quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A ARTE NEGRA E A BRANQUITUDE DE IGOR KANNÁRIO

Por Alane Reis
Se desvendar a branquitude é uma das nossas principais prioridades atuais, vamos começar pelos mais perto de nós – os brancos pobres
Neste carnaval aconteceu a 5ª edição da Pipoca do Kannário, sexta-feira na Barra Ondina e segunda no circuito Campo Grande/Avenida. A “maior pipoca do mundo”, como diz o cantor, mais uma vez ocupou em massa as ruas nobres e comerciais do centro da cidade – ruas que cotidianamente funcionam sob as lógicas do racismo, e da cultura colonial característica de Salvador. E como é de costume, a apresentação do cantor, que agora também é deputado federal, deu o que falar.
Igor Kannário subiu no trio fantasiado de uma policia especial, escrito no ombro direito: “Comando da Paz” – nome associado a uma facção criminosa de Salvador. Nas costas a palavra “comandante”. E assim, o artista arrastou a velha massa pagodeira que ele sempre mobiliza. Seus fãs são milhares de pessoas negras, moradoras de periferias, fundamentalmente jovens. Esta massa, que fora do carnaval só frequentam aquelas ruas vivendo situações de violência, coerção, subalternidade e medo, agora então ali em êxtase, brincando ao som do ritmo musical escutado pela maior parte da população da Bahia, e um dos mais pops do Brasil. Eles cantam, dançam, bebem e usam uma série de outras drogas, por vezes há brigas, como em qualquer outro bloco ou circuito de carnaval.
A swingueira do Kannário passa pelas ruas que já passaram os revoltosos de Búzios, os Malês, onde os movimentos negros e de mulheres recorrentemente passam em marchas. A multidão passa rebolando ombros, quadris, pés e rabas, entoando gritos de “Respeita a favela” e cantando canções sobre as vivências das periferias.
Quem canta e dança com o Kannário é uma legião de jovens negros que enfrentam as maiores dificuldades que esta sociedade pode gerar. Seus fãs, que ali se divertem, acumulam revoltas, traumas, cicatrizes marcadas pela negritude, e ali, seguem seu líder príncipe branco dos guetos negros, na performance contemporânea que mais assusta – durante o carnaval – a branquitude baiana moradora das tais ruas.

Pipoca do Kannário na segunda-feira (4), no circuito Campo Grande
É longo o histórico de perseguição ao cantor Igor Kannário durante o carnaval. São muitos os argumentos que recaem sobre o cantor na tentativa de deslegitimar seu trabalho, quase todos eles são frutos de moralismo ou de racismo contra a multidão que ele arrasta. Não me alongo a falar dos boatos sobre a relação do cantor/deputado com drogas, porque o assunto exige profundidade, e pra isso indico esta reportagem aqui.
Quero pensar Igor Kannário por outras perspectivas. Uma série de contradições atravessam este sujeito e quero começar pensando sobre o que significa um branco pobre de periferia virar este fenômeno de representação de milhares de jovens negras e negros. Quero pensar sobre sua potência política – consagrada na eleição pra deputado federal na Bahia com mais de 50 mil votos.
Kannário, como a maioria dos brancos pobres, favelados nas grandes cidades, provavelmente conheceu a violência institucional de perto muito cedo – por isso pára o show para denunciar a violência da polícia contra seus foliões, postura rara entre os artistas. Ele provavelmente sofreu com o racismo institucional de muitas formas, mas viveu e se fez gente sobre a sombra do privilégio simbólico de ter a pele clara, os traços finos, o cabelo liso. Não cabe a ele a critica sobre apropriação cultural em relação ao pagode, pois mesmo branco, Kannário cresceu na Liberdade, o pagode fez mesmo parte da sua cultura e socialização.
Kannário conversa com a maloka, com a parcela da população que menos acessa as políticas públicas e sociais, que não é alcançada nem pelas igrejas, xs sujeitxs mais temidxs e odiadxs pela sociedade racista. Durante o show, depois de uma briga entre foliões, ele falou: “Vamos ficar ligados aí! Tá todo mundo torcendo para que aconteça uma tragédia aqui hoje, mas Deus não vai permitir. Aqui só tem filhos de Deus”. O cantor fala abertamente com seus fãs sobre estigmas que todos eles carregam, sem falar em racismo.
Tem história de outros carnavais (2015) de perseguição e criminalização ao cantor, que diz muito sobre a tentativa de barrar “a galera dele” de ocupar em massa os bairros do centro da cidade. Episódio que terminou com a Pipoca autorizada pelo prefeito ACM Neto, fotinha dos dois juntos, e Kannário eleito vereador no ano seguinte.

Igor Kannário e ACM Neto em entrevista ao jornalista Mario Quertez, em 2015, anunciando a autorização da Pipoca do Kannário
Enquanto político, Kannário se alia a figurões da direita evangélica fundamentalista, conservadora e racista da Bahia. A cada ano ele multiplica sua riqueza, e sua influencia de voto e poder de mobilização. Para quê!? Será o Kannário marionete desses figurões? O que gera esta adoração dos jovens negros periféricos por ele? Até quando aceitaremos que os brancos que vivem da arte negra se intitulem príncipes, reis e rainhas?
Muitas questões geram o Kannário, que com a trajetória de vida que tem, se fosse Passo Preto, no mínimo estaria no ostracismo da indústria cultural, vide Ed City. Mas a grande questão que trago aqui é o potencial político da arte, especialmente da música negra. Quem mais contribuiu para a afirmação da identidade racial nas periferias e favelas do Brasil do que a banda Racionais Mcs, ou o cantor Edson Gomes? Ed City já foi um fenômeno do pagode baiano em outrora justamente por causa das letras engajadas associadas à swingueira. Hoje, milhares de jovens negros pagodeiros da Bahia ouvem, seguem e votam neste líder branco, crescido entre os becos e viela de Salvador, com síndrome de monarquia, conhecedor das nossas dores mais íntimas, que canta a auto estima e a valorização do povo favelado, mas que politicamente escolhe se alinhar a branquitude mais pilantra da Bahia – que explora e mata de diversas formas os corpos negros, que mantem e atualiza as lógicas de genocídio do povo negro na Bahia.
Falando em poder da arte negra, a Bahia mais uma vez traz boas novas. O projeto Aya Bass garantiu no carnaval três apresentações que já nascem históricas. As cantoras Larissa Luz, Luedji Luna e Xênia França, que protagonizam a banda só de mulheres negras, cantam sobre racismo, empoderamento, liberade sexual, ancestralidade negra, entre outros temas de afirmação e luta. Os shows foram lotados na Barra/Ondina, Praça Castro Alves, e o último, no Pelourinho terminou com parte do público entoando: “Povo negro unido, povo negro forte, não teme a luta, não teme a morte”.

Aya Bass durante apresentação no Pelourinho, na terça feira de carnaval.

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