Ferreira Gullar e o "Poema sujo"
14 de Dezembro de 2016 às 18:04
Estava em casa, no último dia 4, quando fiquei sabendo da morte de Ferreira Gullar. Dois meses antes, estávamos na livraria Leonardo da Vinci, no Centro do Rio, para uma conversa em torno da nova edição do seu livro mais conhecido, o Poema sujo. Por mais de uma hora, diante de uma plateia lotada, Gullar falou com lucidez e energia sobre o livro, escrito quando ele vivia um exílio angustiante em Buenos Aires. Concebido como um “testemunho final” por um autor que temia de uma hora pra outra sumir, como tantas pessoas estavam sumindo na América Latina, o Poema sujo detonou um movimento pelo retorno de Gullar ao Brasil. A comoção criada pelo livro o estimularia a voltar ao país, em circunstâncias arriscadas, dando fim a um périplo de seis anos no exílio. Quatro décadas depois, o Poema sujo acabaria marcando também uma despedida, naquele lançamento derradeiro no dia 6 de outubro.
Depois de receber a notícia, abri o computador e entrei no Facebook para encontrar, como esperado, minha timeline tomada de posts sobre o poeta. Alguns com previsível má-vontade diante de suas posições políticas nos últimos anos de vida, outros ponderando com mais cuidado a relação entre seu articulismo e seus versos, muitos publicando poemas seus ou lembrando as circunstâncias em que tinham tomado contato com a sua obra pela primeira vez. Um memorial coletivo e fragmentário que fazia pensar no “espanto” que Gullar insistia estar na origem de seus versos.
Como observaram diversos críticos, a memória não é no Poema sujo um simples procedimento de recuperação de dados estáticos, mas um movimento que afeta a própria matéria por meio da qual se realiza, fazendo da redescoberta de uma impressão antiga um ato que é sempre transformador, em vez de meramente reiterativo. Uma dinâmica que poderia descrever não apenas o efeito produzido por essa volta coletiva aos poemas ocasionada pela morte de Gullar, mas o próprio sentido do retorno reiterado, por parte da crítica, a um livro já tão esquadrinhado e discutido quanto o Poema sujo.
É comum, no entanto, que esses “retornos críticos” a uma obra canônica se realizem como repetição cautelosa do já dito, produzindo uma enorme massa de variações microscópicas em torno dos mesmos motivos. O medo de fazer algo do tipo, e o esforço para dar conta de uma fortuna crítica que parece crescer mais rápido do que o estudo é capaz de avançar, me levariam nos últimos anos a protelar repetidas vezes o projeto de escrever um texto sobre o Poema sujo. Em vez de postar também um poema e tomar parte no luto coletivo, fechei o computador e fiquei pensando nos motivos que haviam me levado, anos atrás, a elaborar um malogrado plano de estudos sobre o livro.
Ao recordar a vida de Gullar em São Luís, o Poema sujo realiza um movimento duplo. Se pretende tornar mais uma vez presente aquele mundo remoto, ainda que apenas na duração breve do relâmpago que “clareia os continentes passados”, também assinala uma série de ausências irrecuperáveis, por meio de imagens que conferem ao tempo um sentido corrosivo. A ferrugem nos talheres, todo tipo de objeto empenado (“garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas”), as telhas da casa encardidas, o limo e o musgo encobrindo as construções. O passado volta numa torrente, ainda vivo (“a vida a explodir por todas as fendas da cidade”), mas traz também a recordação do ritmo lento, quase imóvel, do dia a dia na província – num bairro pobre, a agonia de uma noite espessa, que não passa (“estendida/ como graxa/ por quilômetros de mangue/ a noite alta”); a imagem de um rio que apodrece; na quitanda de seu pai, a pasmaceira de um tempo que se acumula (“tudo estava parado/ na mesma imobilidade branca/ do fubá dentro do depósito”); ou ainda “o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa janela”.
A recordação da juventude é também um inventário de coisas perdidas. Há uma gravação que captura bem essa condição dupla e contraditória do livro. É uma leitura integral do Poema sujo realizada por Gullar em 2005 e lançada em DVD pelo Instituto Moreira Salles. A leitura dura pouco mais de uma hora, mas (à maneira do que acontece no livro) são diversos os tempos que essa hora contém – a infância que o poema recorda, a velhice do poeta que faz a leitura, os anos de exílio que o livro de algum modo captura e ajudou a encerrar. Algumas pausas e equívocos, preservados no corte final, sugerem que também alguma coisa do poema que está sendo lido poderia se perder. Já de saída, não está ali o ritmo plástico criado pela disposição das palavras na página. Mas mesmo as palavras, a ordem dos versos, parecem às vezes escapulir. Em vez de um marco monumental, a realização “bem-acabada” e “definitiva” que desde cedo os comentaristas veriam no livro, o poema assume então um feitio mais frágil. De algum modo, talvez, mais próximo daqueles meses em que ia sendo escrito no exílio. Fazia trinta anos, àquela altura, que Gullar dera por concluído o longo processo de escrita iniciado em maio de 1975, depois descrito por ele, alternadamente, como “aventura”, “viagem”, “enxurrada”.
A gravação no IMS (concebida por Antonio Fernando de Franceschi e coordenada por João Moreira Salles) remete ainda à história acidentada do livro, que chegou pela primeira vez ao Brasil de maneira clandestina. No que é talvez o mais conhecido episódio da mitologia do Poema sujo, Vinicius de Moraes gravou em Buenos Aires e trouxe consigo ao Brasil uma fita em que Gullar fazia a leitura da obra recém-concluída. Um contrabando poético que circularia entre amigos e animaria o editor Ênio Silveira a publicar o livro pela Civilização Brasileira. Até onde se sabe, a fita se perdeu.
Naquele dia, na Leonardo da Vinci, perguntei a Gullar sobre as imagens de envelhecimento recorrentes no Poema sujo. A resposta veio numa sequência que fazia pensar na dicção reiterativa de algumas partes do livro (“mas variados são os modos/ como uma coisa/ está em outra coisa”): “O que estou mostrando no poema é essa coisa da realidade que é a deterioração das coisas. Quer dizer, a constatação de que as coisas acabam, de que as coisas se deterioram, de que as coisas envelhecem, de que as coisas se perdem. Que é uma coisa que a vida te mostra que é.”
Como tantos planos que ficam pelo caminho, a ideia de escrever alguma coisa sobre o Poema sujo nunca foi adiante. De um amigo solidário, a quem falei uma vez desses adiamentos reiterados, recebi por e-mail, algum tempo depois, um texto do filósofo italiano Giorgio Agamben. “Pra ler na hora do desespero”, dizia a mensagem. Nesse mini-ensaio incluído em seu livro "Ideia da prosa", Agamben fala sobre o estudo, definido por ele como algo “em si mesmo interminável”, que “não só não pode ter fim, como também não o quer ter”. Ao comentar o termo latino studium, raiz da palavra “estudo”, ele o aproxima inesperadamente de “espanto”, palavra da predileção de Gullar:
Ela remonta a uma raiz st- ou sp-, que designa o embate, o choque. Estudo e espanto (studiare e stupire) são, pois, aparentados neste sentido: aquele que estuda encontra-se no estado de quem recebeu um choque e fica estupefacto diante daquilo que o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até o fim, como de se libertar delas. Aquele que estuda fica, portanto, sempre um pouco estúpido, atarantado.
Talvez por conta das circunstâncias, essa ideia me voltou à cabeça esses dias como uma descrição possível do processo de luto. Também a morte alheia desencadeia em nós um ensaio potencialmente infinito de realização de qualquer coisa elusiva. Um percurso atarantado em torno de algo que escapa aos nossos projetos, pois nunca está onde esperamos encontrá-lo. Esse aturdimento, um espanto de outro tipo, tem para os leitores de um autor falecido um desdobramento diverso. Como escreveu W. H. Auden num poema conhecido sobre a morte do poeta irlandês William Butler Yeats, em alguma medida o escritor se torna seus admiradores, espalhado em centenas de cidades, as palavras de um homem morto modificadas nas entranhas dos vivos.
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