segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Eu assisti uma festa de Eguns em Itaparica


Dany
Depois do Reveillon à base de fome, muitas coisas boas nos aconteceram e abaixo um relato que escrevi logo ao voltar de viagem onde mostra tudo que eu senti, sinto e jamais poderei colocar apenas em palavras:

A volta no tempo na Ilha de Itaparica (06/01/2009)
Ile Axe Tuntum

Acredito que nada seja ao acaso, que lá no fundo alguém (ou algo) nos guia para os caminhos que devemos seguir e nos mostra que nem sempre o que queremos, da forma que queremos, é o melhor para nós…
Dificilmente viajamos na época de reveillon por questões de locais lotados, falta de água, inflação, filas, etc. mas desta vez resolvemos inovar e este relato começa quando nós decidimos fugir do convencional e viajar para Salvador.
Após passarmos um reveillon com amigos que não foi muito feliz, regado a brigas familiares deles e uma virada dormindo e sem ceia, decidimos ficar em um hostel próximo à praia da Barra onde conhecemos pessoas maravilhosas e que foram essenciais para nossa aventura que tenho certeza marcou para sempre nossas vidas.
Ao chegarmos, aproveitamos para conhecer a região e descansar após o stress  da virada, pesquisando quais pontos turísticos iríamos conhecer nos últimos 4 dias de nossa viagem. Na realidade, Marcos iria embora antes, por isso 4 dias juntos, mas para mim ainda seriam 6 dias.
Pesquisando junto ao hostel e na internet, definimos que gostaríamos de conhecer a Praia do Forte, onde tem o projeto Tamar que eu sou apaixonada; a Ilha de Itaparica, com suas praias maravilhosas; algumas feiras locais onde poderíamos comprar itens a ser utilizados em nosso dia-a-dia na religião e a praia da região, pois um de nossos dias estava comprometido com o Candomblé de Oxalá, no Ilê Axé Oxumarê, casa de meu Babalorixá, Babá Pece de Oxumarê.
Após nossas típicas discussões, onde eu queria ir primeiro à Praia do Forte, ver as benditas tartaruguinhas e Marcos querendo ir à Ilha de Itaparica, decidimos ir à Ilha no dia seguinte. Marcamos de acordar 7:30 e sair bem cedo, pois o destino era longe e queríamos aproveitar o máximo.
Por coincidência, no hostel havia uma revista com uma pequena reportagem sobre a Ilha de Itaparica, com uma citação apenas de endereço e telefone de uma casa de Culto à Babá Egun na praia de Ponta de Areia, culto à ancestralidade, presente no candomblé e de fundamental importância.
Sempre tive a curiosidade de conhecer o culto, conhecia através de um documentário a casa de Babá Agboulá, mas uma aura de suspense sempre cercou o fato, onde nunca sabíamos qual informação era correta, o que realmente procedia, e de que forma a coisa acontecia, desta forma, fiquei com a revista, intencionando ligar ou mesmo ir ao endereço no dia seguinte, tentando obter maiores informações corretas sobre o culto.
Mas tudo, que começou errado, tinha uma justificativa e somente agora sei o porquê.
Acordamos tarde, 8:20, estávamos cansados e dormimos mais do que havíamos planejado. Tomamos um banho rápido e café no hostel, aproveitando para pegar as últimas coordenadas de como chegar ao ferry boat, ônibus locais, etc.
Pegamos o ônibus indicado e corremos ao ferry, onde teríamos barcos apenas de hora em hora, tentando assim pegar o das 10h, pois com a travessia, chegaríamos à Ilha apenas as 11:10, mas no caminho percebi que havia esquecido a revista e a oportunidade de conhecer mais de perto o famoso culto ao Babá Egun. Decidi ligar no hostel e pedir que pegassem a revista em meu quarto, assim poderia pegar o endereço e ainda arriscar, estava curiosa e aquilo não me faria desistir facilmente. O atendente pediu que eu ligasse em alguns minutos para que ele me passasse os dados, mas por problemas com outros hóspedes, quando liguei ele ainda não havia conseguido os dados e eu fiquei muito triste.
Como estava com celular, passei uma mensagem sms ao meu pai e à uma amiga, pedindo se eles poderiam pesquisar no google e quem sabe encontrar o endereço para mim. Minha amiga estava de folga e sem acesso à internet, mas meu pai pesquisou e me mandou duas mensagens de volta, uma com o endereço de uma casa na Praia de Amoreiras e outra com o endereço de uma casa no Bairro Barro Branco, mas nenhuma das duas era a que eu tinha pensado em conhecer inicialmente… Fui pensando em como arquitetar a visita e matar a curiosidade que me cercava a tanto tempo.
Chegada à Ilha de ItaparicaFinalmente conseguimos pegar o ferry das 10h e fizemos a travessia com a paz das águas claras que nos cercavam. Ao descer no ferry de Itaparica, tentávamos descobrir como fazer para pegar as peruas que fazem os transportes para as praias no meio da muvuca de mais de 200 pessoas que também sairam do ferry, quando vejo as mesmas e mais muvuca ainda para pegá-las.
Ao chegar perto da perua que nos levaria à praia de Amoreiras, pois era a única que eu reconhecia o nome nas placas, me aproximei tentando entrar e duas pessoas furaram a fila, entrando em minha frente, tomando assim os últimos 2 lugares na perua que ali estava. Fiquei muito chateada pois parecia que só tinham aquelas duas e eu, que estava num local desconhecido, fiquei perdida. Em questão de alguns minutos, um garotinho me perguntou: “Tia, vai pra ponta de areia, amoreira, centro ? Tem uma perua ali que já vai sair!” elá fomos nós correndo afim de não perder mais um transporte e ficar com a mesma cara de cachorro perdido em mudança…
A perua ainda estava vazia e por questão de conforto, resolvi sentar ao lado do motorista, assim poderia pedir maiores informações sobre onde descer etc.
Ao perguntar ao motorista, Pedro, sobre a praia de Amoreiras, ele gentilmente nos informou sobre a localização, qual a melhor parte a ficar e começou a conversar com aquela gentileza baiana que só quem esteve na Bahia sabe do que estou falando.
Neste momento, me lembrei da mensagem enviado por meu pai e perguntei à Pedro sobre o bairro do Barro Branco, onde ficava. Ele com uma feição muito ressabiada, de quem pensa, o que essa branquela vai fazer naquele local, me olhou e perguntou onde eu queria ir naquele bairro. Fiquei sem jeito de falar claramente meu objetivo, pois além do fato de nossa religião, Candomblé de Orixás, ser super discriminada e mal difundida, o Culto de Babá Egun é mais ainda, pois muitos o vêem como o culto ao diabo, aos demônios, à morte. Apenas respondi: “Sei que lá existe uma casa de Culto Africano e tenho curiosidade em conhecer”. Foi o suficiente para aquele negro gentil me abrir um sorriso e contar que aquela casa ao qual estávamos procurando era de seu tio, que seu avô era o herdeiro inicialmente, mas falecido, havia passado o cargo e a responsabilidade à seu tio, Paulo. Ai sim, nos contou de sua vida, que havia morado em SP, que não era do Culto pois não se achava responsável o suficiente e também da quantidade de casas de Candomblé de Orixá e Culto à Baba Egun que existem na Ilha de Itaparica.
Perder o horário, a balsa, a perua anterior, tinham um motivo, cruzar nosso caminho com Pedrinho e seu sorriso simples de um trabalhador honesto.
Ele se propôs à desviar seu caminho após deixar o último passageiro e nos levar até o local onde a esposa de seu tio trabalha na praia vendendo acarajés, afim de nos apresentar, mas ele não estava junto à ela e Pedrinho nos levou até a casa do mesmo.
 Ele havia acabado de chegar e Pedro foi conversar com ele a sós sobre nós e sobre o que nós queríamos.
Paulo era seu nome, que nos acolheu em sua simplicidade sem saber quem éramos ou de que buraco havíamos saído. Nos pegou em seu carro e nos levou até a tão famosa casa de Babá Olokotúm, onde conhecemos o barracão, o terreno da casa e os fundamentos, apenas pela parte de fora, pois somente os ojés podem entrar naquele espaço sagrado. Aquele espaço realmente tinha alguma coisa de diferente, pois a energia do local era perceptível ao mais leigo dos seres humanos.
Após conhecermos o local e conversarmos um pouco com Paulinho, soubemos que a forma de consulta com o Culto à Babá Egum é através de um Osé e que Paulinho se dispôs a fazer para nós caso quisessemos. Combinamos de fazer então no final da tarde, sem saber exatamente o que nos esperava.
Em nossas conversas com Paulinho, contamos que iríamos embora eu no dia 06 e Marcos no dia 05. E ele comentou, já nos convidando, para a Festa de babá Olokotúm, que seria no dia 05 a noite. Ficamos super excitados com a possibilidade de ver de perto um culto assim tão fechado e misterioso.
Fomos para a praia de Amoreiras, passar o dia, conhecer o local e esperar o dia passar até a hora de nossa consulta.
Neste momento conhecemos a esposa de Paulinho, Eliete, moça sorridente que vende acarajés na praia (deliciosos)e que nos acolheu prontamente como amigos de muitos anos.
O trecho da praia que ficamos era bem bonito, mas algo começou a nos irritar profundamente: os carros na beirada da calçada com os porta malas abertos e músicas regionais tocando ao máximo volume possível. Como Marcos não estava vestindo algo que pudesse aproveitar melhor a praia, estávamos com pouco dinheiro e estávamos com fome, resolvemos dar uma volta, procurar algum local pra comer que aceitasse cartão de crédito e tentar comprar uma bermuda mais adequada para ele vestir.
Encontramos bermudas à venda na Padaria (risos) o que nos ajudou na primeira parte do problema, mas o maior era comer com cartão de crédito na Ilha. Após andarmos um pouco, fomos parar em um quiosque que aceitava cartões e finalmente pudemos pedir algo para beber e comer.
Enquanto aguardávamos a comida, falávamos sobre como tudo aconteceu, o que era pra ser uma simples ida à praia, havia se tornado em algo místico e sem palavras. Quando de repente, vimos o cozinheiro do barraca sair correndo para fora da mesma e um barulho de vazamento  muito alto que vinha da área da cozinha.
Todos saímos correndo, pois vimos que era a mangueira do butijão de gás que havia se soltado e o gás escapava, correndo o risco de uma explosão. Foi um susto imenso, largamos mala, sapatos, óculos, tudo sobre a mesa com o medo de algo acontecer.
Quando finalmente o dono do quiosque conseguiu solucionar o problema, disse para o povo “Aí gente, pq tanto medo, foi só uma mangueirinha!”, e depois dessa decidimos ficar sem comer e voltar pra barraca da Eliete, aguardando o horário combinado com Paulinho.
Ele chegou no horário marcado, nos pegou e nos levou de volta ao barracão, onde juntamente com o Ojé Miguel, fizeram com que Marcos preparasse o osé. Enquanto eles levavam o osé para o espaço sagrado, ficamos sentados do lado de fora do barracão, quando não foi nossa surpresa, sermos recepcionados por um Babá Egum que veio conversar conosco em decorrência do osé.
Centro de ItaparicaApós nossa conversa com Babá, que esclareceu que não estávamos ali por acaso, Miguelzinho nos levou de moto para conhecer o restante da Ilha, esperançosos de que Marcos conseguisse trocar a passagem dele e pudéssemos ir à festa.
Éramos pura emoção e sentimento. Ali mesmo ligamos para a cia aérea e solicitamos a troca da passagem dele, para irmos à festa juntos.
Voltamos para Salvador igual duas crianças que acabaram de ganhar o primeiro brinquedo.
Na segunda feira, dia 05, saímos de Salvador à noite, rumo à Ilha, para a Festa. Ao chegarmos no barracão, onde muitas pessoas já estavam aguardando, fomos recepcionados por Paulinho e sua esposa, que nos trataram como se fôssemos amigos de longa data.
E a festa começou, rezas e cântigos, muitos desconhecidos, alguns do meu conhecimento.
Babás no barracão, dançando e conversando com os presentes, Aparakás fazendo travessuras e coisas que se eu não tivesse visto, nunca acreditaria serem possíveis de acontecer. Mas meu foco aqui não é contar nenhum segredo que vi ou ainda esclarecer aquelas dúvidas frequentes de ter ou não ter alguém ali presente, como é possível, e sim, mostrar a alegria que vi em cada um dos rostos ali presentes, o respeito, a dignidade de pessoas que estavam ali,  perdendo uma noite inteira, trancados em um barracão abafado, cantando, batendo palmas e mais que qualquer sentimento, felizes.
Durante a festa propriamente dita, eu não entendia muita coisa, então foquei nas pessoas ali presentes, vendo uma a uma as expressões, a forma de cantar e o respeito pela entidade ali presente.
Ando muito decepcionada com o mundo do Candomblé de Orixás, pois o grande foco foi perdido, a simplicidade, o cultuar orixá,a beleza pelo simples e pelo belo.
Atualmente, nosso povo brilha mais que um orixá na sala, usam roupas que muitas vezes não transmitem a realidade daquela pessoa, fios de conta cada vez maiores para mostrar que são poderosos, torsos enormes que muitas vezes se tornam ridículos de tão grandes… e tudo isso por um motivo apenas: dinheiro e a subversão que ele causa.
Centenas de Babalorixás e Iyalorixás se vendem, inventando coisas desnecessárias, simplesmente para arrecadar dinheiro de pessoas que vêm à sua procura, muitas vezes em situação desesperadora.
Estou cansada de ver pessoas velhas do Santo, que por serem simples no mode de vestir ou agir, acabam sendo massacradas e colocadas nos cantinhos dos barracões (isso quando o são), enquanto os bate-bolas (carinhosamente por nós assim apelidados em decorrência dos bate-bolas cariocas que saem no carnaval desfilando suas fantasias imponentes, sem mostrar quem realmente são) ocupam o lugar de elite, recebendo cadeiras e mimos, apenas por estar com roupas chamativas ou fios de conta gigantescos.
Quantas e quantas vezes não vi estes bate-bolas dançando com um orixá no barracão, sem deixar espaço para que eles pudessem dançar, ou ainda teoricamente acompanhando o orixá o bate-bola se prostra em frente aos atabaques, dançando igual à um festival turco da fertilidade, qdo o coitadinho do santo fica ali espremido, sem poder sequer ser o que ele é, o dono da festa.
Muitas vezes, Babá falava algo e as pessoas em alvoroço que conversavam, eram surpreendidas por qualquer pessoa ali presente solicitando silêncio pois Babá tinha a palavra. E todos se calavam. Ali, ao contrário do que acontece em nossos candomblés de Orixá atualmente, o dono da festa era quem brilhava, quem era reconhecido, valorizado e respeitado.
Ao conversar com as pessoas durante a festa, para tentar entender qual Babá estava na sala, o que cantavam para ele e o porquê, fiquei sabendo que a festa era exatamente naquele dia, pois começando no dia 05 de Janeiro, viraria a noite toda, acabando na manhã do Dia de Reis, 06 de janeiro, única data que babá Olokotúm vem à terra para nos dar o prazer e o axé da ancestralidade ali presente. 
Festa de Babá Olokotúm - Dia de Reis

O dia amanhaceu como uma criança que desperta de um sono calmo e feliz, mas faltava o rei da festa chegar até nós afinal. E para minha surpresa, o final da festa se dá fora do barracão, que até o momento estava fechado afim de evitar o contato das pessoas com as entidades que estavam soltas no terreno, onde todos saímos e as pessoas, cantando felizes, sem se importar se vestiam roupas de richelieu, de chita, se eram brancas ou negras, se tinham um sorriso perfeito ou faltavam-lhe dentes, saiam dançando com ramos de folhas em homenagem aos reis que ali viriam, a festa de reis.
Neste momento, foquei uma moça que o tempo todo estava presente, desde o episódio da praia, pois ela trabalha com Eliete vendendo os acarajés, até aquele momento sublime, pois ela dançava e cantava como se fosse a última coisa que faria em sua vida, diversas vezes me puxou para o meio do povo, e eu tímida, sempre fugia. Esta moça, que durante toda a noite, respondeu a Babá, cantou, rezou, sem nenhuma demonstração de cansaço, me surpreendeu quando em uma conversa fora do barracão disse que, quando sobrasse um dinheiro, iria comprar um par de pargatas(chinelo, alpargatas, havaianas) para o filho parar de andar descalço. Uma mulher trabalhadora, que sobrevive aos trancos e barracos, sem uma sobra de dinheiro para comprar um chinelo ao filho, mas que ali, independente de quaisquer problemas pessoais que ela tivesse, estava feliz a tal ponto, que não sei descrever…
E esta felicidade, fazia parte de cada pessoa ali presente, aquele momento era único e tenho certeza que não fui parar ali por acaso.
Aquelas demonstrações de simplicidade, onde pessoas comuns lutam pra sobreviver, tem seu trabalho, simples como uma pessoa que vende acarajé(Eliete), um moto-táxi (Miguel) ou ainda um taxista (Paulinho, o herdeiro da casa mais velha do Brasil de culto à Babá Egum), mas que vêem no culto à ancestralidade, o significado de porquê estamos aqui e que não é o brilho, o dinheiro, a fama, a soberba, que nos tornará mais felizes.
Eu acredito que Babá Egum existe e que é capaz de transformar a vida de uma pessoa, eu sou a prova viva deste fato, onde tudo começou por acaso e acabou transformando meu coração!
Paulinho, Miguelzinho, Eliete, Pedrinho, à todos vocês, meu respeito sempre.
Que Babá Olokotúm nos tragam sempre esta felicidade, que sai lá do fundo de nossos corações, transpassando nossas almas.

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