Quem foi o psicanalista Jacques Lacan?
Jacques Lacan é um dos principais nomes no estudo e na intriga da psicanálise no mundo da ciência e da própria filosofia, estando envolvido nas correntes de intelectuais que nasceram e viveram em França nos anos 50 e 60. Controverso e diverso no seu pensamento, o seu trabalho conceptual e investigativo chegou aos ouvidos e olhos de vários, influindo até naqueles que hoje se afirmam como os principais pensadores da atualidade. A sua visão da psicanálise é voltada para um regresso (crítico) aos postulados de Sigmund Freud, mesmo sem descartar a linguística de Ferdinand de Saussure e a filosofia de Georg Friedrich Hegel. Dos seus estudos, ensaios e palestras, nasceu o próprio Lacanismo, onde está consagrada a sua visão científica e filosófica da psicanálise, do estudo do ser e da própria realidade.
A influência (e as diferenças) de Freud
Jacques Marie Émile Lacan nasceu a 13 de abril de 1901, na cidade francesa de Paris. A sua formação académica e profissional decorreu sempre à luz dos documentos originais onde constam os conceitos e as propostas do austríaco Sigmund Freud. Essa abordagem levou-o a discordar da visão tripartida da mente freudiana, procurando voltar-se para a teoria da relação dos objetos na teoria da psicanálise, influenciada pela visão psicodinâmica (introduzida também por Freud e que estuda as forças psicológicas que influenciam o comportamento e o crescimento humano).
O foco vai também para o desenvolvimento infantil, embora se concentre na construção da psique na relação com os outros, em essencial com a família. Isto formula, assim, em grande parte a forma como se relaciona com a sociedade e os seus diversos constituintes. Um exemplo concreto disto é um adulto que tenha experienciado situações negativas na sua infância e que espera que se repitam na sua idade adulta. Estas imagens tornam-se os tais objetos, que, de forma inconsciente, acompanham o ser humano até à plena fase do seu amadurecimento. Os objetos acabam por funcionar como uma espécie de previdentes quanto àquilo que o outro irá proporcionar ao eu. Estes representam, assim, imagens apreendidas dos agentes educacionais de cada sujeito, e influenciam indelevelmente o presente e o futuro.
Também à luz disso, Lacan analisou o próprio conceito de objeto transitório, popularizado pelo inglês Donald Woods Winnicott, consistindo num que é capaz de transmitir conforto em situações perturbadoras ou instáveis às crianças. Acredita-se que é desta fixação pelo elemento que traz paz num momento de agitação que tem raízes o fetichismo. Estes conceitos foram questionados, assim como todos aqueles que foram estudados no período entre 1930 e 1980, e que se cruzaram com as próprias visões do francês.
Assim, Lacan, e partilhando a base conceptual de Freud, começa por refutá-la quando assume a própria interpretação dos sonhos como uma constituição subjetiva, estando o inconsciente disposto como uma língua. Assim, assume o próprio inconsciente como uma formação complexa e sofisticada, comparando-se à própria consciência. No entanto, o ser, perante a constituição da inconsciência, acaba por estar impedido de estabelecer pontos de referência perante crises, fobias ou traumas e a respetiva recuperação.
O estado do espelho
O primeiro grande conceito introduzido por Lacan no seio da psicanálise foi este “estado do espelho“, proeminente na formação do eu no âmbito do estudo e da experiência psicanalítica. Providencial na infância, este estado diz respeito a um fenómeno no qual a criança se torna consciente daquilo que é, à luz da dualidade corpo-imagem, responsabilizando-se pelos primeiros conflitos no seio desta. Um destes é precisamente a alienação, onde se confrontam a experiência emocional e a aparência da criança, e onde os primeiros “méconnaissances” se vão dando, em que o imaginário tem as suas próprias formulações. Esta etapa é, também, a primeira da formação do ego, através da objetificação do corpo. O choque entre os movimentos ainda desordenados com a imagem que é observada no espelho acaba por desencadear uma fragmentação na própria interpretação que alcança o ego, em que a identificação com aquilo que vê é responsável pela superação desta problemática. No entanto, a comparação que vai estabelecendo com a imagem consolidada da mãe ou do pai – o outro – pode também gerar alguma ira no seio da própria criança. No fundo, o “estado do espelho” é decisiva para aquilo que é a tomada de conhecimento da criança com o seu corpo e a eventual identificação com a sua estrutura física, levando à formação do sentido integrado e completo do eu.
O outro
O francês, na conceção do outro, diverge da noção que Freud empreendeu, e aproxima-se daquela que o filósofo alemão Georg Hegel apregoou. O piscanalista destrinçava dois tipos de outro, em que um era o grande (A) e outro o pequeno (a). Esta diferença permite um melhor posicionamento do eu na realidade, em relação àquele que é o outro em concreto. Assim, e enquanto o grande representa o que se transcende ao ilusório e que não se assimila através da identificação, o pequeno é somente uma reflexo projetado pelo ego, remetido ao imaginário. O discurso constrói-se, desta forma, no outro, podendo assumir-se secundariamente como um assunto enquanto se assume em pleno discurso como tal. O discurso linguístico, assim como a própria linguagem, partem de um lugar fora do próprio consciente e constroem-se a partir do inconsciente, lugar em que o outro se cria e existe. Esta noção referencial está numa cena que transcende aquilo que é visível e plenamente cognoscível, estando nas estruturas assimiladas e recriadas. Este plano linguístico cruza-se com o que o denominado “pai” da Linguística, o suíço Ferdinand de Saussure, conceptualiza. Ainda sobre o outro, é a mãe a primeira a assumir esse papel, a primeira a ouvir os choros do recém-nascido, embora seja também ela parte do complexo de castração, no qual a criança descobre que falta sempre um significante para que o outro se se molde na totalidade. Esta incompletude, analisada numa linguagem simbólica e semiótica, leva a que se denomine de “Outro barrado”, que impede que esse outro vá para além daquilo que o ego perceciona.
O falo
Este ponto da psicanálise de Lacan é aquele que tem gerado mais curiosidade no seio da comunidade feminina, em especial nas teóricas feministas. O que o francês propôs foi articular o haver do homem com o ser da mulher, estando a estas verbalizações associada a presença e o conceito do falo. No entanto, as críticas são permanentes, no sentido em que a tónica do estudo psicanalista volta a girar em torno do falo. Apesar disso, outras pensadoras não descartam a abertura para a discussão dos posicionamentos igualitários e a problematização dos que são impostos pela história e pela cronologia da ciência que Lacan suscita.
As três ordens da psicanálise
O europeu, de forma a poder estruturar com mais minúcia e coerência o seu estudo dentro da própria psicanálise, apresenta três ordens nas quais o indivíduo surge como sujeito ativo e como potencial objeto de estudo. Tudo começa pelo imaginário, onde se reúnem todas as imagens criadas e expectativas associadas. Esta dimensão cruza-se com o supramencionado estado do espelho e que alimenta também o pendor narcisista do eu, estimulado pelo ego. As representações geradas na mente, essencialmente de cariz visual, vão de encontro às estruturas do simbólico, levando à criação da notação linguística.
Lacan considera que, no lado imaginário, a linguagem que prevalece é a mesma que acaba por deturpar aquilo que o outro é, estando associado à relação intrapessoal com o corpo e com a mente. Assim, o simbólico permite descodificar e regularizar aquilo que o imaginário produz, tornando possível uma análise cuidada e precisa quanto à verdadeira identificação do sujeito consigo mesmo. Algo que sustenta esta noção é também a existência dos conceitos de lei e de estrutura, impossíveis de se conferirem sem a própria linguagem, conceitos-chave para regulamentar aquilo que são os desejos internos e os lapsos em relação ao outro.
O lado simbólico acaba por ser o reflexo da cultura em que o ser humano está inserido, ao contrário do reflexo da natureza que o imaginário é. Elementos primordiais do simbólico são a morte e a lacuna, providenciais naquilo que é a deteção de necessidades ou tendências básicas e que podem estar mais ou menos ligadas ao imaginário, sendo que alterações nas estruturas simbólicas não afetam as formulações em bruto deste. Por último, existe o real, onde emana o verdadeiro e o ser-em-si. No entanto, para Lacan, isto não é sinónimo de realidade, estando fora daquilo que são os padrões simbólicos. O real é, sim, um plano onde não existem ausências, estando sempre no seu lugar e não desencandeando as possibilidades da ausência e da inexistência. O gaulês considera o real como “o impossível”, porque é inatingível pela imaginação e incapacitado de ser integrado pelo simbólico. Desta forma, torna-se de impossível alcance, e é precisamente o objeto usado pela ansiedade, ao qual o sujeito não consegue associar palavras nem categorias e, por conseguinte, gerando essa apoquentação.
O desejo
Para a noção de desejo, Lacan resgata a influência do filósofo alemão Hegel e salienta a força continuada que está implícita no desejo, que se localiza no inconsciente e que se torna na principal temática da psicanálise. Tomando como objetivo desta o reconhecimento do desejo por parte de cada um e a verdade subjacente a este, importa, na visão do psicanalista, dar ao desejo uma existência própria, passível de ser identificada e materializada para um discurso linguístico. No entanto, o próprio discurso não consegue inteirar-se de toda a verdade do desejo, deixando sempre algo mais ou menos do que realmente o desejo é.
No entanto, é possível diferenciar o desejo da necessidade e de procura, sendo que a necessidade está ligada ao instinto biológico que depende do outro para ser satisfeita, vindo a procura alicerçar essa ligação entre a biologia e a entrada do outro no processo da satisfação da própria necessidade. O desejo, por sua vez, não procura satisfação ou amor, mas precisamente a diferença entre ambos, na separação entre a satisfação e o amor de proveniência externa. Desta forma, é impossível satisfazer o desejo, estando em constante pressão e concretizando-se somente na sua reprodução como o próprio desejo reconhecido e identificado. As manifestações deste são nomeados como os ímpetos, desencadeados a partir da relação do eu com uma lacuna que existe no seu interior, e que serão explorados de seguida.
Após a delimitação daquilo que é o desejo, a sua noção em concreto é desejar o desejo do outro (Désir de l’Autre), sendo que o objeto em si é o próprio objeto desejado pelo ser humano e, logo, por reconhecimento. Aquilo que, segundo Lacan, torna esse objeto desejável é mesmo ser pretendido por outros. Estando o próprio desejo no campo do outro, está descortinada a razão pela qual ele é inconsciente.
O ímpeto
Num dos pontos em que concorda com Freud, Lacan afasta o ímpeto do instinto, porque o primeiro nunca pode ser satisfeito e permanece como uma espécie de rota para o sujeito seguir até à consolidação do desejo em redor de um dado objeto. Os ímpetos, todos eles de cariz sexual, constituem as bases culturais e simbólicas do desejo, sendo composto pela pressão, pelo fim, pela fonte e pelo objeto, o circuito de condução dos próprios ímpetos. A linguística volta a ser importada e a trazer três vozes na estruturação do circuito, havendo a voz ativa (o ver), a reflexiva (o ver a si mesmo), e a passiva (ser visto). Apesar da presença desta última, o ímpeto é praticamente todo ele ativo, sendo o circuito a única via disponível de ir para além do princípio do mero prazer. Contudo, Lacan volta a divergir de Freud em pontos cruciais, defendendo que ímpetos incompletos não conseguem obter uma organização consolidada, sendo que a sua parcialidade concerne somente uma parte da impulsão sexual. Desta forma, representam apenas aquilo a que se chama de “jouissance” (fruição).
Nesses ímpetos parciais ou incompletos, o gaulês distingue quatro tipos, sendo eles o oral (a zona erógena são os lábios, em relação aos seios), o anal (o ânus, em relação ao expelir das fezes), o escópico (os olhos, em relação ao que vê) e o invocatório (os ouvidos, em relação ao que é dito). Enquanto os primeiros dois derivam daquilo que se definiu como procura, os restantes provêm do desejo. O dualismo que se afasta do psicanalista austríaco (ímpetos sexuais e ímpetos do ego ligados à sobrevivência) mas também é apologista daquilo que é uma ligação entre o imaginário e o simbólico. Lacan conclui com a noção de que todas as pulsões são de morte, por serem excessivas, destrutivas e repetitivas.
Outras considerações
O psicanalista teceu algumas teorias quanto a várias temáticas, entre elas sobre o teor da verdade. Desta feita, Lacan olhou para esta como algo que se vai descobrindo através das estruturas e da devida identificação e orientação do objeto em estudo. Nisto, acaba por beber daquilo que é a noção de paradigma proposta pelo norte-americano Thomas Kuhn, e acredita na existência de uma constelação de valores, técnicas e crenças que se encontra no seio de cada comunidade. Este corpo permite uma aproximação ao que é a verdade, questionando e visualizando a verosimilhança dos diferentes símbolos.
No plano meramente clínico, apresentou a perspetiva de “sessão de psicanálise de tempo variável”, flexibilizando consoante os diferentes casos que lhe passavam pelas mãos e abdicando do previamente fixo de cinquenta minutos (acredita-se que foi uma duração estipulada pelo próprio Freud). O fundamento dessa alteração consistiu em sessões que se alargavam e que eram interrompidas em momentos fulcrais da própria análise do psicanalista. Isso também lhe permitiu analisar mais casos, mais do que quaisquer seguidores da doutrina freudiana.
No que toca ao seu volume escrito, este foi compilado em 1966 pelo francês Jacques-Alain Miller e a própria obra (“Écrits“) tornou-se numa das cem mais influentes do século XX, para o jornal Le Monde. Nos anos 70, a mesma obra foi dividida em dois volumes e parte dela foi traduzida para o inglês – por Alan Sheridan – e publicada em 1977. Para além disso, também no jornal académico “Lacanian Ink” foram divulgados alguns dos postulados do francês, em plena esfera académica norte-americana. O registo é sobejamente diferente daquele que foi empreendido nos seminários e nas palestras dadas, gerando até alguma polémica. Para além disso, torna-se algo impercetível pelas constantes referências a Hegel e ao também filósofo mas franco-russo Alexandre Kojève (estudou a relação entre o mestre e o escravo, com ligações ao estado do espelho e o papel do outro neste), e por uma prosa que se fecha muito nos conceitos científicos e psicoanalíticos.
Apesar do extenso trabalho de Lacan, interessa realçar que parte do seu contributo é mais denotado nas artes e nas humanidades, nomeadamente na literatura e na filosofia (o próprio papel do Outro é amiúde explorado nesta área do saber). Em termos de legados institucionais, destacam-se a escola de Ljubliana, na Eslovénia, e algumas sociedades de psicanálise que incorporam as suas ideias, tanto no Reino Unido como na própria América do Norte.
Jacques Lacan foi, assim, um dos psicanalistas que, não obstante partilhar pontos de partida com Sigmund Freud, assumiu várias dissensões em relação às suas ideias. Ao inconsciente, conferiu uma outra estrutura; ao desejo, uma nova abordagem; ao ser humano, uma nova perspetiva. A psicanálise tomou uma lufada de ar fresco, apesar de não estar imune a críticas vindas dos vários foros da sociedade. Porém, o repertório que os diferentes psicanalistas trazem para a realidade, que os lê, os interpreta e lhes atribui significados e contextos, é seguramente valioso e impossível de passar incólume. Lacan atendeu a pontos importantes e deixados em aberto e, mesmo que não tenha conseguido respostas indiscutíveis a problemas intemporais, não se coibiu de trazer a filosofia, a antropologia e a linguística como disciplinas capazes de secundar este trabalho. De Freud, muitos partiram, mas poucos aqueles que, sem concordar, permanecem como pontes para novas fontes.
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