ÜBER COCA
por Sigmund Freud
Reconhece-se
não somente um exíguo número de trabalhos, artigos e pesquisas
psicanalíticas sobre as toxicomanias, como também um retardo quanto às
contribuições da psicanálise para esta clínica. Poder-se-ia perguntar
sobre quais sejam os determinantes desta constatação. Uma retrospectiva
histórica para buscar, nas origens da psicanálise, qual a relação entre o
aparente desinteresse da psicanálise sobre o tema da toxicomania e a
experiência singular que Freud estabeleceu com a cocaína é a nossa
proposta, ao trazermos, a seguir, o texto de Freud sobre essa droga.
Freud
se interessa pelo produto e inicia suas pesquisas em 1883, após a
leitura de um artigo de Aschenbrandt que descreve o efeito da cocaína em
soldados. Ele a experimentou em si mesmo regularmente, bem como
solicitava que colegas a experimentassem para somar informações a sua
pesquisa.
O
envolvimento de Freud com a cocaína, porém, não ocorreu apenas pelo uso
do produto para obtenção de diferentes efeitos, tais como a
autoconfiança em relação a sua virilidade e o alívio da sinusite. O
motivo que o levou a pesquisar a cocaína relacionava-se ao desejo de
nela encontrar um remédio milagroso, o que viria a destacá-lo na
comunidade científica da sua época.
Freud,
entretanto, mostrava-se ambivalente em relação à cocaína. Ora
pressentia que sua investida podia ser uma ilusão, frente à qual
reservava certa descrença, ora aventurava-se em apostar em uma
perspectiva inovadora, frente a algo desconhecido. Estaria Freud
fascinado com a possibilidade de ter encontrado o produto capaz de
muitas coisas, inclusive de tirá-lo do anonimato e de salvar seu amigo
Fleischl da morfinomania?
Alguns
anos depois, Freud foi acusado por Erlenmeyer de dar vazão à terceira
praga da humanidade, depois do álcool e da morfina. Freud, em defesa
própria, escreve um artigo, redigido em 1887, chamado Observações sobre o
cocainismo e a cocainofobia, no qual reconhece que a utilização da
cocaína para aliviar sintomas da abstinência da morfina resultou no uso
errado da substância e deu aos médicos a oportunidade de descreverem um
novo quadro clínico: a dependência crônica da cocaína. O ensaio, baseado
no parecer de um neuropatologista norte-americano, tenta mostrar que a
dependência da cocaína só se manifesta em sujeitos já viciados em outras
drogas, tais como a morfina, sem que a própria cocaína possa ser
responsabilizada por isso.
Reconhecer
as condições subjetivas, históricas, econômicas e sociais que animaram
as preocupações de Freud naquela época – exatamente em um momento
anterior às formulações propriamente psicanalíticas – é um dos méritos
do texto que se segue.*
* Esta
introdução é parte do texto intitulado “Freud e a toxicamania”, de
Marta Conte, publicado no Correio, número 118, de outubro de 2003.
Julho de 1884
“Do artigo Über Coca, por Sigmund Freud, médico residente do Hospital
Geral
de Viena, publicado na revista Therapie. Em seu primeiro artigo,
brilhantemente escrito, sobre a planta coca, Freud oferece ao leitor uma
profusão de dados sobre a história de sua utilização na América do Sul,
sua difusão na Europa ocidental, seus efeitos sobre homens e animais,
suas diversas utilizações terapêuticas. São relatadas em detalhes as
investigações de numerosos autores. Nessa etapa, há várias alusões
relativas à propriedade anestesiante da droga, e são apresentadas
possibilidades promissoras a esse respeito, mas não é proposta nenhuma
área específica para sua aplicação.
A atitude do autor para com a utilização da coca é favorável e algumas vezes chega a ser entusiástica.
Nos
Adendos que se seguiram ao ensaio, Freud menciona a utilização que
Koller fez da cocaína para anestesiar a córnea em cirurgias oculares,
prática que, desde então, se tornou famosa.”
Anna Freud
I. A PLANTA COCA
A
planta coca, Erythroxylon coca, é um arbusto de cerca de 1,20m a 1,80m
de altura, semelhante ao nosso abrunheiro-bravo. É amplamente cultivada
na América do Sul, em particular no Peru e na Bolívia. Cresce melhor nos
quentes vales das encostas orientais dos Andes, situados 1.500 a 2.000m
acima do nível do mar, em um clima pluvial isento de extremos de
temperatura. As folhas, que fornecem um estimulante indispensável a cerca de dez milhões de pessoas,
têm formato oval, com 5 a 6cm de comprimento, são pedunculadas,
indivisas e pruinosas. Distinguem-se por dois vincos lineares,
especialmente proeminentes na face inferior da folha, que, como nervuras
laterais, margeiam, em um arco uniforme, a nervura mediana da base da
folha até o vértice.* O arbusto dá flores pequenas e brancas, em cachos
laterais de duas ou três, e produz frutos vermelhos, de formato oval.
Pode ser multiplicada por sementes ou mudas. As plantas jovens são
transplantadas após um ano e dão a primeira colheita de folhas após
dezoito meses. As folhas são consideradas maduras quando se tornam tão
rijas que os seus pedúnculos se quebram ao serem tocados.
*
Devo esta descrição ao Prof. Vogl, de Viena, que, muito gentilmente,
colocou à minha disposição seus livros e suas anotações sobre a coca.
Em
seguida, são rapidamente secadas, ao sol ou com o auxílio do fogo, e
costuradas dentro de cestos para o transporte. Em condições favoráveis,
um arbusto de coca fornece anualmente quatro a cinco colheitas de folhas
e continuará a produzir durante trinta a quarenta anos. A produção em
larga escala (segundo se afirma, cerca de 135 mil toneladas anuais) faz
das folhas de coca um artigo de comércio e uma fonte de coleta de
impostos importante nos países onde a planta é cultivada.
II. A HISTÓRIA E OS USOS
DA COCA EM SEU PAÍS DE ORIGEM
Quando
os conquistadores espanhóis invadiram o Peru, descobriram que a planta
coca era cultivada e tida em alta consideração naquele país, estando
intimamente ligada aos costumes religiosos do povo. A lenda afirmava que
Manco Capac, o divino filho do Sol, havia descido dos penhascos do lago
Titicaca em tempos primevos, trazendo a luz de seu pai para os
infelizes habitantes do país; que lhes trouxera o conhecimento dos
deuses, lhes ensinara as artes úteis e lhes dera a folha de coca, essa
planta divina que sacia os famintos, dá força aos débeis, e faz com que
esqueçam os seus infortúnios.
103
As
folhas de coca eram oferecidas em sacrifício aos deuses, mascadas
durante cerimônias religiosas e até mesmo colocadas na boca dos mortos, a
fim de lhes garantir uma recepção favorável no além. O cronista da
conquista espanhola,
ele próprio um descendente dos incas, relata que, a princípio, a coca
era um artigo raro na região, e seu uso uma prerrogativa dos
governantes. À época da conquista, porém, há muito tornara-se acessível a
todos. Garcilaso empenhou-se em defender a coca da interdição que os
conquistadores haviam imposto sobre ela. Os espanhóis não acreditavam
nos efeitos maravilhosos da planta, que desconfiavam ser obra do
demônio, principalmente em virtude do papel que desempenhava no ritual
religioso. Um concílio realizado em Lima chegou a proibir o uso da
planta, sob a alegação de que era pagã e pecaminosa. Essa atitude mudou,
no entanto, quando os conquistadores perceberam que os índios não
conseguiam executar o pesado trabalho que lhes era imposto nas minas se
fossem proibidos de comer coca. Eles transigiram a ponto de distribuir
as folhas aos trabalhadores três ou quatro vezes ao dia, e de lhes
conceder pequenos períodos de intervalo para que mascassem as suas
queridas folhas. E assim a planta coca tem mantido o seu lugar entre os
nativos até os dias de hoje. Mesmo os vestígios da veneração religiosa
que outrora lhe era dirigida ainda permanecem.
Em
suas perambulações, o índio sempre carrega um feixe de folhas de coca
(chamado chuspa), bem como um frasco que contém cinza da planta
(llictaI). Com as folhas, ele molda, na boca, uma bola, que fura várias vezes com um espinho mergulhado na
cinza, e a masca lenta e caprichosamente com abundante secreção de
saliva. Diz-se que, em outras áreas, um tipo de terra, a tonra, é
adicionado às folhas, ao invés da cinza da planta.
Não é considerado exagero mascar de 85 a 115g de folhas por dia.
Segundo Mantegazza, o índio começa a utilizar esse estimulante na
juventude e continua usando-o durante toda a vida. Quando se defronta
com uma viagem difícil, quando possui uma mulher, ou, de um modo geral,
sempre que a sua força é exigida além do normal, ele aumenta a dose
costumeira. (Não está claro o objetivo que se atinge com a mescla do
álcali contido nas cinzas. Mantegazza afirma ter mascado folhas de coca
com e sem llicta e não ter notado qualquer diferença. Segundo Martius e Demarle, a
cocaína, provavelmente contida em composição com o ácido tânico, é
liberada pela ação do álcali. Uma llicta analisada por Bibra consistia
de 29% de carbonato de cal e magnésio, 34% de sais de potássio, 3% de
terra argilosa e ferro, 17% de compostos não solúveis de terra argilosa,
terra silicosa e ferro, 5% de carbono e 10% de água).
Existem
amplos indícios de que, sob o efeito da coca, os índios podem suportar
provações excepcionais e executar trabalhos pesados, sem necessitar de
alimentação adequada durante todo o tempo. Valdez y Palacios afirma
que, com a utilização da coca, os índios são capazes de viajar a pé por
centenas de horas e correr mais depressa que cavalos, sem mostrar
sinais de fadiga. Castelnau, Martius e Scrivener1 confirmam
isso, e Humboldt, a propósito de sua viagem às regiões equatoriais, diz
ser esse um fato comumente conhecido. Cita-se com freqüência o relato
de Tschudi com
relação ao desempenho de um cholo (mestiço) que pôde observar de perto.
O homem em questão realizou um penoso trabalho de escavação durante
cinco dias e cinco noites, sem dormir mais de duas horas por noite, e
não consumiu nada além de coca. Depois que o trabalho estava terminado,
ele acompanhou Tschudi em uma viagem de dois dias, correndo ao lado de
sua mula. Assegurou que de bom grado executaria de novo o mesmo
trabalho, se lhe dessem coca suficiente. O homem tinha sessenta e dois
anos e nunca estivera doente.
Em
Journey of the Frigate ‘Novara’, narram-se exemplos semelhantes de
capacidade física aumentada como resultado da utilização da coca. Wedell, von Meyer, Markham, e mesmo Poeppig (a
quem temos de agradecer por muitos dos relatos caluniosos sobre a coca)
podem apenas confirmar esse efeito da folha, que, desde que se tornou
conhecida, continua sendo uma fonte de assombro para o mundo inteiro.
Outros
relatos acentuam a capacidade dos coqueros (mascadores de coca) de se
abster de alimento por longos períodos de tempo, sem sofrer qualquer
efeito desfavorável. Segundo Unanuè, quando
não havia alimentos disponíveis na cidade sitiada de La Paz, no ano de
1781, só sobreviveram aqueles habitantes que comiam coca. Segundo
Stewenson, os
habitantes de muitos distritos do Peru jejuam, às vezes durantes dias,
e, com o auxílio da coca, são ainda capazes de continuar trabalhando.
Considerando
todos esses testemunhos, e tendo em mente o papel que durante séculos a
coca tem desempenhado na América do Sul, deve-se rejeitar a opinião às
vezes manifestada de que seu efeito é imaginário e que, por força das
circunstâncias e pela prática, os nativos seriam capazes de realizar as
façanhas atribuídas a eles até mesmo sem o seu auxílio. Seria plausível
esperar que se viesse a descobrir, um dia, que os coqueros compensam a
abstinência de alimentos comendo proporcionalmente mais durante os
intervalos entre seus jejuns, ou que, em conseqüência de seu modo de
vida, caem em uma rápida depauperação. Quanto à primeira hipótese, os
relatos dos viajantes são conclusivos; no que se concerne à segunda,
isso tem sido enfaticamente negado por testemunhas fidedignas. Sem
dúvida, Poeppig pintou um quadro terrível da decadência física e
intelectual que se supõe ser a conseqüência inevitável do uso habitual
da coca. Mas todos os outros observadores afirmam que é mais provável
que o uso moderado da coca favoreça a saúde ao invés de debilitá-la, e
que os coqueros vivem até uma idade avançada. No
entanto, também Weddell e Mantegazza salientam que o uso imoderado da
coca leva a uma caquexia que se caracteriza fisicamente por
indisposições digestivas, emaciação etc, e mentalmente por depravação
moral e uma total apatia para com tudo que não esteja relacionado com a
fruição do estimulante. Às vezes os brancos sucumbem igualmente a essa
condição, que muito se assemelha aos sintomas do alcoolismo crônico e do
vício da morfina. A coca não é ingerida em quantidades absolutamente
imoderadas e nunca com uma desproporção presumível entre o alimento
ingerido e o trabalho realizado pelos coqueros.
III. AS FOLHAS DE COCA NA EUROPA – A COCAÍNA
Segundo Dowdeswell, a
mais antiga recomendação da coca consta de um ensaio do Dr. Monardes
(Sevilha, 1569), publicado em tradução para o inglês em 1596. Da mesma
forma que os relatos posteriores do padre jesuíta Antonio Julian e do Dr. Pedro Crespo, ambos
de Lima, o ensaio de Monardes louva o efeito prodigioso da planta no
combate à fome e à fadiga. Os dois primeiros autores tinham grandes
esperanças em relação à introdução da coca na Europa. Em 1749, a planta
foi trazida para a Europa. Foi descrita por A. L. de Jussieu e
classificada no gênero Erythroxylon. Em 1786, apareceu na Encyclopédie
méthodique botanique, de Lamarck, sob o nome de Erythroxylon coca.
Relatos de viajantes como Tschudi e Markham, entre outros, forneceram
provas de que o efeito das folhas de coca não se restringia à raça
índia.
Em
1859, Paolo Mantegazza, que vivera por muitos anos na regiões de coca
da América do Sul, publicou suas descobertas sobre os efeitos
fisiológicos e terapêuticos das folhas da planta em ambos os
hemisférios. Mantegazza
é um entusiasmado defensor da coca e ilustrou a versatilidade de seus
usos terapêuticos com relatos de histórias de casos. Seu depoimento
despertou muito interesse, mas pouca confiança. Contudo, tenho deparado
com tantas observações corretas na publicação de Mantegazza que minha
tendência é aceitar as suas afirmações, mesmo quando não tenho
oportunidade de confirmá- las experimentalmente.
Em
1859, o Dr. Scherzer, membro da expedição da fragata austríaca Novara,
trouxe para Viena um lote de folhas de coca, algumas das quais enviou ao
Prof. Wöhler para exame. Niemann, aluno de Wöhler, delas isolou o alcalóide cocaína. Após a morte de Niemann, Lossen, outro aluno de Wöhler, continuou a investigação das substâncias contidas nas folhas de coca.
A
cocaína de Niemann se cristaliza em grandes prismas incolores do tipo
monoclínico, de quatro a seis lados. Tem gosto um tanto amargo e produz
um efeito analgésico nas mucosas. Desmancha-se à temperatura de 98ºC, é
difícil de diluir em água,* mas facilmente solúvel em álcool, éter e
ácidos dilutos. Combina-se com cloreto de platina e cloreto de ouro para
formar sais duplos. Ao ser aquecida com ácido clorídrico, decompõe-se
em ácido benzóico, álcool metílico e uma base pouco estudada chamada
ecgonina. Lossen estabeleceu a seguinte fórmula para a cocaína:
C17H24NO4. Devido ao seu alto grau de solubilidade na água, os sais que
forma com o ácido clorídrico e o ácido acético são particularmente
adequados a usos fisiológicos e terapêuticos.
*
Há pouca concordância entre os autores quanto à solubilidade da cocaína
na água. É evidente que vários preparados de “cocaína surgiram no
mercado e foram postos em uso.
Além
da cocaína, foram encontradas nas folhas de coca as seguintes
substâncias: ácido cocatânico, uma cera peculiar e uma base volátil,
higrina, cujo cheiro lembra o da trimetilamina, e que Lossen isolou sob a
forma de um óleo viscoso, amarelo-claro. A julgar pelos relatórios
químicos, há mais substâncias contidas nas folhas da coca que ainda não
foram descobertas.
Desde
a descoberta da coca, muitos observadores têm estudado os seus efeitos
sobre animais, assim como seres humanos, saudáveis ou doentes. Às vezes,
utilizaram um preparado descrito como cocaína e, em outras ocasiões, as
próprias folhas da planta, em infusão ou à maneira dos índios. Na
Áustria, Schroff pai realizou em 1862 as primeiras experiências com
animais; outros relatos sobre a coca vieram de Frankl (1860), Fronmüller
(1863) e Neudörfer (1870). Quanto ao trabalho realizado na Alemanha,
podem ser mencionadas as recomendações terapêuticas de Clemens (1867),
as experiências com animais de von Anrep (1880) e as experiências de
Aschenbrandt com soldados exaustos (1883).
Na
Inglaterra, A. Bennett realizou em 1874 as primeiras experiências com
animais; em 1876, os relatos de Sir Robert Christinson, presidente da
Associação Médica Britânica, produziram considerável sensação; e quando
um correspondente do British Medical Journal afirmou que um certo Sr.
Weston (que havia espantado os círculos de Londres com as suas notáveis
façanhas de caminhante) mascava folhas de coca, ela se tornou, por certo
tempo, um tema de interesse geral. No mesmo ano (1876), Dowdeswell
publicou os resultados de uma experiência totalmente ineficaz realizada
no laboratório do University College, após o que a coca parece não ter
encontrado alguém na Inglaterra disposto a prosseguir a pesquisa. *
*
Para conferir a literatura, baseei-me no artigo “Erythroxylon coca”, no
Catálogo de Índice do Gabinete do Diretor de Saúde Pública dos Estados
Unidos, v.IV, 1883, que quase pode ser considerado um índice completo de
literatura. Em virtude da insuficiência de nossas bibliotecas públicas,
só pude tomar conhecimento de uma parte dessa literatura a que me
referi sobre a coca através de referências e relatos de segunda mão.
Espero, porém, ter lido o bastante para atingir o meu objetivo neste
ensaio: reunir toda a informação existente sobre a coca.
Da
literatura francesa sobre o assunto, deve-se mencionar: Rossier (1861),
Demarle (1862), a monografia de Gosse sobre Erythroxylon coca (1862),
Reiss (1866), o Étude sur la coca du Pérou, de Lippmann (1868), Moreno y
Maïz (1868), que forneceu alguns fatos novos sobre a cocaína, Gazeau
(1870), Collins (1877) e Marvaud, no livro Lês aliments d’épargne
(1874), o único desses ensaios à minha disposição.
Na
Rússia, Nikolsky, Danini (1873) e Tarkhanov (1872) se concentraram
particularmente no estudo dos efeitos da cocaína sobre animais. Nos
últimos anos, muitos relatos sobre o uso terapêutico bem-sucedido de
preparados de cocaína surgiram nos Estados Unidos, todos publicados na
Detroit Therapeutic Gazette.
As
primeiras investigações a que nos referimos aqui levam, de um modo
geral, a uma grande desilusão, e à convicção de que os efeitos do uso da
coca, tais como haviam sido tão exaustivamente relatados na América do
Sul, não poderiam ser esperados na Europa. Investigações como as
realizadas por Schroff, Fronmüller e Dowdeswell geraram resultados
negativos ou, no máximo, insignificantes. Há mais de uma explicação para
esses fracassos.
Sem
dúvida, a qualidade dos seus preparados devia ser em grande parte
responsabilizada. * Em muitos casos, os próprios autores manifestam
dúvida quanto à qualidade de seus preparados e, na medida em que
acreditam nos relatos de viajantes sobre o efeito da coca, supõem que
esses efeitos devem ser atribuídos a um componente volátil da folha.
Baseiam tal suposição no relato de Poeppig, dentre outros, de que, mesmo
na América do Sul, folhas guardadas por muito tempo são consideradas
imprestáveis. As experiências recentemente realizadas com a cocaína
preparada pela Merk [sic] de Darmstadt justificam, por si sós, a
afirmação de que a cocaína é o verdadeiro agente do efeito da coca, que
pode ser produzida tão bem na Europa quanto na América do Sul, e que se
pode tirar proveito dela em tratamentos dietéticos e terapêuticos.
*
O teor da cocaína das folhas de coca varia, segundo Lessen, entre 0,2% e
0,02%. A dose mínima de cocainum muriaticum eficaz no homem parece ser
de 0,05g. De acordo com Lippmann (Étude sur la coca du Pérou, Tese,
Strasburg, 1868), uma folha seca de coca pesa 1dg.
IV. O EFEITO DA COCA SOBRE ANIMAIS
Sabemos
que animais de espécies diferentes – e mesmo indivíduos da mesma
espécie – diferem muito acentuadamente um do outro naquelas
características químicas que determinam a receptividade do organismo a
substâncias estranhas. Portanto, como é natural, não esperaríamos
descobrir que o efeito da coca sobre os animais se assemelhasse aos
efeitos que se descrevem dela sobre o homem. Talvez nos satisfaçamos com
os resultados de nossa pesquisa na medida em que consigamos compreender
a maneira pela qual a cocaína afeta o homem e os animais de um ponto de
vista unívoco.
Devemos a von Anrep as
experiências mais completas com relação aos efeitos da coca sobre
animais. Antes dele, tais experiências foram realizadas por Schroff pai, Moréno e Maïz, Tarkhanov, Nikolsky, Danini,, A Bennett e Ott. A maioria desses autores ministrava o alcalóide por via oral ou subcutânea.
O
resultado mais comum de tais experiências é que, em doses pequenas, a
coca tem um efeito estimulante e, em doses elevadas, um efeito
paralisante sobre o sistema nervoso. No caso de animais de sangue frio, o
efeito paralisante é particularmente observável, enquanto em animais de
sangue quente os sintomas de estimulação são mais aparentes.
Segundo
Schroff, a cocaína provoca em rãs um estado soporífero, acompanhado de
paralisia dos músculos voluntários. Moreno y Maïz, Nikolsky e Ott
fizeram basicamente a mesma descoberta. Moreno y Maïz afirma que a
paralisia geral resultante de doses moderadas é precedida pelo tétano.
Sob as mesmas condições, Nikolsky descreve uma fase de excitação do
sistema muscular, ao passo que Danini nunca observou espasmos.
Von
Anrep relata igualmente o efeito paralisante da cocaína sobre rãs, após
breve período de excitação. A princípio, são afetadas as terminações
dos nervos sensoriais, e por fim os próprios nervos sensoriais. No
começo, a respiração se acelera e, em seguida, sofre paralisação; o
funcionamento do coração torna-se mais lento, até ser atingido o ponto
de colapso diastólico. Doses de 2mg são suficientes para provocar
sintomas de envenenamento.
Segundo
as descrições de Schroff das suas experiências com coelhos (que, nos
pormenores, são repletas de contradições), a coca produz nesses animais
espasmos múltiplos, respiração e freqüência de pulso intensificadas,
dilatação das pupilas e morte convulsiva. A eficácia do envenenamento
dependia em grande escala da forma de aplicação. Segundo Danini, o
envenenamento por cocaína, em animais de sangue quente, produz a
princípio agitação, que se manifesta em contínuos pulos e corridas,
seguida de paralisia das funções musculares e por fim de câimbras
espasmódicas (clônicas). Tarkhanov constatou um aumento da secreção
mucosa em cães que haviam recebido doses de cocaína, bem como açúcar na
urina.
Nas
experiências de von Anrep, o efeito da cocaína em animais de sangue
quente, ainda que em doses elevadas, manifestou-se antes de tudo por
intensa agitação psíquica e excitação dos centros cerebrais que
controlam o movimento voluntário. Após doses de 0,01g de cocaína por
quilo, os cães apresentam sinais evidentes de alegre excitação e uma
compulsão louca a se movimentar. Nas características dessa movimentação,
von Anrep vê indícios de que todos os centros nervosos são afetados
pela estimulação, e interpreta determinados movimentos oscilantes da
cabeça como irritação que procede dos canais semicirculares. Outras
manifestações da intoxicação por cocaína são: respiração acelerada,
grande aumento do ritmo do pulso devido à paralisia inicial dos nervos
vagos, dilatação das pupilas, aceleração do movimento intestinal, grande
elevação da pressão arterial e diminuição das secreções. A substância
do músculo estriado permanece intacta mesmo após doses suficientemente
elevadas para produzir eventuais convulsões, sintomas de paralisia, e
morte decorrente da paralisia do centro respiratório. Von Anrep não
determina a dose letal para cães. Para coelhos, é de 0,10g, e para
gatos, de 0,02g por quilo. *
* Administrada por injeção subcutânea.
Quando
a medula espinhal é separada do bulbo raquiano, a cocaína não provoca
câimbras nem elevação da pressão arterial (Dnini). Quando a porção
dorsal da medula espinhal é separada, os espasmos da cocaína ocorrem nas
extremidades anteriores mas não nas posteriores (von Anrep). Danini e
von Anrep supõem, portanto, que a cocaína afeta principalmente a área
vital do bulbo raquiano.
Devo
acrescentar que somente Schroff se refere à cocaína como narcótico,
qualificando-a junto com o ópio e a cannabis, ao passo que quase todos
os outros a classificam com a cafeína, etc.
V. O EFEITO DA COCAÍNA
SOBRE O CORPO HUMANO SAUDÁVEL
Tenho
realizado experiências e estudado, em mim mesmo e em outras pessoas, o
efeito da coca sobre o corpo humano saudável. Minhas conclusões estão
fundamentalmente de acordo com a descrição, feita por Mantegazza, do
efeito das folhas de coca. *
A
primeira vez em que tomei 0,05g de cocainum muritaticum em uma solução
de 1% de água foi quando estava me sentindo levemente indisposto devido à
fadiga. Essa solução é bastante viscosa, um tanto opalescente, e tem um
estranho odor aromático. A princípio, tem gosto amargo, que
posteriormente cede a uma série de sabores muito agradáveis e
aromáticos: o sal seco de cocaína tem idênticos cheiro e gosto, mas em
grau mais concentrado.
Alguns
minutos após ingerir a cocaína, experimenta-se súbita exaltação e uma
sensação de leveza. Os lábios e o palato ficam saburrosos, seguindo-se
sensação de calor nas mesmas áreas. Se, nesse momento, tomarmos água
fria, ela parece quente aos lábios e fria à garganta. Em outras
ocasiões, a sensação predominante é um frescor bastante agradável na
boca e na garganta.
Durante
esse primeiro teste, experimentei um curto período de efeitos tóxicos,
que não reapareceram em experiências subseqüentes. A respiração ficou
mais lenta e profunda, e sentia-me cansado e sonolento; bocejava com
freqüência, sentindo-me um tanto apático. Após alguns minutos começou a
euforia real da cocaína, iniciada por repetida eructação refrescante.
Imediatamente após tomar cocaína, notei um leve retardamento do pulso e,
mais tarde, um aumento moderado.
*
Da mesma forma que Aschenbrandt (Deutsche med. Wochenschrift, dez.
1883), utilizei o preparado conforme descrito por Mark {sic} em
Darmstadt. Este preparado pode ser comprado em Viena na Engellapotheke
am Hof de Haubner, a um preço não muito maior do que o da Merk {sic},
mas que deve, ainda assim, ser considerado bastante elevado. A gerência
da farmácia em questão está tentando reduzir o preço da droga por meio
do contato com novos fornecedores, como tiveram a bondade de me
informar.
111
Observei
em outros, principalmente pessoas da minha idade, os mesmos sinais
físicos do efeito da cocaína. O sintoma mais constante era a repetida
eructação refrescante. Muitas vezes ela se faz acompanhar de um ronco,
que deve se originar no alto do intestino. Duas das pessoas que
observei, e que diziam ser capazes de reconhecer os movimentos de seus
estômagos, declararam enfaticamente ter detectado repetidamente estes
movimentos. Muitas vezes também, quando a cocaína começava a fazer
efeito, os pacientes afirmaram que experimentavam uma intensa sensação
de calor na cabeça. Observei isso igualmente no decurso de algumas
experiências posteriores, mas em outras ocasiões o fato não ocorreu.
Somente em dois casos a coca de fato provocou tontura. De modo geral, os
efeitos tóxicos da coca têm curta duração e são muito menos intensos
que aqueles produzidos por doses ativas de quinino ou salicilato de
soda. Eles parecem se tornar ainda mais fracos após o uso repetido da
cocaína.
Mantegazza
refere-se aos seguintes efeitos ocasionais da coca: eritrema
temporário, aumento da quantidade de urina, ressecamento da conjuntiva e
das mucosas nasais. O ressecamento das mucosas da boca e da garganta é
um sintoma habitual, que dura horas. Alguns observadores (Marvaud,
Collan) falam
de um ligeiro efeito catártico. Diz-se que a urina e as fezes adquirem o
cheiro da coca. Diferentes observadores fornecem descrições muito
diversas do efeito sobre o ritmo do pulso. Segundo Mantegazza, a coca
provoca rapidamente uma intensificação considerável no ritmo do pulso,
que se acelera ainda mais com doses maiores. Collins também notou aceleração do pulso depois da ingestão de coca, enquanto Rossier Demarle e
Marvaud experimentaram, após a aceleração inicial, um retardamento do
ritmo do pulso de duração mais longa. Sob efeito da coca, Christison
observou que o esforço físico lhe causava menos aceleração no ritmo do
pulso do que experimentara em outras circunstâncias. Reiss contesta
qualquer efeito sobre o ritmo do pulso. Para mim, não é difícil
explicar a razão dessa discordância: isto se deve, em parte, à variedade
dos preparados utilizados (infusão quente das folhas, solução fria de
cocaína, etc.) e ao modo como eram aplicados, * e em parte às variadas
reações individuais. Com a coca, este último fator, como Mantegazza já
havia relatado, é em geral muito importante. Diz-se haver pessoas que
não conseguem de forma alguma tolerar a coca; por outro lado, não são
poucos os que se mantêm insensíveis a 5cg, que é uma dose ativa para mim
e para outros.
* Para os resultados obtidos com injeção subcutânea, consultar o trabalho de Morselli e de Buccola.
O
efeito psíquico da cocainum muriaticum em doses de 0,05-0,10g consiste
em exaltação e euforia duradoura, em nada diferente da euforia normal de
uma pessoa saudável. A sensação de excitação que acompanha o estímulo
por álcool está de todo ausente; também não se verifica a característica
necessidade de atividade imediata que o álcool produz. A pessoa sente
um aumento do autocontrole, maior vigor e capacidade para o trabalho.
Por outro lado, ao trabalhar, sente falta da intensificação das
capacidades mentais promovida pelo álcool, chá ou café. A pessoa está
simplesmente normal e logo acha difícil acreditar que se encontra sob a
influência de alguma droga. *
Isso
dá a impressão de que o estado de ânimo produzido por tais doses de
coca se deve, não tanto à estimulação direta, quanto ao desaparecimento
de componentes que, no estado geral de bem-estar, provocam a depressão.
Poder-se-ia talvez supor que a euforia resultante da boa saúde também
nada mais é do que a condição normal de um córtex cerebral bem nutrido
que “não está consciente” dos órgãos do corpo a que pertence.
Esta
fase de atuação da cocaína não é percebida senão pelo surgimento
daqueles sintomas que têm sido descritos como o maravilhoso efeito
estimulante da coca. O trabalho mental ou físico de longa duração e
intensidade pode ser executado sem fadiga. É como se a necessidade de
alimento e de sono, que em outras circunstâncias se faz sentir
marcadamente em determinados momentos do dia, houvesse desaparecido
inteiramente. Enquanto perduram os efeitos da cocaína, a pessoa poderá
comer fartamente sem repulsa, se instada a fazê-lo, mas tem a clara
sensação de que a refeição é supérflua. De igual modo, à medida que o
efeito da coca diminui, é possível deitarse e dormir, mas o sono pode
ser dispensado com a mesma facilidade, sem conseqüências desagradáveis.
Durante as primeiras horas de efeito da coca, não se consegue dormir,
mas essa insônia não é de maneira alguma penosa.
*
A descrição feita por Wilder dos efeitos da cocaína em si próprio
coincide de perto com minhas observações (Detroit Therapeutic Gazette,
nov. 1882).
113
Eu
mesmo experimentei cerca de uma dúzia de vezes esse efeito da coca, que
afasta a fome, o sono e a fadiga e robustece a pessoa para o esforço
intelectual; não tive oportunidade de me ocupar com trabalho físico. Um
colega muito ocupado me forneceu a oportunidade de observar um exemplo
impressionante do modo pelo qual a cocaína dissipa a fadiga extrema e
uma sensação de fome bem justificada. Às 18h esse colega, que não se
alimentava desde as primeiras horas da manhã e que trabalhara muitíssimo
durante o dia, tomou 0,05g de cocainum muriaticum. Poucos minutos
depois, declarou que se sentia como se tivesse acabado de comer
fartamente, que não tinha vontade de uma refeição vespertina e que se
achava suficientemente forte para empreender uma longa caminhada.
Esse
efeito estimulante da coca é atestado sem qualquer dúvida por uma série
de relatos fidedignos, alguns dos quais bastante recentes.
À guisa de experiência, Sir Robert Christison –
que tem setenta e oito anos de idade – cansou-se até a exaustão,
caminhando cerca de vinte e quatro quilômetros sem nada comer. Após
vários dias, repetiu o procedimento, com o mesmo resultado. Durante a
terceira experiência, mascou cerca de 2 dracmas * de folhas de coca e
conseguiu completar a caminhada sem a exaustão verificada nas ocasiões
anteriores. Quando chegou em casa, apesar de ter passado nove horas sem
alimento ou bebida, não sentiu fome ou sede e acordou na manhã seguinte
sem se sentir absolutamente cansado. Em outra ocasião ainda, escalou uma
montanha de cerca de mil metros de altitude e chegou ao cume
inteiramente exausto. Fez a descida sob o efeito da coca, com vigor
juvenil e nenhuma sensação de fadiga.
* N.T.: 1 dram (dracma) equivale a 1/8 de onça, isto é, 3,586g.
Clemens e J. Collan tiveram experiências semelhantes –, o segundo depois de caminhar várias horas na neve. Mason descreve a coca como “algo excelente para uma longa caminhada”. Recentemente, Aschenbrandt relatou
como soldados bávaros, cansados em decorrência de privações e doenças
debilitantes, foram capazes, apesar disso, de participar de manobras e
marchas, após ingerir a coca. Moreno y Maïz conseguiu
permanecer acordado noites inteiras com a ajuda da coca. Mantegazza
passou quarenta horas sem alimentar-se. Estamos, portanto, justificados
ao presumir que o efeito da coca sobre os europeus é igual ao das folhas
de coca sobre os índios da América do Sul.
O
efeito de doses moderadas desaparece tão gradualmente que, em
circunstâncias normais, é difícil definir sua duração. Se a pessoa
trabalha intensamente enquanto está sob o efeito da coca, um declínio da
sensação de bem-estar ocorre após três a cinco horas, sendo necessária
nova dose para afastar a fadiga. O efeito da coca parece durar mais
quando não se faz um trabalho muscular pesado. É unânime a opinião de
que a euforia induzida pela coca não é acompanhada de qualquer sensação
de lassidão ou outro estado de depressão. Inclino-me a achar que, após
doses moderadas (0,05 – 0,10g), pelo menos parte do efeito da coca
perdura por mais de vinte e quatro horas. No meu caso, de qualquer
forma, tenho notado que, mesmo no dia seguinte ao da ingestão da coca,
meu estado se compara favoravelmente ao normal. Também poderia, como tem
sido feito com freqüência, explicar a possibilidade de que a duração
desse ganho de vigor se deva à totalidade desses efeitos.
À
luz dos relatos a que me referirei adiante, parece provável que o uso
prolongado, porém moderado, da coca não seja prejudicial ao corpo.
Durante trinta dias, von Anrep tratou animais com doses moderadas de
cocaína e constatou efeitos prejudiciais sobre suas funções físicas.
Parece-me digno de nota – e descobri isso em mim mesmo e em outros
observadores que eram capazes de julgar tais coisas – que uma primeira
dose ou mesmo doses repetidas de coca não provocam desejo compulsivo de
utilizar mais o estimulante: ao contrário, sente-se uma aversão
imotivada à substância. Essa circunstância talvez explique parcialmente
por que a coca, apesar de algumas entusiasmadas recomendações, não se
firmou na Europa como estimulante.
Mantegazza
pesquisou em si próprio o efeito de doses elevadas de coca. Conseguiu
assim alcançar um estado de felicidade muito intensa, acompanhado do
desejo de completa imobilidade. De vez em quando, porém, isso era
interrompido por um violento impulso para movimentar-se. A analogia com
os resultados das experiências com animais realizadas por von Anrep é
inconfundível. Quando ele aumentou ainda mais a dose, ficou em um sopore
beato: o ritmo do pulso estava extremamente elevado, e a temperatura do
corpo subira moderadamente; a fala estava embaraçada, e sua letra
instável; por fim, experimentou as alucinações mais esplêndidas e
coloridas, cujo conteúdo era assustador por um certo período, mas
invariavelmente alegre a seguir. Essa intoxicação pela coca também não
conseguiu provocar qualquer estado de depressão nos que a
experimentaram, nem deixou sinal algum de que eles haviam se intoxicado.
Moreno y Maïz também experimentou uma intensa compulsão a se movimentar
após tomar doses bastante elevadas de cocaína. Mesmo depois de utilizar
18 dracmas de coca, Mantegazza não sofreu diminuição da consciência
plena. Um químico que tentou se envenenar tomando 1,5g de cocaína adoeceu e manifestou sintomas de gastroenterite, mas não apresentou embotamento da consciência.
VI. AS UTILIZAÇÕES TERAPÊUTICAS DA COCA
Era
inevitável que uma planta que alcançara tamanha reputação por seus
efeitos prodigiosos em seu país de origem fosse utilizada para tratar as
mais variadas indisposições e doenças do corpo humano. Os primeiros
europeus que tomaram conhecimento desse tesouro da população nativa
foram também incondicionais em sua recomendação da coca. Com base em
larga experiência médica, Mantegazza elaborou posteriormente um relato
sobre as propriedades terapêuticas da coca, as quais receberam, uma a
uma, reconhecimento de outros médicos. Na seção seguinte, tentarei
confrontar as recomendações a respeito da coca e, ao fazê-lo, distinguir
entre as que se baseiam em tratamentos bem sucedidos de doenças, e
aquelas que se relacionam aos efeitos psicológicos do estimulante. Em
geral, as últimas têm mais importância do que as primeiras. No momento,
parece haver nos Estados Unidos indícios de amplo reconhecimento e
utilização dos preparados da coca, enquanto na Europa os médicos mal os
conhecem de nome. O fracasso da coca em fixar-se na Europa, fato que, em
minha opinião, é imerecido, talvez possa ser atribuído a informes de
conseqüências desfavoráveis resultantes de sua utilização e veiculados
pouco depois de sua introdução na Europa; ou à qualidade duvidosa dos
preparados, sua relativa escassez e preço elevado decorrente. Algumas
das evidências que podem ser encontradas em favor da utilização da coca
se mostraram sem dúvida válidas, ao passo que outras merecem pelo menos
uma pesquisa imparcial. A cocaína da Merk [sic] e os seus sais são, como
se demonstrou, preparados que têm efeitos plenos, ou pelo menos os
efeitos essenciais, das folhas de coca.
a)
A coca como estimulante. Sem dúvida a principal utilização da coca
continuará sendo a mesma que há muitos séculos os índios têm feito dela:
tem valor em todos os casos em que o objetivo primordial seja aumentar a
capacidade física do corpo por um determinado e curto período de tempo,
e conservar a energia para fazer face a novas demandas – especialmente
quando as circunstâncias externas eliminam a possibilidade do descanso e
da alimentação normalmente necessários ao grande esforço. Situações
desse tipo ocorrem em tempo de guerra, em viagens, na prática de
alpinismo e outras expedições, etc. – de fato, são situações em que,
geralmente, o valor dos estimulantes alcoólicos também é reconhecido. A
coca é um estimulante muito mais potente e muito menos prejudicial do
que o álcool e, no momento, a sua utilização ampla está sendo impedida
apenas em razão do elevado custo. Tendo em mente os efeitos da coca
sobre os nativos da América do Sul, uma autoridade médica tão antiga
quanto Pedro Crespo (Lima, 1793) recomendou a sua utilização pelas
esquadras européias; Neudörfer (1870), Clemens (1867) e o major médico
E. Charles recomendaram
que fosse adotada de igual modo pelos exércitos da Europa: e as
experiências de Aschenbrandt não devem deixar de atrair a atenção dos
administradores de exércitos para a coca. Se a cocaína for ministrada
como estimulante, é melhor que o seja em pequenas doses ativas
(0,05-0,10g), que serão repetidas tão freqüentemente que os seus efeitos
se justaponham. Aparentemente, a cocaína não é armazenada no corpo. Já
ressaltei o fato de que não há estado de depressão quando os seus
efeitos se desfazem.
No
momento, é impossível avaliar com alguma certeza até que ponto se pode
esperar que a coca aumente as capacidades mentais humanas. Tenho a
impressão de que o uso prolongado da coca pode levar a uma melhoria
duradoura, se as inibições manifestadas antes de tomá-la são devidas
apenas a causas físicas ou à exaustão. Efetivamente, o efeito
instantâneo de uma dose de coca não pode ser comparado ao de uma injeção
de morfina, mas do ponto de vista racional não há perigo de dano geral
ao corpo, como é o caso com a utilização crônica da morfina.
Muitos
médicos acharam que a coca desempenharia um papel importante, ao
preencher uma lacuna no receituário dos psiquiatras. É um fato notório
que os psiquiatras dispõem de um farto suprimento de drogas para reduzir
a excitação dos centros nervosos, mas nenhum que possa servir para
aumentar o funcionamento reduzido dos centros nervosos. Por conseguinte,
a coca tem sido prescrita para os mais diversos tipos de debilidade
psíquica – histeria, hipocondria, inibição melancólica, estupor e
enfermidades semelhantes. Alguns êxitos foram reportados: por exemplo, o
jesuíta Antonio Julian (Lima, 1787) fala de um misisonário culto que se
livrou de uma grave hipocondria; Mantegazza exalta a coca como sendo
quase universalmente eficaz na melhoria daqueles distúrbios funcionais
que agora agrupamos sob o nome de neurastenia; Fliessburg relata excelentes resultados com a utilização da coca em casos de “prostração nervosa”; e, segundo Caldwell, ela é o melhor tônico para tratar a histeria.
E. Morselli e G. Buccola realizaram
experiências que envolviam a administração sistemática de cocaína,
durante meses, a pacientes melancólicos. Administraram um preparado de
cocaína, conforme prescrito por Trommsdorf, em injeções subcutâneas, em
doses que variavam de 0,0025- 0,10g por dose. Após um a dois meses,
comprovaram uma ligeira melhora no estado de seus pacientes, que se
tornaram mais felizes, alimentavam-se e gozavam de digestão normal. * De
modo geral, a eficácia da coca em casos de debilidade nervosa e
psíquica necessita de mais pesquisa, que provavelmente levará a
conclusões parcialmente favoráveis. Segundo Mantegazza, a coca é inútil,
e algumas vezes até perigosa, em casos de alteração orgânica e
inflamação do sistema nervoso.
b)
O uso da coca nos distúrbios digestivos. Esta é a mais antiga
utilização da coca, a mais solidamente fundada e, ao mesmo tempo, a mais
compreensível para nós. De acordo com as afirmações unânimes das
autoridades mais antigas, assim como das mais recentes (Julian, Martius,
Unamuè, Mantegazza, Bingel, Scrivener,
** Frankl e outros), a coca, nas suas mais variadas formas, elimina
indisposições dispépticas, os distúrbios e a debilidade associados a
elas e, após uso prolongado, resulta em cura permanente. Eu mesmo tenho
feito uma série de observações desse tipo. Da mesma forma que
Mantegazza*** e Frankl, tenho
experimentado pessoalmente como os aflitivos sintomas resultantes de
refeições copiosas – isto é, uma sensação de pressão e plenitude no
estômago, mal-estar e falta de disposição para o trabalho – desaparecem
com a eructação que se segue a pequenas doses de cocaína (0,025-0,05g).
Repetidas vezes proporcionei esse alívio aos meus colegas e, por duas
ocasiões, observei como a náusea resultante dos excessos gastronômicos
cedeu em pouco aos efeitos da cocaína e foi substituída por um desejo
normal de comer, bem como de uma sensação de bem-estar físico. Também
aprendi e me poupar de perturbações estomacais com uma pequena
quantidade de cocaína e salicilato de soda.
O
Dr. Josef Pollak, meu colega, forneceu-me a seguinte descrição de um
surpreendente efeito da cocaína, que mostra a possibilidade de ser ela
utilizada para tratar não apenas o desconforto local no estômago, mas
também reações reflexas graves. Deve-se, portanto, presumir que a
cocaína tem um poderoso efeito sobre a mucosa e o sistema muscular desse
órgão. “Um homem robusto, de quarenta e dois anos, a quem o médico
conhecia muito bem, foi obrigado a seguir da maneira mais rigorosa uma
determinada dieta e a regular as horas das refeições, do contrário não
poderia evitar os ataques que serão descritos. Quando em viagem, ou sob a
influência de qualquer tensão emocional, ele ficava particularmente
suscetível. Os ataques seguiam um padrão regular: começavam ao anoitecer
com uma sensação de desconforto no epigastro, seguida de rubor no
rosto, lágrimas nos olhos, latejo nas têmporas e dor violenta na testa,
acompanhados de um sentimento de grande depressão e apatia. Durante a
noite, não conseguia dormir; pouco antes da manhã ocorriam longos e
dolorosos espasmos de vômito, que duravam horas. Por volta do meio-dia,
experimentava certo alívio e, ao tomar algumas colheradas de sopa,
sentia como se afinal o estômago expelisse uma bala que houvesse ficado
nele por muito tempo. Ocorria então uma eructação rançosa até que, pouco
antes do anoitecer, seu estado voltava ao normal. Durante todo o dia, o
paciente ficava incapacitado para o trabalho e tinha de manter-se na
cama.
*
Suas afirmações sobre os efeitos fisiológicos da cocaína estão de
acordo com às de Mantegazza. Ambos observaram, como efeito imediato da
cocaína injetável, a dilatação das pupilas, o aumento de temperatura até
1,2 graus, a aceleração do pulso e da respiração.
** Loc. cit., “um excelente tônico na fraqueza do estômago.”
*** As anamneses médicas completas de Mantegazza me impressionaram como sendo amplamente dignas de crédito.
Às
20:00h do dia 10 de junho, começaram os costumeiros sintomas do ataque.
Às 22:00h, após violenta dor de cabeça ter se manifestado, o paciente
recebeu 0,075g de cocainum muriaticum. Pouco depois, experimentou uma
sensação de calor moderado e eructação, que lhe pareceram ser “ainda
muito pouco”. Às 22:30h foi-lhe administrada uma segunda dose de 0,07g
de cocaína. As eructações aumentaram, o paciente sentiu certo alívio e
conseguiu escrever uma longa carta. Declarou que sentia movimentos
intensos no estômago. À meia-noite, exceto por uma leve dor de cabeça,
ele estava normal, até mesmo alegre, e caminhou por uma hora. Só
conseguiu dormir às três da manhã, mas isso não o afligiu. Na manhã
seguinte, acordou saudável, pronto para o trabalho, e com um bom
apetite.”
O
efeito da cocaína sobre o estômago – Mantegazza também presume isso – é
duplo: estimulação do movimento e redução da sensibilidade do órgão. O
segundo resultado seria de se esperar, não só devido às sensações locais
no estômago, após a ingestão de cocaína, mas devido também ao seu
efeito análogo sobre outras mucosas. Mantegazza afirma ter obtido os
mais notáveis sucessos em tratamentos de gastroalgia e enteroalgia, e em
todas as perturbações dolorosas e espasmódicas do estômago e dos
intestinos, o que ele atribui às propriedades anestésicas da coca. Em
outras ocasiões, tenho observado, e também sabido por outros médicos,
que pacientes com suspeita de úlceras ou com cicatrizes no estômago se
queixavam de dor intensificada após utilizar a coca. Isso pode ser
explicado pelo movimento do estômago.
Assim
sendo, eu diria que o uso da coca é decididamente indicado em casos de
fraqueza digestiva atônica e nos chamados distúrbios nervosos
estomacais. Nesses casos, é possível obter não apenas alívio dos
sintomas, mas uma melhora duradoura.
c)
A coca na caquexia. A utilização a longo prazo da coca é mais
fortemente recomendada – e, segundo se afirma, tem sido tentada com
êxito – em todas as doenças que envolvem degeneração dos tecidos, tais
como anemia grave, tuberculose pulmonar, doenças febris de longa
duração, etc., e também na convalescença dessas doenças. Assim, McBean constatou
melhora constante em casos de febre tifóide tratados com coca. No caso
de tuberculose pulmonar, diz-se que a coca tem efeito restritivo sobre a
febre e a transpiração. A respeito de um caso dessa enfermidade
decididamente diagnosticada, Peckam relata
que, após o extrato fluído de coca ter sido utilizado durante sete
meses, houve acentuada melhora no estado do paciente. Hole fornece
descrição de outro caso bastante grave, em que a falta de apetite
crônica acarretara um estado de magreza e esgotamento. Também aí, a
utilização da coca restituiu a saúde do paciente. R. Bastholow observou,
de modo geral, que a coca se revelou útil no tratamento da pneunomia
pulmonar e outros “processos consuntivos”. Mantegazza e diversas outras
autoridades atribuem à coca a mesma inestimável propriedade terapêutica:
a de limitar a degeneração do corpo e aumentar o vigor no caso de
caquexia.
Tais
sucessos, poderíamos querer atribuí-los, em parte, ao inconteste efeito
favorável da coca sobre a digestão; porém deve-se ter em mente que
muitos dos autores que têm escrito sobre a coca a consideram uma “fonte
de economias”, isto é, são de opinião que um sistema que tenha absorvido
uma quantidade de cocaína, mesmo que extremamente pequena, é capaz, em
conseqüência da reação do corpo à coca, de acumular uma reserva de
energia vital – a qual pode ser convertida em trabalho – maior do que
teria sido possível sem a coca. Se
considerarmos a quantidade de trabalho como sendo constante, o corpo
que tenha absorvido a cocaína deveria ser capaz de se arranjar com um
metabolismo mais reduzido, o que, por sua vez, significa uma menor
ingestão de alimentos.
Esta suposição foi obviamente feita para justificar, segundo von Voit, o
inexplicado efeito da coca sobre os índios. Não há nela,
necessariamente, uma contradição à lei da conservação da energia. Pois o
trabalho que se vale de alimentos ou componentes de tecidos implica um
determinado desgaste, quer na utilização dos alimentos assimilados, quer
na transformação da energia em trabalho. Esse desgaste talvez pudesse
ser reduzido se fossem tomadas certas medidas adequadas. No entanto, não
foi provado que tal processo ocorra. As experiências destinadas a
determinar a quantidade de urina eliminada com e sem a utilização da
coca não têm sido totalmente conclusivas. Na realidade, nem sempre essas
experiências têm sido conduzidas em condições tais que possam fornecer
resultados definitivos. Além disso, parecem ter sido realizadas na
suposição de que a eliminação de urina – que se sabe não ser produzida
pelo trabalho – proporcionaria uma medida do metabolismo em geral.
Assim, Christison observou uma ligeira redução nos componentes sólidos
de sua urina durante as caminhadas em que tomava coca. Da mesma forma, Lippmann, Demarle, Marvaud e, mais recentemente, Mason concluíram a partir de suas experiências, que o consumo de coca reduz a quantidade de urina eliminada. Já Gazeau verificou
um aumento de eliminação da urina de 11-24%, sob o efeito da coca.
Ainda não foram realizadas experiências sobre a eliminação de dióxido de
carbono.
Voit
provou que o café, também classificado como uma “fonte de economias”,
não influenciava a decomposição química da albumina do corpo. O conceito
de “fonte de economias” deve ser refutado no caso da coca, face a
certas experiências em que animais que haviam ou não recebido cocaína
morreram de fome, tendo sido observados a redução de seu peso corporal e
o período de tempo, tendo sido observados a redução de seu peso
corporal e o período de tempo que conseguiram resistir à inanição. Essas
experiências foram realizadas por Cl. Bernaud,
Moreno y Maïz, Demarle, Gazeau e von Anrep. O resultado foi que os
animais aos quais a cocaína havia sido administrada sucumbiram tão cedo –
talvez até mais cedo – quanto os que não haviam recebido a droga. A
fome de La Paz – uma experiência realizada pela própria história e
relatada por Unanuè – parece, no entanto, contradizer essa conclusão,
pois conta-se que os habitantes que haviam comido coca escaparam da
morte por inanição. Nesse sentido, pode-se recordar o fato de que o
sistema nervoso humano tem uma influência incontestável, embora um tanto
obscura, sobre a alimentação dos tecidos. Afinal, fatores psicológicos
podem fazer com que um homem saudável perca peso.
A
propriedade terapêutica da coca, que tomamos como nosso tema no início,
não merece, portanto, ser rejeitada de imediato. A excitação dos
centros nervosos pela cocaína pode ter uma influência favorável sobre a
nutrição do corpo afligido por um estado consuntivo, embora essa
influência talvez não assuma a forma de uma diminuição do metabolismo.
Devo acrescentar aqui que a coca tem sido calorosamente elogiada em relação ao tratamento da sífilis. R. W. Taylorafirma
que o paciente apresenta maior tolerância ao mercúrio e a caquexia
mercurial é refreada ao se ministrar a coca simultaneamente. J. Collan a
recomenda como o melhor remédio para stomatitis mercurialis e relata
que Pagvalin sempre a prescreve junto com preparados de mercúrio.
d)
A coca no tratamento dos vícios da morfina e do álcool. Recentemente
foi feita importante descoberta na América: os preparados de coca
possuem o poder de eliminar a ânsia de morfina em viciados habituais, e
também de reduzir a proporções insignificantes os graves sintomas de
colapso que surgem enquanto o paciente está sendo afastado do hábito da
morfina. Segundo o meu conhecimento (que em grande parte vem da Detroit
Therapeutic Gazette), foi W. H. Bentley quem,
em maio de 1878, anunciou ter substituído o alcalóide costumeiro pela
coca, no caso de uma viciada em morfina. Dois anos depois, em artigo no
Louisville Medical News , Palmer parece ter despertado o interesse geral
por esse tratamento do vício da morfina.
Nos
dois anos seguintes, “Erythroxylon coca no hábito do ópio” era um
título comum nos relatórios da Therapeutic Gazette. A partir de então,
as notícias a respeito de tratamentos bem sucedidos se tornaram mais
escassas; não sei porque o tratamento ficou estabelecido como uma cura
reconhecida ou porque foi abandonado. A julgar pelos anúncios de
revendedores de drogas nos últimos números dos jornais americanos, devo
concluir que se deu o primeiro caso.
Existem
cerca de dezesseis relatos de casos em que o paciente foi curado do
vício com êxito. Em apenas um exemplo há um relato de fracasso da coca
em minorar o vício da morfina, e, nesse caso, o médico não conseguia
compreender a ocorrência de tantas recomendações calorosas para que a
coca fosse utilizada em conexão com o vício da morfina. Os
casos bem sucedidos variam em seu caráter conclusivo. Alguns envolvem
elevadas doses de ópio ou morfina e vícios de longa data. Não há muitos
dados sobre o tema da recidiva, já que a maioria dos casos foi relatada
muito pouco tempo depois da obtenção da cura. Os sintomas que surgem
durante a abstinência nem sempre são descritos em detalhes. São
especialmente valiosos os informes que contêm a observação de que, após
algumas semanas, os pacientes foram capazes de prescindir da coca sem
sentir novo desejo de morfina.
Com
freqüência, se chama atenção particular para o fato de que a caquexia
da morfina deu lugar a excelente saúde, de modo que, após o tratamento,
mal se reconheciam os pacientes. Com
relação ao método de retirada da droga, deve-se deixar claro que, na
maioria dos casos, o método escolhido foi uma redução gradativa da dose
costumeira, acompanhada de um aumento gradual da dose de coca. No
entanto, a suspensão abrupta da droga foi também tentada. Neste
último caso, Palmer recomenda a repetição de uma determinada dose de
coca tantas vezes ao dia quantas reaparecer o desejo de morfina.
*
A dose diária de coca é reduzida aos poucos até que seja possível
prescindir inteiramente do antídoto. Desde o início, os ataques
experimentados durante a abstinência eram ligeiros, ou então se tornavam
mais brandos após alguns dias. Em quase todos os casos, o tratamento
foi efetuado pelopróprio paciente, enquanto que o tratamento do vício da
morfina sem o auxílio da coca, conforme praticado na Europa, requer a
supervisão do paciente em hospital.
*
(Therapeutic Gazette), julho de 1880. O preparado utilizado era
principalmente o extrato fluido, produzido pela Parke, Davis & Co.
Certa
vez, tive oportunidade de observar o caso de um homem que foi submetido
ao tipo de tratamento que implica a retirada súbita da morfina, com o
auxílio da coca. Durante um tratamento anterior, o mesmo paciente
sofrera graves sintomas em conseqüência da abstinência. Dessa vez, o seu
estado era suportável; em particular, não havia sinais de depressão ou
náusea, enquanto os efeitos da coca perduravam; calafrios e diarréia
eram então os únicos sintomas permanentes da abstinência. O paciente não
estava acamado e podia trabalhar normalmente. Durante os primeiros dias
do tratamento, ele consumiu doses diárias de 3dg de cocainum muriaticum
e, após dez dias, foi capaz de prescindir inteiramente do tratamento
com a coca.
O
tratamento do vício da morfina com o emprego da coca, portanto, não
resulta simplesmente na troca de um tipo de vício por outro – não
transforma o viciado em morfina em um coquero. O emprego da coca é
apenas temporário. Além disso, não creio que seja o efeito fortalecedor
geral da coca que possibilita ao sistema enfraquecido pela morfina
suportar, apenas à custa de sintomas insignificantes, a retirada dessa
droga. Estou bastante inclinado a admitir que a coca tem um efeito
diretamente antagônico sobre a morfina e, em apoio ao meu ponto de
vista, transcrevo as seguintes observações do Dr. Josef Pollak sobre um
caso ilustrativo:
“Uma
mulher de trinta e três anos de idade vem sofrendo há anos de forte
enxaqueca menstrual, que só pode ser aliviada com injeções de morfina.
Embora, quando não é acometida pela enxaqueca, a senhora em questão
nunca tome morfina nem sinta desejo de fazê-lo, durante os acessos seu
comportamento é o de uma viciada. Poucas horas após a injeção, ela sofre
intensa depressão, biliosidade, acessos de vômito, que são sustados por
uma segunda injeção de morfina. Daí em diante, reaparecem os sintomas
de intolerância, resultando em um ataque de enxaqueca com todas as suas
conseqüências, que mantém a paciente acamada por três dias, no estado
mais deplorável. A cocaína foi então experimentada para combater a
enxaqueca, mas o tratamento não teve êxito. Foi necessário recorrer às
injeções de morfina. Porém, assim que surgiram os sintomas da
intolerância à morfina, estes foram rapidamente atenuados por 1dg de
cocaína; a paciente se recuperou do ataque em tempo muito mais curto, e
consumiu muito menos morfina nesse processo.”
Na
América, a cocaína foi experimentada no tratamento do alcoolismo
crônico, mais ou menos ao mesmo tempo em que era divulgada em conexão
com o vício da morfina e, em sua maioria, os relatos lidavam com as duas
utilizações em conjunto.Também
no tratamento do alcoolismo, houve casos de êxito incontestável, em que
a compulsão irresistível de beber era afastada ou minorada, com alívio
das indisposições dispépticas dos bebedores. Em geral, porém, a
supressão da ânsia pela bebida com o emprego da coca se revelou mais
difícil do que a da morfinomania. Em um caso relatado por Bentley, o
bebedor se tornou um coquero. Resta apenas sugerir a enorme importância
econômica que a coca adquiriria como “uma fonte de economias”, em outro
sentido, se fosse confirmada a sua eficácia no combate ao alcoolismo.
e) A coca e a asma. Tschudi e Markham informaram
que, ao mascar folhas de coca, evitaram os sintomas habituais do
chamado mal das montanhas, enquanto escalavam os Andes. Esse complexo de
sintomas compreende dificuldades de respiração, palpitações cardíacas,
vertigem, etc. Poizat relata
que todos os casos de acessos asmáticos de pacientes foram
interrompidos pela coca. Menciono essa propriedade da coca porque ela
parece admitir uma explicação fisiológica. As experiências de von Anrep
com animais resultaram em paralisia inicial de determinadas ramificações
do vago; e a asma de altitude, assim como os acessos característicos da
bronquite crônica, podem ser interpretados em termos de uma excitação
reflexa que se origina nas ramificações pulmonares do vago. A utilização
da coca deve ser considerada para o tratamento de outras neuroses do
vago.
f)
A coca como afrodisíaco. Os nativos da América do Sul, cuja deusa do
amor era representada com folhas de coca na mão, não duvidavam do efeito
estimulante da coca sobre a genitália. Mantegazza confirma que os
coqueros mantêm um alto grau de potência até a velhice. Ele fala mesmo
de casos de restabelecimento da potência e desaparecimento de
debilidades funcionais após a utilização da coca, embora não acredite
que a coca produza tal efeito em todos os indivíduos. Marvaud sustenta
enfaticamente a opinião de que a coca tem um efeito estimulante. Outros
autores recomendam-na vivamente como um remédio para debilidades
funcionais e exaustão temporária; Bentleu descreve um caso desse tipo,
quando a coca foi responsável pela cura.
Dentre
as pessoas a quem administrei a coca, três relataram violenta excitação
sexual, prontamente atribuída a ela. Um jovem escritor, a quem o
tratamento com a coca possibilitou retomar o trabalho após uma
enfermidade prolongada, deixou de utilizar a droga em decorrência dos
indesejáveis efeitos secundários que exercia sobre ele.
g)
Aplicação local da coca. A cocaína e seus sais têm um acentuado efeito
analgésico quando, em solução concentrada, entram em contato com a pele e
a mucosa. Essa propriedade indica o seu uso ocasional como anesté sico
local, especialmente em relação a afecções da mucosa. Collin, Ch.
Fauvel recomenda vivamente a cocaína para tratar enfermidades da
faringe, descrevendo-a como: “lê tenseur par excellence dês cordes
vocales”. De fato, as propriedades anestésicas da cocaína devem torná-la
adequada a muitas outras aplicações.
NOTAS
1. Markham, O. R. Peruviam Barks, Londres, 1880.
2. Segundo estimava de Bibra, Narcotic Stimulants, 1885.
3. Weddell, Voyage dans le Nord de la Bolivie, 1853.
4. Scrivener, “On the Coca Leaf and its Use in Diet and Medicine”, Medical Times and Gazette,
1871.
5. Vega, Garcilaso de la, Commentarios reales de los Incas, p. 1609-1617.
6. Christison, R., “Observations on the Effect of Cuca, or Coca, the leaves of Eeythroxylon coa”,
British Medical Journal, 1876, Bibra loc. cit.
7. Mantegazza, Paolo, Sulle virtù igieniche e medicinali della coca, Milão, 1859.
8. Scrivener, loc. cit.
9. Segubdo Ullo, que Bibra copia.
10. Systema mat. med. Brasil, 1843.
11. Essai sur la coca du Pérou. Tese. Paris: 1962.
12. Cf. Frontmüller, “Coca and cat.” Prager Vierteljahressschrift für praktische Heilkunde, v.79,
1863.
13. Viagem de cidade de Cuzco a Belém, 1840.
14. Expédition dans le parties centrales de l’Amérique du Sud, 1851.
15. Journal in Brazil de Spix e Martius, 1831.
16. Loc. cit.
17. Travels sketches from Peru in 1838 and 1842.
18. Loc. cit.
19. Journey Round th World, 1835.
20. Travels in Peru and Índia, 1862.
21. Journey in Chile, Peru and on the Amazon River, 1827-1832.
22. Disertación sobre el aspecto, cultivo, comercio y virtudes de la famosa planta Del Peru nombrada
coca. Lima: 1794.
22. Historical and descriptive narrative of twenty years residence in South América, 1825.
24. Frontmüller, loc. cit.
25. “The coca leaf”. Lancet, 1876.
26. Disertación sobre Hayo o Coca. Lima: 1793.
27. Memória sobre la coca. Lima: 1793.
28.
MANTEGAZZA, Paolo. “Sulle virtù igieniche e medicinali della coca.
Memória onorata Del Premio dell’Acqua nel concorso di 1858, estratto
dagli Annali Universali di Medicina 1859.” Pequeno ensaio contido em:
Österreichische Zeitschrift für praktische Heilkunde, do mesmo ano.
29. Annal. d. Chemie u. Pharmac., 114, e Vierteljahresschrift für praktische Pharmacie, 9.
30. Annalen, d. Chemie und Pharmacie, 133.
31.
HUSEMAN & HIGLER. “Plant substances etc.”, 1884; GIRTLER. “On coca,
extract of coca and cocaine”, Wiener Med. Wochenschrift, 1862.
32. “On the Physiological Effects of cocaine”, Pfügers Archiv, XXI, 1880.
33. “Preliminary Report on Cocaine”, Wochenblatt dês Gesellchaft der Ärzte in Wien, 1862.
34. Recherches chimiques et physiologiques sur l’Erythroxylon coca du Pérou, 1868.
35. “Cocaína e diabetes”. 1872 (em russo).
36. “Contribuição ao estudo dos efeitos da cocaína sobre o organismo animal” (em russo).
37. “Sobre os efeitos fisiológicos e o uso terapêutico da cocaína”, 1872 (em russo).
38. “An Experimental Inquiry into the Physiological Action of Theine, etc.”, Edinburgh Medical and Surgical Journal, 1874.
39. “Coca and its Alkaloid Cocaine”, New York Medical Record, 1876.
40. Finska, läkaresällsk. Handl., XX, 1878.
41.”De la coca et de sés véritables propriétés thérapeutiques”. L’Union Médicale, 1877.
42.”Sur l’action physiologique dês feuilles de coca”, Echo Medical Suisse, 1861.
43. Essai sur la coca du Pérou, Tese, Paris, 1862.
44. “Note sur l’emploi de la coca”, Bulletin de Thérapeutique, 1866.
45. “Observations on the Effect of Cuca, or Coca etc.”, British Medical Journal, 1876.
46. “Experiences in Connection with the Therapeutic Use of Coca Leaves”, Deutsche Klinik, 1867.
47. Collan, J., Finska läkaresällsk. Handl., v. XX, 1878 – de Schmidt’s Yearbooks, no. 87, 1880.
48. “Erythroxylon coca; its Physiological Effects etc., Boston Medical and Surgical Journal, 1882.
49. “Os efeitos fisiológicos do cocainum muriaticum sobre o corpo humano e seu significado.
Observações
realizadas durante as manobras de outono do Terceiro Regimento do
Exército Bávaro, em 1883”, Deutsche med. Wochenschrift, 12 dez. 1883.
50. Loc. cit.
51. Ploss, Zeitschrift für Chirurgie, 1863.
52. Philadelfia Medical and Surgical Repórter, 1883.
53. Detroit Therapeutic Gazette, fev. 1883.
54. “Rewiew of Some os our Later Remedies”, Detroit Th. G., dez. 1880.
55. Ricerche sperimentali sull’azione fisiológica e terapêutica della cocaína”, Rendiconti Del R. Ist. Lombardo, v.XIV, 1882.
56. Pharmakologisch-Therapeutisches Handbuch, Erlangen, 1862.
57.
“Comunicação sobre coca”, do Dr. Josef Frankl, médico de estação de
águas em Marienbd, iZeitschrift der K. Gesellschaft der Ärzte, 1860.
58.
Erythroxylon coca in the Treatment of Typhus and Thyphoid Fevers and
also of other Febrile Diseases”, British Medical Journal, v. 1, 1887.
59. Detroit Therapeutic Gazette, julho 1880.
60. “Coca Erythroxylon in Exhaustion”, Detroit Th. G., out. 1880.
61. Detroit Th. G., set. 1889, com base em Louisville Medical News.
62. Marvaud, Lês aliments d’épargne, Paris: 1874.
63. “Physiology of General Metabolism”, Herrmann’s Handbuch, v. VI, no. 1, 1881.
64. “Erythroxylon coca, its Physiological Effect especially its Effect on the Excretion of Urea by the
Kindneys”, Boston Med. And Surgical Journal, 1882.
65. Comptes rendus de l’Académie des Sciences, v. II. 1870.
66. In Marvaud.
67. “Pathology and Treatment in Venereal Diseases”, Detrit TH. G., fev. 1884.
68. Loc. cit.
69. “Erythroxylon coca in the Opium and Alcohol Habits”, Detroit Th. G., set. 1880.
70. Detroit Th. G., nov. 1880.
71.
Bentron J., Detroit Th. G., março 1881; Gray G. H., extraído do “The
Medical Brief”, Detroit Th. G., junho 1881; Leforger H., dez. 1872.
72. Huse E. C., Detroit Th. G. set. 1880; Henderson, fev. 1881.
73. Taggart R., Detroit Th. G., maio 1881; Stimmel A. F., julho 1881.
74. Bentley, W. H., Detroit Th. G.,set. 1880, jan. 1881; Warner H., março 1881; Stimmel, abril e
julho 1881.
75. Travels in Peru and Índia, 1862.
76. “The Erythroxylon coca in Asthma”, Phialadelphia Med. And Surgical Repórter, 1881.
77. Detroit Th. G., dez. 1880.
78. “De la coca et de sés véritables propriétés thérapeutiques”, L’Union Médicale, 1877.
Devo
esta descrição ao Prof. Vogl, de Viena, que, muito gentilmente, colocou
à minha disposição seus livros e suas anotações sobre a coca.