convicção?
Os críticos mais impiedosos de Herbert von Karajan não lhe "concedem" nem mesmo o carreirismo como justificativa para a associação ao NSDAP: o maestro simplesmente haveria sido um nazista convicto. Prova disso seria o timing de sua dupla filiação ao partido.
O alistamento em 1935 fora precondição incontornável para a nomeação em Aachen. Porém, como assinala Karsten Kammholz, do jornal Berliner Morgenpost: dois anos antes – e cinco antes de a Áustria ser anexada por Hitler – ele já entrara para o NSDAP em Salzburgo. Porém esta primeira filiação foi cancelada por irregularidades no pagamento das mensalidades.
Kammholz apresenta mais um argumento: ao ser dispensado do cargo de generalmusikdirektor em 1941 – supostamente por estar pouco presente em Aachen – Karajan insistiu em servir ao regime de outro modo. Em plena Segunda Guerra Mundial, inscreveu-se para uma formação como piloto de batalha. Foi contudo, rejeitado, devido à idade.
O céu como limite
Terminada a guerra, o processo de desnazificação de Karajan foi lento. Embora exonerado na Áustria em 1946, a candidatura para a Orquestra Filarmônica de Hamburgo foi recusada em 1949, já que o processo austríaco não era reconhecido na Alemanha. A correspondência das autoridades norte-americanas encarregadas dos trâmites não deixa dúvidas: "nazista ardoroso".
Somente a criação da República Federal da Alemanha, um ano mais tarde, desbloqueou a carreira pós-guerra de Karajan. A partir daí, sua ascensão foi irresistível. Semideus, ícone midiático, cuja imagem vendia tanto ou mais do que sua música, ele não se limitou ao poço da orquestra, arvorando-se até mesmo em diretor cênico de diversas óperas, com sucesso questionável.
Ao mesmo tempo, arrogante e com empedernimento digno de uma Leni Riefenstahl, o maestro dispensava sumariamente qualquer referência pública a seu passado político como mera reação de inveja impotente.
O "som Karajan"
Certamente algumas portas se fecharam: músicos judeus do primeiro escalão, como Isaac Stern ou Arthur Rubinstein, se recusaram a tocar sob sua regência. A própria Filarmônica de Berlim – da qual fora apontado titular vitalício já em 1955 – só pôde se apresentar em Israel após a morte do regente, em 16 de julho de 1989.
Porém Herbert von Karajan não foi alvo somente de críticas ético-políticas ou mesmo pessoais – sua vida amorosa, seus cachês astronômicos, a paixão por carros e pelo luxo em geral.
Seu estilo de regência – ao mesmo tempo exibicionista e intenso, afetado e introvertido – foi muitas vezes ridicularizado. De fato: as últimas gravações em vídeo mostram o maestro quase sempre de olhos fechados, alienado da orquestra e da partitura, como se a música que se ouve fluísse diretamente de sua mente.
A própria "sonoridade Karajan", voluptuosa, aveludada e ultrapolida – ou pré-fabricada e artificial, como querem alguns – também é freqüentemente comparada, de forma desvantajosa, às escolhas estéticas de outros maestros: menos perfeccionistas, porém mais "verdadeiros", mais dispostos ao risco.
De volta do além?
Doa a quem doer, e sobretudo por ocasião de seu centenário, Karajan continua vivo: ícone, virtuose, playboy, astro pop, best-seller da música clássica. Ou, como Ivan Hewett, redator musical do britânico Daily Telegraph, prefere descrever o fenômeno:
"Algo de tenebroso está acontecendo no mundo da música clássica.
[...] Súbito, aqueles olhos cerrados em êxtase, aqueles saltitantes cachos grisalhos e aquela mandíbula trancada pareciam estar em todo lugar.
Era como se Herbert von Karajan – antigo nazista, o mais tirânico, vilificado e prodigamente remunerado regente da história – houvesse retornado dos mortos.
Francamente, eu não duvidaria que o velho demônio seja capaz de tal coisa. Antes de morrer, em 1989, Karajan falara em ser preservado criogenicamente, a fim de ser ressuscitado em alguma data futura. E esse homem sempre conseguiu o que queria."
Esta citação, do livro do filósofo Elias Canetti Massa e poder, descreve a figura do regente como corporificação do poder, "o ditador na esfera estética". E – pelo menos este é o consenso entre seus detratores – a definição parece aplicar-se como uma luva a Herbert von Karajan.
Obedecer sem perguntar
Autoritário, exibicionista, tirânico, ou músico genial? Quase 20 anos após sua morte, o regente austríaco desperta debates acalorados.
Por falar em tirania: inquirido sobre por que preferia reger a Filarmônica de Berlim à de Viena, Karajan respondeu: "Se digo aos berlinenses que dêem um passo à frente, eles dão. Se digo aos vienenses para darem um passo à frente, eles dão. Mas aí perguntam por quê."
A capital alemã agradece: em comemoração póstuma dos 90 anos do músico, a rua Matthäikirchstrasse teve seu nome mudado em 1998. Desde então, o endereço da sala de concertos da Filarmônica de Berlim eterniza aquele que por mais tempo foi seu maestro titular: Herbert von Karajan Strasse 1.
Filiação vantajosa
Heribert Ritter von Karajan nasceu em uma família da alta burguesia de Salzburgo, a 5 de abril de 1908. Menino prodígio, aos 9 anos dava seu primeiro concerto como pianista, no renomado Mozarteum. Em 1929, mal saído do conservatório, já regia a Salomé de Richard Strauss na Festspielhaus da cidade.
Sua já meteórica carreira ganhou um impulso extra em 1935, com o ingresso no Partido Nacional-Socialista (NSDAP). Nesse mesmo ano, foi nomeado generalmusikdirektor – o mais jovem da Alemanha – da cidade de Aachen e fez turnês por diversas capitais européias. Enquanto outros astros do pódio orquestral, como Bruno Walter e Arturo Toscanini, abandonavam a Europa fascista, Karajan se beneficiava com a associação ao regime nazista.
Três anos mais tarde, regia a Filarmônica de Berlim pela primeira vez e fechava contrato com a companhia fonográfica Deutsche Grammophon, a que permaneceu fiel por quase toda a longa carreira. Sua primeira gravação foi a abertura de A flauta mágica, de Mozart, à frente da Staatskapelle Berlin.
Apesar de haver desagradado pessoalmente a Adolf Hitler com uma récita desastrosa de Os mestres cantores de Nurembergue, de Wagner, o favoritismo de Hermann Göring – então primeiro-ministro da Prússia e superintendente da Ópera Nacional de Berlim – o manteve em posição privilegiada. O perfeccionismo, a determinação e o rigor, a aura de gênio e até mesmo a aparência de viril galã do jovem Karajan vinham ao pleno encontro da ideologia nazista.
Carreirismo ou convicção?
Os críticos mais impiedosos de Herbert von Karajan não lhe "concedem" nem mesmo o carreirismo como justificativa para a associação ao NSDAP: o maestro simplesmente haveria sido um nazista convicto. Prova disso seria o timing de sua dupla filiação ao partido.
O alistamento em 1935 fora precondição incontornável para a nomeação em Aachen. Porém, como assinala Karsten Kammholz, do jornal Berliner Morgenpost: dois anos antes – e cinco antes de a Áustria ser anexada por Hitler – ele já entrara para o NSDAP em Salzburgo. Porém esta primeira filiação foi cancelada por irregularidades no pagamento das mensalidades.
Kammholz apresenta mais um argumento: ao ser dispensado do cargo de generalmusikdirektor em 1941 – supostamente por estar pouco presente em Aachen – Karajan insistiu em servir ao regime de outro modo. Em plena Segunda Guerra Mundial, inscreveu-se para uma formação como piloto de batalha. Foi contudo, rejeitado, devido à idade.
O céu como limite
Terminada a guerra, o processo de desnazificação de Karajan foi lento. Embora exonerado na Áustria em 1946, a candidatura para a Orquestra Filarmônica de Hamburgo foi recusada em 1949, já que o processo austríaco não era reconhecido na Alemanha. A correspondência das autoridades norte-americanas encarregadas dos trâmites não deixa dúvidas: "nazista ardoroso".
Somente a criação da República Federal da Alemanha, um ano mais tarde, desbloqueou a carreira pós-guerra de Karajan. A partir daí, sua ascensão foi irresistível. Semideus, ícone midiático, cuja imagem vendia tanto ou mais do que sua música, ele não se limitou ao poço da orquestra, arvorando-se até mesmo em diretor cênico de diversas óperas, com sucesso questionável.
Ao mesmo tempo, arrogante e com empedernimento digno de uma Leni Riefenstahl, o maestro dispensava sumariamente qualquer referência pública a seu passado político como mera reação de inveja impotente.
O "som Karajan"
Certamente algumas portas se fecharam: músicos judeus do primeiro escalão, como Isaac Stern ou Arthur Rubinstein, se recusaram a tocar sob sua regência. A própria Filarmônica de Berlim – da qual fora apontado titular vitalício já em 1955 – só pôde se apresentar em Israel após a morte do regente, em 16 de julho de 1989.
Porém Herbert von Karajan não foi alvo somente de críticas ético-políticas ou mesmo pessoais – sua vida amorosa, seus cachês astronômicos, a paixão por carros e pelo luxo em geral.
Seu estilo de regência – ao mesmo tempo exibicionista e intenso, afetado e introvertido – foi muitas vezes ridicularizado. De fato: as últimas gravações em vídeo mostram o maestro quase sempre de olhos fechados, alienado da orquestra e da partitura, como se a música que se ouve fluísse diretamente de sua mente.
A própria "sonoridade Karajan", voluptuosa, aveludada e ultrapolida – ou pré-fabricada e artificial, como querem alguns – também é freqüentemente comparada, de forma desvantajosa, às escolhas estéticas de outros maestros: menos perfeccionistas, porém mais "verdadeiros", mais dispostos ao risco.
De volta do além?
Doa a quem doer, e sobretudo por ocasião de seu centenário, Karajan continua vivo: ícone, virtuose, playboy, astro pop, best-seller da música clássica. Ou, como Ivan Hewett, redator musical do britânico Daily Telegraph, prefere descrever o fenômeno:
"Algo de tenebroso está acontecendo no mundo da música clássica.
[...] Súbito, aqueles olhos cerrados em êxtase, aqueles saltitantes cachos grisalhos e aquela mandíbula trancada pareciam estar em todo lugar.
Era como se Herbert von Karajan – antigo nazista, o mais tirânico, vilificado e prodigamente remunerado regente da história – houvesse retornado dos mortos.
Francamente, eu não duvidaria que o velho demônio seja capaz de tal coisa. Antes de morrer, em 1989, Karajan falara em ser preservado criogenicamente, a fim de ser ressuscitado em alguma data futura. E esse homem sempre conseguiu o que queria."
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