Por que a polícia continuará matando pessoas inocentes
Apesar
do extermínio levado a cabo pela polícia brasileira (civil e militar)
desde sempre (de que é exemplo recente a morte de João Roberto Amorim,
de três anos, e os três rapazes no morro da Providência no Rio de
Janeiro) contra os grupos mais vulneráveis da população, especialmente
aqueles que vivem nas periferias das cidades, é comum se ouvir, de parte
das vítimas, que é preciso punir os criminosos exemplarmente, e, de
parte das corporações envolvidas, que se trata de um episódio isolado
praticado por maus policiais, que devem ser afastados da instituição.
O
discurso de ambos é rigorosamente o mesmo, portanto: castigar os
criminosos. No entanto, mesmo quando eventualmente punidos os
delinqüentes, os mesmos delitos voltam a ocorrer sistematicamente,
embora só raramente sejam noticiados nos jornais, invariavelmente quando
a vítima é criança ou pessoa de classe média ou alta. Enfim, o
extermínio levado a cabo pelas polícias só interessa à grande imprensa
quando tem algo de grotesco, surreal ou extraordinário. A matança
ordinariamente praticada contra supostos criminosos pouco importa. Li, a
propósito, tempos atrás, sugestiva manchete de certo jornal, que dizia:
“bandido tomba em conflito com a polícia”, que é uma espécie de versão
do bordão “bandido bom é bandido morto”, quase a aplaudir a ação
policial e a revelar certa indiferença quanto a este tipo de extermínio.
Pois
bem, não obstante vítimas e corporações gritem pela mesma solução
(punir criminosos), tal proposta constitui, em verdade, uma forma de
manter as coisas exatamente como estão, a pretexto de mudá-las, seja
porque o sistema penal atua num reduzidíssimo número de casos (cifras
ocultas da criminalidade), seja porque é arbitrariamente seletivo
(recruta sua clientela entre os grupos mais débeis da população), seja
porque, ao tecnicizar os conflitos, os descontextualiza e os
despolitiza. Além do mais, ao contrário do que normalmente se crê e se
faz crer, intervir sobre indivíduos, criminosos ou não, embora
necessário, é uma perspectiva simbólica e um tanto demagógica de
prevenção da criminalidade. É que problemas estruturais (corrupção,
violência policial, tráfico de droga etc.) demandam intervenções também
estruturais, devendo a intervenção sobre indivíduos ser apenas um
complemento de uma política ampla de segurança pública, coisa que não
existe entre nós, que preferimos o improviso.
Com
efeito, por mais exemplar que seja o castigo imposto ao criminoso, a
sentença condenatória proferida contra um indivíduo em particular não
tem o poder de prevenir, em caráter geral, novos crimes por membros das
corporações e grupos a que pertencem, pois continuarão a atuar mais ou
menos livremente. Mais: que se há de esperar de uma polícia e exército
militares senão que atuem militarmente, isto é, para a guerra, com a
disposição, as armas e táticas da guerra? Ora, a contradição é evidente:
funções não militares (v.g., segurança pública) são de todo
incompatíveis com instituições militares, que só devem exercer tarefas
militares e, eventualmente, devem ser desmilitarizadas ou mesmo
extintas. Não há meio termo.
Punir
criminosos, embora necessário, constitui assim só uma forma de manter
as coisas exatamente como sempre foram, a pretexto de mudá-las.
Trata-se, portanto, de uma estratégia política conservadora e ilusória
que pune o indivíduo para preservar a instituição que o faz criminoso,
ou seja, castiga-se o indivíduo para inocentar, habilmente, a
corporação, preservando seu exercício de poder incontrolado e
incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Em
suma: a questão fundamental não é intervir individualmente, mas
estruturalmente, prevenindo o mal em sua raiz, e não tardiamente em suas
conseqüências; intervir, pois, etiologicamente e não só
sintomatologicamente. Afinal, mais policiais, mais prisões e mais
condenações significam mais presos, mas não necessariamente menos
delitos. Em conclusão, a polícia brasileira (especialmente a militar)
continuará matando pessoas simplesmente porque está estruturada para
matá-las.
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